terça-feira, 12 de abril de 2022

4812) Linhagem de sangue e linhagem de poder (12.4.2022)




Existem dois tipos de linhagens (=transmissões hereditárias de valores, de uma geração para outra, através dos séculos).
 
A linhagem de sangue é a que os pais e as mães transmitem aos seus filhos. Em termos modernos, é a linhagem genética, baseada no DNA. As descobertas genéticas dos últimos 100 anos deram mais nitidez a esse conceito, que o termo “sangue” deixava num terreno muito simbólico. Hoje podemos saber quem é filho biológico de quem –  e principalmente quem não é filho de quem – com um alto grau de certeza.
 
A linhagem de poder é tradicionalmente a herança do ducado, do baronato, dos títulos de nobreza que passam de pais para filhos. A posse das terras, das capitanias hereditárias, das riquezas acumuladas, dos servos, das tropas, de toda a parafernália medieval e feudal que compôs nossa cultura. Mais modernamente, no mundo “republicano”, é a transmissão hereditária de outros tipos de poder: cargos políticos, ações de grandes empresas, contatos e compromissos formais e informais no interior de grupos importantes.
 
Nesse drama genealógico está fundamentada toda uma literatura, todo um teatro, todo um cinema, toda uma novelística da televisão. Em um milhão de narrativas sobre outros assuntos, a certa altura surge o velho drama: é preciso provar que “A” é filho(a) de B, uma informação totalmente inesperada na história até então; ou então provar que “A”, que se supunha filho(a) de B, não o é de fato.
 
Para que? Para que o poder e a fortuna sejam transmitidos a quem é da mesma linhagem biológica.
 
Cada reviravolta folhetinesca desse tipo envolve mil circunstâncias dramatúrgicas – infidelidades conjugais, morte e substituição de bebês, bebês problemáticos que alguém entrega a um lenhador para que o mate... Alguém já viu lenhador matar bebê?! Não: ele esconde, cria, espera crescer... só pra ver a encrenca futura.
 
O ideal da mentalidade aristocrática, pelo que imagino, é que as duas linhas coincidam sempre. Que as riquezas materiais, o poder material (seja um castelo, seja uma vaga no Congresso Nacional) permaneçam sempre em mãos das mesmas linhagens genéticas que as administram há séculos (aqui na América), ou milênios (na velha Europa).


Vi pouco tempo atrás um excelente filme de Dino Risi, Aquele Que Sabe Viver (“Il Sorpasso”), onde Vittorio Gassman faz um playboy espertalhão e bon-vivant, e Jean-Louis Trintignant o estudante modesto que por acaso torna-se seu companheiro de farra ao longo de dois dias.
 
Gassman é malicioso, bonitão, conhece as sacanagens do mundo. Jean-Louis o leva para conhecer um velho casal de tios ricos que moram na província. Tomam chá com os tios, com o filho deste, o pomposo e engravatado “primo Alfredo”, e o capataz da herdade. A certa altura, Gassman sussurra no ouvido do amigo: “Você tem consciência de que seu primo Alfredo é filho do capataz, não?... Olhe só... A cara... a envergadura... o gesto que faz com a mão...”   


(a tia e o capataz)

E Jean-Louis, que convive com aquelas pessoas desde a infância, fica aterrado por essa verdade, que salta aos olhos.  Naquele instante, é como se se descobrisse numa árvore vetusta e centenária um enxerto de um parasita que ali se instalou para roubar-lhe a seiva, e quem sabe para um dia matá-la por estrangulamento vagaroso, e ocupar seu lugar na terra.
 
É a invasão genética dos plebeus. Vingam-se de séculos de opressão plantando, nas linhagens de poder, a infiltração vagarosa de seus genes egoístas, que daqui a um século estarão desfrutando das fortunas construídas às custas da servidão de seus antepassados.
 
A ironia, no filme de Dino Risi, é que essa infiltração, que poderia parecer uma revolucionária tomada do poder pelo povo,  é o contrário. Porque o “filho do capataz” tem um discurso proto-fascista que agrada tanto aos seus “pais jurídicos”, pequenos proprietários rurais, quando ao seu “pai biológico”, o capataz, que ao fim e ao cabo está se lixando para política e para o povo, quer apenas que seus cromossomos-transmitidos comam do bom e do melhor.
 
Filhos adúlteros, filhos ilegítimos, filhos bastardos, filhos adotados... Todos estes personagens de novela-das-oito são candidatos ao poder e à glória, e o único obstáculo é o diabo da genética.
 
E isto se complica quando pensamos que os detentores do poder – os reis, os nobres, os fidalgos, os senhores de engenho, os coronéis sertanejos – são muitas vezes um bando de garanhões impenitentes, passando no rodo qualquer mulher desprevenida que se atravesse na sua frente. Afinal, como diz o ditado popular, “triste do poder que não pode”. Ou seja: é digno de pena o sujeito que, dispondo do poder, hesita em usá-lo.
 
Uma antiga historieta fala de um príncipe que estava cavalgando pelos seus domínios quando avistou um jovem aldeão mais ou menos da sua idade, e praticamente um sósia dele. O príncipe inquiriu: “Você aí, rapaz. Caramba, como nós somos parecidos, dir-se-ia que somos irmãos. Sua mãe por acaso já trabalhou no palácio real?”  E o rapaz respondeu: “Não, Alteza, mas meu pai sim.”
 
E há aquela divertida canção gravada por Shawn Elliot (“e a torcida do Flamengo”), “Shame and Scandal in the Family”. Um rapaz se apaixona por uma garota. Diz isso ao pai, que responde, triste: “Não, meu filho, não pode ser. Essa garota é minha filha, mas sua mãe não sabe.” O rapaz, inconformado, vai se queixar à mãe. A mãe dá uma gargalhada e diz a ele: “Vá em frente! Você também não é filho dele, mas ele não sabe.”
 
“Shame and Scandal in the Family”:
https://www.youtube.com/watch?v=5rIKIvZVj7M
 
 
(Il Sorpasso)