sábado, 7 de janeiro de 2012

2760) Modos de dizer (7.1.2012)




Jorge Luís Borges disse que os séculos dão polimento às frases, assim como a água dá polimento aos seixos. Esse polimento, contudo, tanto embeleza quanto deturpa. Tem frases que com o tempo vão ficando mais erradas, vão se deteriorando, seja em termos de sonoridade, seja em sentido.

Antigamente tínhamos uma expressão para dizer que não estávamos dando importância a alguma coisa: “Estou me lixando para isso”. Não sei de onde veio esse “me lixando”, mas visualizo a cena de uma pessoa lixando as unhas e dizendo: “Não tenho tempo para me importar com isso, estou fazendo algo mais interessante: lixando as unhas”. Algo assim. 

E havia outra expressão equivalente: “Eu pouco estou ligando para isso”, a qual não precisa de explicação. Ora, de algumas décadas pra cá a TV está cheia de mocinhas louras sacudindo a cabeleira prum lado e dizendo: “Ah, não ligo, eu pouco estou me lixando para isso”. Dirão o mesmo, é claro, deste meu comentário.

Essa deturpação pela junção de contrários é estruturalmente equivalente à de uma cena que foi uma grande gozação no YouTube tempos atrás. O show de uma banda adolescente foi cancelado, houve empurra-empurra, garotos e garotas protestando histéricos, e uma adolescente chorando e dizendo pra câmara: “Gente, isso é uma grande falta de sacanagem!”.

Às vezes as modificações não alteram o sentido mas contaminam a forma da frase, de modo irremediável. Antigamente, quando queríamos dizer a alguém que perdesse as esperanças quanto a alguma coisa, dizíamos: “Tire o cavalo da chuva, Fulana não quer mais namorar com você”. (Acho que a origem da frase foi numa noite tempestuosa; uma pessoa que queria prosseguir viagem, e o dono da hospedaria disse: “Monsieur, tire o cavalo da chuva e guarde-o no estábulo, não convém pegar a estrada numa noite como esta”.) 

Em todo caso, por motivos insondáveis a frase hoje se cristalizou em “Pode ir tirando o cavalinho da chuva”, a tal ponto que quando digo a forma original sempre aparece alguém para me corrigir. Frases assim viram uma espécie de fórmula mágica, que toda vez tem que ser dita escrupulosamente da mesma maneira.

E até em setores mais eruditos aparecem contaminações assim. Todo mundo conhece a frase de Hamlet: “Existem mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa vã filosofia”. A frase é uma beleza, mas até hoje ninguém me explicou quem é o responsável por esse adjetivo “vã”. Ele não aparece no texto original, mas se infiltrou de modo tão sorrateiro que quando digo a frase correta alguém corrige: “Não é ‘a nossa filosofia’, é a ‘nossa vã filosofia’...” E o autor das peças de Shakespeare dá a milionésima volta no túmulo.