sábado, 16 de janeiro de 2010

1533) “O Fotógrafo” (10.2.2008)


Acabei de ler o volume 1 deste álbum de quadrinhos (São Paulo: Ed. Conrad, 2006), em que o fotógrafo Didier Lefèvre conta sua viagem pelos desfiladeiros do Afeganistão, acompanhando uma caravana dos Médicos Sem Fronteiras. A primeira coisa que chama a atenção é a concepção visual do álbum (que tem textos e desenhos de Emmanuel Guibert, diagramação e cores de Fréderic Lemercier), misturando fotos e desenhos. Lefèvre fotografava a expedição o tempo inteiro, mas os intervalos entre as fotos, bem como as cenas não fotografadas, são contadas pelos desenhos de Guibert. Existe uma continuidade agradável entre as fotos e os desenhos, que são minimalistas, e em momento algum tentam parecer-se com fotografias. Concentram-se nos enquadramentos, angulações e iluminação, dizendo tudo com poucos recursos.

Os Médicos Sem Fronteiras viajam clandestinamente pelo Afeganistão, mas afinal, todo mundo que viaja por lá é clandestino. A história ocorre em 1986, na época pré-Bin Laden, quando o país estava sob invasão russa, e as caravanas corriam risco de bombardeios aéreos. Os autores explicam num único quadrinho assuntos fascinantes e complexos. Como se esconder de um helicóptero inimigo? Como cumprimentar muçulmanos – que gestos são esperados, que gestos são proibidos? Como urinar no meio de um grupo de afegãos? Como embalar medicamentos para que não se pulverizem no transporte? Qual a diferença entre o povo do Nuristão e o do Badaquistão? Como escalar um desfiladeiro na escuridão total? Como negociar cavalos?

As fotos de Lefèvre são em geral muito boas, e é pena que muitas delas apareçam apenas sob a forma de contatos. As paisagens do Afeganistão são impressionantes, e os autores preferem descrevê-las com seqüências de fotos parecidas, umas ao lado das outras. Eles ampliam algumas das melhores fotos, mas são poucas, como a magnífica foto da capa, em que um menino, entre um grupo de afegãos, olha para cima como se contemplasse gigantes. É um raio-X instantâneo de um civilização masculina, rude, violenta, muito diferente do mundo ocidental, e, em muitos aspectos, profundamente sertaneja.

O quadrinho-documentário (se podemos chamá-lo assim) tem um belo futuro. Há coisa que só o desenho pode fazer, como retratar uma cena em que não havia uma câmara presente. Há outras que só a foto. No final do livro, um estribeiro afegão se perde no escuro, é dado como morto, e reaparece depois de ter caminhado sozinho e com fome no rastro da caravana. As fotos do seu rosto magro e de seus olhos transfixados pelo medo da morte, com “a expressão de um fantasma”, valem uma medalha de ouro. O mundo retratado é complexo, surrealista, sem reduções preconceituosas sobre a vida oriental. A integração entre médicos franceses e líderes tribais afegãos é improvável, tensa, instável, mas funciona. O Fotógrafo (vêm mais dois volumes por aí) cria para nós uma “realidade enriquecida”, além da ficção e além do jornalismo.

1532) Simetrias aleatórias (9.2.2008)




Por falar em coincidências, temos que prestar atenção nas pessoas que constroem complicados sistemas interpretativos do mundo baseados nelas. 

Exemplo um: o pessoal que fica relendo e reinterpretando os versos de Nostradamus (que era uma espécie de Augusto dos Anjos renascentista) e acreditando que ali estão profecias de tudo, desde a morte de Kennedy até o pênalte que Zico perdeu contra a França. 

Exemplo dois: os exegetas do chamado Código da Bíblia, em que o sujeito faz permutações de letras com versículos da Bíblia e encontra textos que valem como profecias de tudo, desde o atentado ao World Trade Center até a cabeçada de Zidane em Materazzi.

Simetrias aparecem nos lugares mais improváveis. Os anagramas, por exemplo – frases cujas letras misturamos, obtendo uma frase completamente diferente. 

Certas pessoas fazem anagramas de nomes próprios como uma arte divinatória, uma espécie de Tarô: “Farei um anagrama do teu nome, e dir-te-ei quem és”.

No útil e prazeroso livro Palindromes and Anagrams de Howard W. Bergerson (Dover, 1973) existem exemplos que nos dão o que pensar – todos no idioma inglês, claro. O nome de “Miguel de Cervantes Saavedra” fornece o anagrama “Gave us a damned clever satire” (“Deu-nos uma sátira danada de esperta” – referência ao Dom Quixote, claro). 

“William Shakespeare” pode ser anagramado em “We all make his praise” (“todos nós fazemos sua louvação”). 

Até com títulos de obras literárias obtemos resultados surpreendentes. É o caso de “Ivanhoe, by Sir Walter Scott”: basta misturar as letras e obtemos “A novel by a Scottish writer” (“um romance de um escritor escocês”). 

Se eu fosse um cara místico, já tinha fundado uma religião baseada nisso.

Anos atrás eu estava me correspondendo com um amigo que gostava de investigar anagramas, e comentei que o filme de Luís Buñuel L’Âge d’Or (“A Idade de Ouro”) poderia ser anagramatizado em inglês sem perder o sentido: “Gold Era”. Somente depois de mandar minha carta me dei conta de que o nome do meu correspondente, Geraldo (...Pires e Albuquerque), era também um anagrama de ambos os títulos.

Os anagramas exprimem nossa personalidade? Talvez. O melhor que já fiz do meu próprio nome foi: “Tu és ar, bar, viola” – que talvez não me defina por completo, mas descreve com acurácia o que foi minha vida dos 20 aos 50 anos. 

Pois bem – todo este arrazoado irrelevante é para tentar demonstrar que simetrias podem ser obtidas das maneiras mais diferentes, porque o número de elementos que manipulamos (as 23 letras do alfabeto) não é tão grande assim, e a possibilidade de recombiná-las acaba nos conduzindo a caminhos previsíveis. 

“Anagrams”, em inglês, nos dá “Ars Magna” (“grande arte”) em latim. O que é isso? Um sinal dos deuses? Não, apenas isto: somos obstinadamente capazes de recombinar elementos até percebermos que eles se encaixam numa forma que faz sentido. E nada nos reconforta tanto quanto qualquer coisa que parece fazer sentido.





1531) Definições de poesia (8.2.2008)


(Robert Frost)

Qualquer livro sobre poesia se vê na obrigação de fornecer uma definição, o que é virtualmente impossível, porque a poesia foi e é praticada em contextos culturais muito diferentes, que valorizam diferentes aspectos dela. Em vez de definições (que são, também por definição, uma fórmula universalista capaz de se adaptar com justeza a qualquer espécimen considerado) o que temos são descrições, que registram nosso contato com um espécimen, mas talvez não valham para espécimens diferentes (ou seja: definições partem do geral para o particular, descrições fazem o caminho inverso).

Minha descrição de poesia (prática, utilitária, para uso doméstico, sem pretensões científicas) é: “Forma de criação literária em que se busca uma linguagem auto-referencial, mais condensada do que a da prosa, sujeita a mais nuances de interpretação, e na qual o ritmo, as repetições e os aspectos sensoriais e visuais do texto têm maior importância”. Acho que isto cobre uma área muito grande da poesia, tendo a vantagem de reconhecer a importância do ritmo e das repetições, mas sem receitar a métrica e a rima como elementos obrigatórios.

A palavra “poesia” vem do grego “poiesis” que, se não me engano, exprime conotações de artesanato, coisa feita com capricho, criação que é fruto da habilidade técnica. A interferência transformadora da ação humana sobre a massa informe da realidade – no caso, a massa informe das palavras, que quando “em estado de dicionário” são rasas de significado, mas que têm esse significado potencializado ao infinito pela articulação poética.

Robert Frost dizia que “Poesia é aquilo que se perde na tradução”. Ou seja: poesia é algo que não está no texto, mas na tessitura dos subtextos, das conotações, das associação indiretas de idéias que se acumulam por baixo daquelas palavras. Traduzir as palavras é perder essa rede de nuances, e, na melhor das hipóteses, substituí-la por outra que não estava nos planos do autor do texto original. Esta incapacidade de transpor nuances de uma língua para a outra lembra a frase de (creio) Goethe, segundo a qual “traduzir poesia é como empalhar raios de sol”. E o tradutor Paulo Rónai perguntava: “E por acaso escrever poesia não será exatamente a mesma coisa?”

Frost também dizia que ninguém deve dizer “eu sou um poeta”, porque “poeta” é uma palavra de louvor, de aclamação. A condição do poeta não é algo que pode ser definido pelo Ego, é algo que o Ego torna manifesto. É percebido “de fora”, mas não pode ser controlado “de dentro”. É uma honraria social, um sinal de que as coisas que aquele indivíduo diz têm significado especial para o seu grupo. O cara pode não ser poeta no grupo e na época em que vive, mas, mil anos depois, talvez seus versos sejam encontrados e relidos de outra forma. Ou seja, a posteridade pode criar nuances de sentido que não ocorreram aos contemporâneos do poeta. É um dos sonhos que nos servem de consolo nos momentos mais difíceis.