sábado, 28 de junho de 2008

0430) Pirlimpsiquice (5.8.2004)




(ilustração de Luís Jardim para "Pirlimpsiquice")

Há pouco tempo, ao preparar uma palestra sobre teatro, lembrei-me de um conto de Guimarães Rosa que é um ótimo ponto de partida para discutir o improviso no teatro e nas artes cênicas em geral. 

O palco é o ambiente natural para a Arte do Improviso, seja durante uma cantoria de viola, um show de música ou uma peça de teatro. O Improviso é aquele momento mágico em que o já-ensaiado se abre para o surgimento do não-previsto. E é no palco que Tempo e Espaço convergem para um ponto único onde as presenças simultâneas dos espectadores e dos artistas cria a possibilidade rara de um obra de arte ser fruída por uns no instante exato em que é criada pelos outros.

O conto (“Pirlimpsiquice”, em Primeiras Estórias) é simples. Os alunos de um grupo escolar começam a ensaiar uma peça para apresentar num dia de festa. O narrador, um dos garotos, descreve os ensaios (que são secretos, para não estragar a surpresa), a dedicação de todos, e a inveja que o trabalho deles desperta no resto da turma. Todo mundo quer saber “qual a história da peça”. 

Para ajudar a manter o sigilo, os atores começam a inventar uma história inexistente, e a deixá-la vazar para os demais, esperando despistá-los. Ao mesmo tempo, um aluno excluído da peça, o Gamboa, revela que essa versão que circula é falsa: e começa a circular outra, inventada por ele próprio.

No dia, uma série de atropelos faz com que logo na primeira cena da peça dê um branco geral no elenco. Os contratempos imprevistos fazem com que o grupo de atores fique no palco sem saber o que dizer, debaixo de uma vaia ensurdecedora. 

Nesse instante um deles pula para a frente e dá início a uma cena que, naquele atordoamento, soa familiar a todos eles; e o elenco inteiro “emburaca” na cena. Somente alguns minutos depois o narrador percebe que, em vez de interpretarem o texto da peça, estão interpretando a história do Gamboa!

Vou parar por aqui, para despertar a curiosidade sem estragar o prazer da leitura. Basta constatar que no conto estão presentes alguns dos elementos mais importantes para a Arte do Improviso. 

Primeiro: ninguém improvisa a partir do zero. Os estudantes têm 3 textos-base na memória: a peça original, a falsa-peça criada por eles, e a falsa-peça do Gamboa. 

Segundo: o improviso coletivo depende desse conhecimento em comum. 

Terceiro: o maior incentivo ao improviso é aquela desesperadora condição de estar diante de uma platéia que espera, e mais que espera, exige que se diga alguma coisa. 

O resultado é uma vertigem, uma tontura criativa que posso denominar, pedindo emprestado um termo de Ariano Suassuna, a “oura da folia”, a epifania delirante em que a mente precisa dizer, precisa criar, precisa tapar com palavras, sejam quais fôrem, a “boca hiante do contempto”, aquela expectativa aterrorizante que vemos nos olhos da platéia. Nada estava pronto ou decorado. O jeito é improvisar. E o poeta improvisa.






0429) O barra-a-barra (4.8.2004)


(campo de pelada em Portugal)

O futebol de salão foi inventado no Brasil, mas ninguém ainda nos deu o crédito, ao que eu saiba, por uma das mais curiosas mutações do jogo de futebol. Refiro-me ao “barra-a-barra”, uma interessante variante popular do jogo oficial. Joguei barra-a-barra a vida inteira, e até os 18 anos ainda travava disputas ferozes com meu irmão Pedro, numa sucessão infindável de partidas que terminavam sempre com “a do banho”, a saideira cujo vencedor tinha o direito de tomar banho primeiro, enquanto o outro ficava, suado, esperando o chuveiro desocupar.

O barra-a-barra é uma demonstração de como funciona a cultura popular. O futebol é um jogo regulamentado, com regras especificando tamanho do campo, linhas demarcatórias de espaços, número de jogadores, etc. A essência do futebol, contudo, não são essas regras. A essência do futebol é: colocar uma bola, sem usar as mãos, num espaço defendido pelo adversário, e impedir que ele faça o mesmo conosco. Em cima desta premissa, constrói-se tanto o universo das regras quanto o universo das manobras físicas (chutes, cabeçadas, dribles e tudo o mais).

As regras do barra-a-barra são simples. Num espaço aberto, a barra pode ser marcada por duas pedras ou dois montes de roupas, como numa pelada qualquer. Num espaço fechado (um quarto, por exemplo), podem ser duas paredes opostas. Existe o barra-a-barra de pé, e o barra-a-barra de cabeça. No primeiro, é simples: cada um tem direito a um chute, como se fosse uma disputa de pênaltis recíprocos. O barra-a-barra de cabeça é mais interessante: joga-se a bola para o alto e desfere-se uma cabeçada na direção do gol adversário. As duas modalidades têm acréscimos interessantes: o mata e o queima. O mata significa que quando o adversário chuta ou cabeceia e a gente consegue matar a bola no peito, daí em diante vira um jogo de verdade, ambos disputando a bola como num jogo normal, e ambos com a possibilidade de fazer o gol na barra do oponente. O queima significa que quando a gente chuta ou cabeceia e o adversário não consegue segurar (ele “queima”, ou “arrota”, a bola), a gente pode fazer o gol, mas ele não – ele continua a ser apenas goleiro, tem que voltar a segurar a bola.

As sutilezas deste jogo encheriam livros. Quero apenas lembrar que a Cultura de Rua é mestra nesse tipo de coisa. Não é por falta de 22 jogadores que alguém deixa de jogar futebol; não é por falta de grama; não é por falta de linhas ou de traves. As pessoas encontram um jeito de “distorcer”, “deturpar” uma atividade em seu benefício. Pessoas de índole purista detestam essas “deformações”, mas elas são inevitáveis e são necessárias. Legisladores futebolísticos britânicos do século 19 talvez ficassem horrorizados diante de uma variante plebéia como o barra-a-barra. Talvez dessem um jeito de proibi-lo na Constituição, transformá-lo em crime ou contravenção. Não adianta. A Rua assimila, aprende, desconstrói, reformata, recompõe, ensina e bota pra rodar.

0428) Robôs que parecem gente (3.8.2004)




Tenho um carinho especial por imagens de robôs, que me acompanham desde a infância, e que representavam, para o menino de 10 anos que nunca deixei totalmente de ser, uma síntese entre o passado (gente de carne e osso) e o futuro (as máquinas). Sim, eu achava que o futuro estava nas máquinas, nas engrenagens de metal e vidro que aos meus olhos exprimiam o que havia de mais moderno e de mais futurista. 

Muita água passou por baixo da ponte desde então, e cheguei a passar por uma fase de imensa antipatia e preconceito contra qualquer tipo de máquina. Tudo bem. Acho que, se o mundo não está chegando a uma síntese entre o orgânico e o mecânico, meu gosto pessoal pode estar aprendendo a unir esses dois polos.

Vou dar um exemplo. Em 1991 traduzi para a Editora Record um livro de Isaac Asimov, Sonhos de Robô, cuja capa tinha uma magnífica ilustração de Ralph McQuarrie, desenho que o próprio Asimov admite ter sido a inspiração para o conto que dá nome à coletânea. 

A imagem mostra um sofá, num terraço que dá para uma praia em cujo céu se vê um sol nascendo, ou se pondo. E sobre o sofá está um robô adormecido. Ele tem um corpo esguio, bem proporcionado, mas indiscutivelmente metálico, feito de placas articuladas, dobradiças, etc.; mas a posição e a atitude são humanas, flexíveis. Sua cabeça repousa sobre o braço esquerdo, o pé esquerdo está enfiado sob a outra perna, na atitude relaxada de quem sentou por ali e acabou dando um cochilo.

Não há como não perceber a semelhança desse robô com o famoso robô de Metrópolis, o filme feito em 1926 por Fritz Lang, que revolucionou o cinema de ficção científica, e que vi pela primeira vez aos 19 anos. 

Uma mulher, Maria, é colocada numa máquina que a transforma em robô (a ciência de Metrópolis é o que eu chamo de “ciência gótica”: um delírio fantástico onde a ciência e a tecnologia são mera roupagem). Só que um robô-fêmeo: corpo alto e esguio, pernas longilíneas, andar insinuante... e um belo par de seios metálicos. “Que diabo!...” pensava eu, “Pra quê que um robô precisa de seios? É um robô mamífero? Um robô erótico?”




(o robô de Metropolis)

A mesma sensação me deu, num saite dedicado a trucagens fotográficas em Photoshop, a visão da imagem de um robô gordo. Robô gordo é, mais do que um robô erótico, um contra-senso magistral, uma ironia que tem algo de Zen, algo de infantil. É uma imagem que concretiza essa síntese entre o humano e a máquina, sínese que coube à literatura de ficção científica trazer para o interior de nossa cultura. 

Quanto mais a ciência se pretende utilitária, funcional, mais a ficção científica se mostra contaminada de humanidade. Os robôs industriais das fábricas de automóveis, que parecem aranhas mecânicas, são a realidade; mas a poesia do nosso tempo está em nossa capacidade de imaginar robôs adormecidos, robôs sensuais, robôs gordos. Robôs que a outros robôs jamais ocorreria criar: somente a nós, simples humanos.