sábado, 30 de abril de 2022

4818) A solidão dos fantasmas (30.4.2022)




Num conto de Karen Blixen, “A ceia em Elsinore” (Seven Gothic Tales, 1934), ambientado na primeira metade dos anos 1800, duas irmãs idosas reencontram o irmão que não viam há muitos anos. Tinham tido a notícia da morte dele em outro continente, e agora é sob a forma de fantasma que ele reaparece às duas. Elas não se assustam; pelo contrário. Sentam-se os três à mesa, e começam a relembrar episódios do passado, versos, cantigas da juventude... Aos poucos, ele restaura diante das irmãs a imagem de “um homem que está à vontade na companhia de outras pessoas”.
 
A certa altura, o fantasma começa a perguntar pelos idosos da família. E tio Fulano, ainda está vivo? E tia Sicrana?... E nesse momento a voz da narradora diz:
 
[Fanny] sentiu-se deprimida nesse instante. Todas aquelas pessoas já tinham morrido; ele deveria estar informado sobre isto. A solidão do seu irmão já morto fez descer uma nuvem sombria sobre seu coração.
 
Existe em nossa cultura a noção um tanto vaga de que os mortos vão todos para um mesmo lugar. Mesmo as pessoas que não acreditam exatamente numa divisão do tipo “céu, inferno e purgatório” imaginam que do lado de lá estão as almas de todos os que já se foram, e que de certo modo elas têm mais mobilidade do que temos nós aqui. Lá, seremos puro espírito. Aqui, somos acima de tudo este corpo pesadão, carente de cuidados, criador de problemas.
 
Não. O susto de Fanny é quando constata que os membros da família De Coninck, quando morrem, não ficam reunidos num feriadão eterno, sob o sol e as sombrinhas do relvado, ou aconchegados diante da lareira em tempos de neve. Cada um dos De Coninck que morre (é isto que depreendemos da leitura), vai para um lugar qualquer, e lá fica só. Talvez seja por isso que quando as irmãs lhe perguntam onde ele está agora, o rapaz responde laconicamente: “No inferno”, e não dê mais detalhes.



(Karen Blixen)
 
Crenças religiosas ocupam um espaço à parte, em relação à literatura, que tem suas próprias regras e seus objetivos. Karen Blixen, ou “Isak Dinesen”, como costumava assinar seus livros, está inventando para seu fantasma um destino que ela não pede emprestado a ninguém além da sua imaginação. E tem tanta liberdade para isto quanto May Sinclair, que num de seus contos faz o protagonista, um filósofo, encontrar-se no Além com Immanuel Kant e ter longas e agradáveis discussões filosóficas com ele. Em literatura, quem manda é o Autor. E a Autora.
 
Seria possível supor (literariamente, mesmo que não religiosamente) que as almas humanas não preexistem ao nascimento. Elas se formam no instante da concepção (ou do nascimento, como o autor preferir). Crescem com a pessoa, sofrem, aprendem, desenvolvem-se, enriquecem junto com a pessoa. E no instante da morte, essas almas separam-se pela primeira vez do corpo que lhes deu vida.
 
Para onde vão? O autor pode supor então que umas poderão se agrupar, segundo algum critério de afinidade. E outras ficarão sozinhas.
 
Talvez tenha sido este o castigo de Morten De Coninck, o filho caçula da família. Belo, inteligente, audaz. Fidalgo que se torna pirata, assassino, um aventureiro de sangue nobre que abandonou a família para se tornar um salteador dos mares, e acabar morrendo na forca, num país tropical do Caribe.
 
Rubem Fonseca, num dos seus livros (não lembro agora qual) narra o episódio do homem que, já com a corda no pescoço e os pés sobre o alçapão do cadafalso, pede ao carrasco que lhe conceda um minuto a mais de vida. O carrasco diz: “Para que?”. Ele responde: “Para que eu possa me lembrar por mais um minuto da Bela Eliza.”  E Fonseca completa dizendo que a Bela Eliza não se trata de uma mulher: era o navio com que o jovem pirata aterrorizou os mares.
 
Foi deste conto de Isak Dinesen que Fonseca extraiu esta citação (que eu me lembre, ele não cita a fonte), e o curioso jogo de ambiguidades que ela encerra. Quando ouvimos o pedido do condenado, pensamos que ele quer se lembrar, por mais um minuto, de alguma das muitas mulheres que amou, mas em seguida descobrimos tratar-se de um barco. Mas as duas irmãs de Morten são Fernande (“Fanny”) e Eliza (“Lizzie”). Ele batizou o barco com o nome da irmã, e há mais de um indício de amor incestuoso entre eles.
 
Talvez não uma paixão, mas aquele narcisismo estético e espiritual dos ricos que se consideram superiores a todo mundo, em beleza, em talentos, em encantos. Após o sumiço de Morten – que larga uma noiva no caminho do altar, e desaparece para sempre – Fanny e Lizzie não se casam, embora sejam disputadas pelos “melhores partidos” da Dinamarca na era napoleônica.


("Elsinore", René Magritte, 1944)
 
Uma velha criada da família, Madame Baeck, pensa que “...não tinham sido capazes de encontrar nenhum homem que fosse digno delas, exceto o irmão”. As belas de Elsinore, diz a narradora, mesmo depois dos trinta anos “podiam usar as jovens da cidade para limpar o chão”. São aquelas famílias que evoluem numa sucessão de castelos, mansões, cabriolés, bailes, recepções, reuniões de Estado, casamentos; uma elite “de dinheiro antigo” cada vez mais restrita a si mesma, cada vez mais isolada.
 
Morten procura (conscientemente ou não) romper com isso, larga a noiva fidalga, assume de vez o papel guerreiro que já tinha experimentado no combate a Napoleão. Foge para longe, torna-se fazendeiro e senhor de escravos nas Antilhas. Perde tudo, e acaba morrendo na forca.
 
E indo para esse lugar que ele qualifica como “o inferno”, um lugar onde não se tem notícias do mundo em que habitara.
 
Quando Morten surge na mesa para se reencontrar com as irmãs, ele explica: “Pude vir agora, como vocês estão vendo, porque o Estreito está congelado. Num caso assim, posso vir. É uma regra”.



O Estreito a que ele se refere é a faixa de mar entre Elsinore (“Helsingor”, em dinamarquês) e o porto sueco de Helsingborg. (Os dois nomes não deixam de sugerir “hell”; e Karen Blixen, como se sabe, escrevia seus contos diretamente em inglês.) São apenas quatro quilômetros de mar separando os dois portos. A imagem sugerida por Blixen é que esse estreito representa, de certo modo, a separação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Quando o mar se solidifica no Estreito, as almas podem passar.
 
No fim do conto, o relógio bate meia-noite e o espírito de Morten desaparece da mesa onde está junto às irmãs.
 
[Fanny] ficou imóvel por um longo tempo, sem fazer nenhum gesto. E da noite de inverno lá fora, da direção do norte, veio um ruído profundo, ressoante, como o eco de um disparo de canhão. As crianças de Elsinore conheciam bem o seu significado: era o gelo se partindo em algum lugar, produzindo uma comprida fenda. (trad. BT)
 
Partindo-se o gelo, parte-se a ponte entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, e Morten (o nome não é escolhido por acaso) volta para o lugar onde não vê ninguém.



("Sete Narrativas Góticas", Ed. Sesi/Senai) 









quarta-feira, 27 de abril de 2022

4817) Quatro voltas por cima (27.4.2022)



("Acrobatas", por Katia Acín)

1)
O Clube de Bola de Gude Afrânio Peixoto tinha esse nome porque, embora fosse constituído por uma malta de moleques incultos, cascudos, endiabrados, e pouco merecedores de confiança, todos eles moravam (e jogavam gude) na rua sem calçamento que ostentava o nome desse ilustre paredro das letras nacionais. (Procurem paredro no dicionário, vamos, mexam-se.) Sonhos adolescentes de acesso às máfias da vida adulta levaram os tais moleques à criação de um clube, com mensalidades pagas semanalmente a um tesoureiro (foram cinquenta minutos de discussão sobre se uma “mensalidade” podia ser semanal, mas era o único termo técnico que eles conheciam).
 
Nomeada a primeira diretoria (“eleita” seria força de expressão), ficou Vitinho como tesoureiro, encarregado de catar as mensalidades, guardá-las em lugar seguro, e destiná-las à compra de rodadas de sorvetes e eventualmente de troféus (“daqueles pequenos, de meio-palmo”, instruiu o presidente Warlilson) para os torneios periódicos.
 
Nem bem se passou um mês e descobriram que Vitinho havia abscondido a grana das mensalidades. A diretoria o abordou, fumaçando, na esquina da bodega de Zé Nicolau. Por azar Vitinho era o mais magro da turma, de modo que o cobriram na tapa e depois cada um o agarrou pela trunfa e pelos fundilhos e o jogou de encontro à parede, deixando ali variadas manchas coloridas. Depois que todos o fizeram, Vitinho catou chão para se apoiar, tirou o cabelo dos olhos, ergueu o queixo duro e desafiou: “Mais alguém insatisfeito?...”
 

2)
Daniel S. O’Rourke, de Ann Arbor (Michigan), descobriu aos onze anos de idade que era escritor, e não mais deixou ninguém em paz. Passou a produzir contos, artigos, resenhas e (a partir dos 17 anos) romances em série. A família inteira se dividia entre a confiança implícita no seu talento (“É um O’Rourke!” bradava seu avô, agitando o cachimbo), e a índole realista que os deixava perplexos diante das histórias inventadas pelo obcecado adolescente, que não conseguia ser publicado, mas tinha uma fé inabalável na própria vocação.
 
Aos trinta anos, tinha catorze livros auto-publicados que não conseguia mais vender sequer entre os parentes e os vizinhos de bairro, que visitava de porta em porta. Certa noite de verão, num ato de desespero, Daniel derramou querosene e ateou fogo à pequena cabine de madeira que usava como estúdio, próxima à sua casa, cheia de manuscritos e de caixas de livros intactos. As chamas se ergueram, as fagulhas subiram revoluteando em turbilhões de vento, e em breve não só a casa dos pais de Daniel como um estábulo e um celeiro próximos já tinham princípios de incêndio. O rapaz deu o alarme, convocou vizinhos, organizou fileiras de baldes, desenrolou mangueiras, bombeou vigorosamente a água dos poços, e foi unanimemente considerado o herói da noite, ao debelar aquele sinistro cuja origem ele, discretamente, atribuiu a um gato que derrubou uma lamparina.  Daniel largou a literatura, trabalha hoje como bombeiro, e já salvou quinze vidas, dezesseis com ele próprio.

 
3)
Houve um alvoroço naquela manhã de março de 1921, no sítio arqueológico de Wat-Nambi, quando dois assistentes subiram correndo a colina para avisar ao chefe da expedição, Sir Humphrey Gladstone, que haviam sido encontrados sinais de um fóssil de grandes proporções. Logo ao primeiro olhar ele constatou que era provavelmente um esqueleto de Arqueoptérix, verdadeira raridade do mundo da ciência. A excitação da descoberta foi empanada pela sua confusão ao perceber o alarido horrorizado dos trabalhadores núbios encarregados da escavação. Gritos, mãos cobrindo rostos, testas percutidas de encontro à area ocre do deserto... O que estava havendo?
 
Uma rápida confabulação com Ahmed, o chefe dos intérpretes, deixou claro que o crânio da criatura, plenamente visível após as primeiras vassouradas de areia terem sido removidas, correspondia estranhamente ao crânio de [Nome Impronunciável], conhecido como O-Exterminador-Dos-Infiéis-Que-Desembarcam-De Longe, mito milenar e altamente temido naquela região.
 
Debandada geral, deixando o sítio quase deserto, enquanto Sir Humphrey, em desespero, tentava calcular os custos de trazer uma equipe de operários de outro país, sujeitos a outras mitologias. O projeto encalhou por uma semana, enquanto Sir Humphrey, um somatizador inveterado, sofria ataques de gota, rinite, disritmia cardíaca e refluxo esofágico. Tudo parecia perdido, quando Ahmed, típico indivíduo-de-umbral entre dois mundos, trouxe-lhe um pergaminho contendo as instruções para um ritual de apaziguamento da referida divindade. O paleontólogo encheu-se de entusiasmo, chegou mesmo a minimizar o aspecto suspeitosamente recente do pergaminho, mas meteu a mão no cofre e distribuiu dinares e libras esterlinas com o séquito de exorcistas, que se reuniu no canteiro de escavações ao erguer de uma ameaçadora lua nova e, mercê de uma incongruente quantidade de vinho e haxixe, rasgou o ventre da noite com uma cantilena de litanias mágicas.
 
Maldição exorcizada, Sir Humphrey Gladstone conseguiu por fim exumar o precioso fóssil (ganhando a aposta que fizera com seu assistente, o dr. Clive Neville, lente de Narratologia em Oxford), e embarcá-lo no HMS Caledonia rumo a Londres, sob uma fanfarra triunfal de metais no cais do porto. (O fato de que o Caledonia afundou dois dias depois, no Mediterrâneo, perto da costa da Líbia, deixou no ar a dúvida sobre quem teria no final ganho a parada – mas enfim, a história real é esta.)

 
4)
D. Henriqueta Coimbra, 51 anos, solteira, morava sozinha há anos na casa deixada pelos pais, no bairro do Recife, aquelas casas verticais à moda holandesa, com aposentos superpostos, cheios de prataria, porcelanas, cerâmicas nativas e (resmungava-se na vizinhança) baús antigos repletos de dobrões de ouro deixados pelo pai, potentado canavieiro, ouro que atiçou a cobiça de Bastião Caroço, 33 anos, flanelinha do Mercadão São Bento, possuidor de uma Mauser enferrujada que foi erguida para o rosto de D. Henriqueta quando ela acendeu a luz e o surpreendeu agachado no tapete da sala por entre os cacos da vidraça; arma erguida, ameaça feita, e D. Henriqueta de mãos postas obedeceu à ordem de ficar calada, de se ajoelhar, e de dizer onde estava o ouro, resposta que ela começou a balbuciar enquanto percorria com os olhos os bíceps saradões de Bastião, as coxas que avultavam sob a bermuda cortada a tesoura, exame ao qual o respectivo não ficou alheio e sorriu dentes de ouro, ouro que D. Henriqueta, num tremido de pálpebras, insinuou coquete que estava “na alcova... embaixo da cama de casal... se ele estivesse mesmo a fim...” e Bastião encorpou-se, mobilizou a libido, fez um sinal autoritativo com o cano da arma indicando um “boralá” confiante, permitindo que D. Henriqueta se erguesse e o guiasse até o corredor e o elevador antigão de casagrande, que conduzia aos aposentos superiores na cabine onde caberiam três pessoas e ela entrou primeiro, dando passagem a Bastião que entrecerrou os olhos ao aspirar-lhe o perfume alfazemado, murmurando, “ih, tá cheirosa...”, e D. Henriqueta quase tímida fechando devagar a grade pantográfica enquanto Bastião dava um passo para o fundo da cabine e ela saltava lépida como uma onça para o lado de fora, cerrava a grade, fechava a porta de encontro aos murros inúteis de Bastião, abria a caixa de controle na parede, desligava o interruptor da energia interna, premia o botão do gás, puxava a alavanca acionando a hermética closura, apoiava-se à parede e deixava-se escorregar até sentar no chão, abanando-se com uma interjeição de “ufa, essa foi por pouco”, e ainda assim com um laivo melancólico no olhar, porque bíceps como aqueles, francamente.
 
 

 







domingo, 24 de abril de 2022

4816) Os delírios barrocos de Terry Gilliam (24.4.2022)



Em janeiro, participei de um evento produzido no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro), que neste momento está em cartaz no CCBB de São Paulo, e deve seguir depois para Brasília: Terry Gilliam – O Onírico AnarquistaO evento é produzido pela BLG Entretenimento, com curadoria de Christian Caselli e Eduardo Reginato, e fica no CCBB-SP até 2 de maio.

Fiz uma “Aula Magna” online (que infelizmente não está na web) e contribuí para o catálogo com uma avaliação do filme O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus.


Como a palestra não foi vista por muita gente, aproveito para compartilhar aqui alguns dos temas sobre os quais conversamos por duas horas.
 
Terry Gilliam é um estadunidense apóstata, que chutou o balde da cidadania dos EUA e tornou-se cidadão britânico. Ele sempre foi mais europeu do que norte-americano, assim como Isaac Asimov sempre foi mais norte-americano do que russo. A formação cultural de Gilliam, meio eclética, meio desorganizada, acabou tendo o efeito colateral de aproximá-lo mais da cultura européia do que da do seu país. Seus filmes e sua trajetória pessoal refletem isso.
 
Os adjetivos mais frequentes para descrever o cineasta são exagerado, “over”, gastador, complicado, exuberante, caótico... E ao mesmo tempo fascinado pelo absurdo, pelo nonsense, pelo fantástico, pelo sobrenatural, pelo grotesco, pelo mórbido.


(Time Bandits
 
Seus filmes são concebidos de fora para dentro, das imagens para a psicologia, do exterior surpreendente para o interior imprevisível. O ambiente, a cenografia, os figurinos, tudo parece mais real do que a mente dos personagens, que só raramente são tratados com um detalhamento psicológico realista, do tipo que o cinema habitualmente faz.  Gilliam pensa por imagens, não por conceitos abstratos.
 
Seus diálogos em geral não têm muito brilho, sutileza, originalidade. São meramente funcionais, servem para dar realismo à cena (“o que pessoas de verdade estariam dizendo num momento assim?”), para encaminhar o enredo, dar informações, exprimir emoções simples. Ele gosta de soltar os atores para improvisar suas falas. O que lhe importa é o movimento do storyboard, as linhas digitadas são uma formalidade necessária.
 
Fala-se que muitas cenas do Dr. Parnassus com Heath Ledger não teriam entrado na versão final, porque não ficaram muito boas, mas depois da morte do ator Gilliam decidiu aproveitar ao máximo o material que ele tinha filmado. A cena dos dois casais no restaurante chinês, em O Pescador de Ilusões, foi totalmente improvisada, e a edição picotada valorizou os trechos mais engraçados.


(O Pescador de Ilusões
 
Como acontece com diretores de temperamento visual, seus filmes são muitas vezes uma sucessão de “set pieces”, cenas que valem por si mesmas sem que necessariamente haja uma relação de causa e efeito entre elas. Gilliam daria um excelente carnavalesco de Escola de Samba, porque criaria umas vinte alas de brilho excepcional, sem se preocupar muito em contar uma história – o enredo tanto poderia ser “A Busca do Eldorado nas Américas” quanto “A Construção de Brasília”.
 
Isto faz com que, em termos de enredo, ele tantas vezes aborde os romances populares que não se preocupam com aprofundamento psicológico, e consistem numa série de aventuras semelhantes que poderiam ser acumuladas indefinidamente, como as do Barão de Munchausen, os contos dos Irmãos Grimm, as peripécias do Dom Quixote... Mesmo quando existe um objetivo final na jornada (como em Bandidos do Tempo, Jabberwocky, etc.) quando ele é atingido acaba sendo quase um anticlímax, porque entendemos que a festa acabou. A festa é a “travessia”.


(Jabberwocky
 
É a velha estrutura da Novela de Cavalaria, episódios sucessivos sem desenvolvimento orgânico entre si, sucessão de aventuras, como se fossem contos. Estrutura resultante de milênios de compilações de lendas e contos populares justapostos, desde as Mil e Uma Noites até os Contos de Canterbury, e que começaram a receber a partir do século 17-18 um tratamento mais refinado (O Manuscrito de Saragoça, Jacques o Fatalista, Tristram Shandy etc.) até desembocar no romance moderno, que se apoia em enredos sólidos, consecutivos, onde tudo que ocorre influi em tudo que ainda vai ocorrer.

Gilliam é um diretor visionário, meio delirante, e não é de admirar que as filmagens de seus projetos sejam aventuras cheias de acidentes, prejuízos, contratempos, conflitos, rompimento de contratos, mudança imprevista de planos...
 
É locação interditada em cima da hora, é surpresa meteorológica, é greve de uma categoria, é incêndio de cenário, é ator que morre durante a filmagem, é produtor que some com a grana... Como se diz por aí, no mundo caótico do cinema o surpreendente não é que um filme resulte em algo bom, é que qualquer filme acabe sendo feito.
 
Mesmo assim, ele tem um núcleo de técnicos e atores que embarcam sem hesitar nessas “roubadas”, certamente porque veem nele a sinceridade e a vibração dos que estão focados na vertigem de criar. Para quem trabalha com cinema, os filmes dele talvez sejam mais interessantes de filmar do que de ver na tela. Ver um filme dele é como ver as fotos de uma festa que durou três dias e onde rolou de tudo, até briga.









 
 
 








quinta-feira, 21 de abril de 2022

4815) Coincidências literárias (21.4.2022)



Existe uma tendência inconsciente da natureza para fazer “rimar” certos fatos dos livros que a gente lê e os fatos da vida real que a gente vive aqui fora?
 
Parece às vezes que os dados viciados do Destino teimam em jogar em cima do feltro verde da existência um 5 e 5, ou um 3 e 3, ou os olhos da cobra (1 e 1) ou as duas caveiras dando risada (6 e 6)...
 
Minha mente racional me diz que não. Diz que é apenas a minha percepção ligada, acesa, que acaba registrando quando, entre mil estímulos sucessivos ou alternados, aparecem dois com alguma coisa em comum.
 
Por exemplo, hoje estou lendo alternadamente um livro da dinamarquesa Karen Blixen (Sete Contos Góticos, 1934) e um do pernambucano Hermilo Borba Filho (Margem das Lembranças, 1976) e em dois dias consecutivos leio, num e no outro, cenas em que na hora de um casamento o noivo “dá no pé”, “capa o gato”, escafede-se, eclipsa-se, celibata-se para sempre e deixa a noiva desmaiada de vergonha diante dos convidados e da congregação. Coincidência? Lugares comuns que se repetem?  É. Pode ser.
 
Num saite dedicado à obra de Philip K. Dick (ele próprio um farejador emérito de recados da Esfera Armilar da Consciência Cósmica) vejo o recado preocupado de um leitor dizendo:
 
Todas as obras de Philip K. Dick têm um modo bizarro de nos fazer pensar que foram escritas tendo em mente você, o leitor, o que por um lado é inquietante, e por outro está totalmente em sintonia com a pulsação de paranóia que lateja no âmago de quase todos os seus romances, de um modo ou de outro. Daí, no mesmo dia em que eu li A Maze of Death eu tinha comprado os ingredientes para preparar um carneiro ao curry (mencionado na página 24), assim como tinha recebido, um ou dois dias antes, a encomenda de uma garrafa de uísque Seagram (página 31). (trad. BT)
 
Mais uma vez, os Amanuenses da Banalidade argumentarão que são comidas e bebidas estatisticamente frequentes no mundo em que Dick e o leitor viviam. Dada a quantidade de pequenos elementos do cotidiano usados nesses romances para lhes dar verossimilhança ambiental (marcas de carros, de bebidas, de eletrodomésticos, nomes de filmes, canções que tocam no rádio, etc.) difícil vai ser colocar um detalhe que não acabe sendo visto como coincidência por algum leitor desses livros. Livros cujas tiragens certamente estão na casa das centenas de milhares de cópias, no mundo inteiro.
 
Comigo acontecem coisas assim o tempo todo.
 
Em novembro, estava eu de banho tomado e roupa trocada esperando um Uber que me levaria para fazer uma palestra em Itaipava (RJ), e ao ler um conto de Ana Rusche vejo uma menção a Itaipava. (A sensação, philipkdickiana, é de que o livro nos pisca o olho e cochicha: “Estou sabendo da sua agenda”.)
 
Dias depois, no café da manhã, li uma citação de Jorge Luís Borges (no livro Curso de Literatura Inglesa) de um verso de um poeta inglês que se referia a “the ghost of a rose”. Algumas horas depois, no mesmo dia, vi uma postagem no Facebook sobre o fotógrafo Jean Manzon. Ele teria penetrado meio disfarçadamente na casa de saúde onde o bailarino Nijinski estava internado (com uma crise psíquica) e para fotografá-lo botou na vitrola o disco de Weber, “Le spectre de la rose”, que Nijinski havia dançado: com isso, extraiu dele uma reação emocional e fez a foto.
 
O Amanuense da Banalidade me explica que eu sou um indivíduo que lê dezenas de páginas por dia, e de quebra ainda passa entre três e cinco horas fiscalizando as redes sociais e as publicações eletrônicas online. Uma pessoa assim entra em contato, todo dia, com milhares de nomes, títulos, marcas, etc.  De vez em quando, duas dessas referências ocorrem no mesmo dia. O espantoso seria se isso nunca acontecesse.
 
Uma anotação de 9 de setembro de 2021 diz (transcrevo):
 
Para minha coleção de coincidências. Ontem à noite eu estava revendo o filme "As 8 vítimas", onde um cara escreve suas memórias na véspera de ser enforcado. Alguém cita para ele a frase do Dr. Samuel Johnson: "Quando um homem sabe que vai morrer no dia seguinte, sua mente se concentra que é uma beleza". Agora à noite, recebi a circular semanal do saite A Word A Day, onde alguém cita a mesmíssima frase. Qual a chance matemática disso acontecer?
 
No conto “A Biblioteca de Babel” (1941), Borges imagina uma biblioteca cujos volumes registram todas as combinações possíveis de letras e números – uma quantidade inconcebível, mas não infinita, de palavras. Se todas essas combinações fossem postas por escrito, cedo ou tarde alguns trechos reproduziriam, ao pé da letra, todos os livros escritos pela Humanidade.
 
A Borges isso não basta – ele postula que caberiam também todas as versões truncadas ou levemente distorcidas de cada um desses livros, todas as versões que diferem entre si em apenas uma palavra ou uma letra.
 
E de vez em quando, no meio de léguas de páginas cobertas com “nsdbdgdt iegsh t2tsdk hrury”  apareceriam palavras como “a cãibra de gesso”, e ficaríamos maravilhados com a coincidência dessas letras surgirem assim, tão bem compostas, parecendo uma coisa intencional.
 
O que é a coincidência? Segundo os filósofos, tudo é coincidência, tudo coincide, uma vez que tudo está presente, lado a lado. O que nos inquieta e nos fascina é a coincidência significativa, a coincidência na qual a mente humana é capaz de projetar um possível significado. Ao Universo, para quem essas coisas são indiferentes, o fato de num banco do metrô sentarem lado a lado dois indivíduos chamados Ademir é um fato irrelevante, uma fatalidade estatística. Para um ser humano, criatura que se move num labirinto onírico de objetivos, finalidades, causas-e-efeitos, isso parece indicar um recado misterioso, uma intenção secreta.
 
 





segunda-feira, 18 de abril de 2022

4814) "Os Ambulantes de Deus" (18.4.2022)

 

 
Se eu tivesse tempo e sossego na vida, uma das tarefas a que iria me dedicar seria a (re)leitura da obra romanesca de Hermilo Borba Filho, um autor dos mais importantes na formação literária da minha geração.
 
Hermilo tinha um pé na cultura popular (o teatro de mamulengo), no teatro clássico, no conto, no romance. Estava por toda parte. Foi o primeiro escritor brasileiro que vi usar desenhos e quadrinhos ilustrando um romance (Agá, 1974). Escreveu uma biografia de Henry Miller. Foi em muitos sentidos um dos mentores intelectuais de Ariano Suassuna, dez anos mais moço do que ele, quando Ariano, ainda bem jovem, começou a atuar em teatro.


(Hermilo, Galba Pragana e Ariano Suassuna, 1946)
 
O último romance de Hermilo foi Os Ambulantes de Deus (Rio. Civilização Brasileira, 1976), lançado pouco depois de sua morte aos 58 anos.
 
É um livro curioso que de certa forma vale como uma resposta pessoal de Hermilo à moda do “realismo mágico”, as histórias fantásticas com ambientação interiorana, à maneira de Gabriel Garcia Márquez, Miguel Ángel Astúrias, Manuel Scorza, Juan Rulfo e tantos outros, que no começo dos anos 1970 as editoras brasileiras estavam lançando febrilmente, um título atrás do outro.
 
“Realismo mágico” é um rótulo impalpável, que serve como disfarce para aconchambrar num mesmo pacote autores tão diferentes entre si quanto os dessa listinha acima. Falei de “histórias fantásticas com ambientação interiorana” para trazer para perto do livro de Hermilo. O chamado “realismo mágico” de Julio Cortázar e Jorge Luís Borges, por exemplo, não teve nada a ver com esse. É mais urbano, mais europeizado, mais engravatado, mais livresco.


Os Ambulantes de Deus é uma narrativa compacta, com menos de 150 páginas, contando a viagem extraordinária de uma jangada por um rio. Imagino ser o rio Una, que banha Palmares, a cidade natal do autor, descrita e transfigurada por ele em inúmeros livros. Principalmente a tetralogia de romances “Um Cavaleiro da Segunda Decadência”: Margem das Lembranças (1966), A Porteira do Mundo (1967), O Cavalo da Noite (1968) e Deus no Pasto (1972).
 
A viagem é extraordinária porque, depois que o barqueiro e seus cinco passageiros sobem na jangada, ela passa a percorrer o rio, ora subindo, ora descendo, ora indo da uma margem a outra. Aos meus olhos de leitor leigo, a jangada é aquele tipo de balsa fluvial, presa a um arame ou uma corda que vai de margem a margem, e que o barqueiro desloca puxando.
 
O livro já começa assim:
 
A corrente da jangada estava de cadeado no mourão plantado à beira-rio, ainda não chegara ninguém, não levaria menos de cinco, eram ordens... (...) puxando à mão o arame que, ligando uma margem à outra, fazia deslizar a jangada... (p. 3)
 
Em outros momentos, a jangada se larga “com mais de mil na buraqueira”:
 
...todos achavam que a esta altura já estavam bem no meio do rio, metade da viagem, o pior já havia passado, otimistas, mastigando sementes de jerimum e bebericando canequinhas de capilé, era o vento e era o sol, chegava um canto não se sabia donde mas chegava, havia paisagem e coisa-e-tal e coisas-e-loisas, a jangada correndo mais do que rápido, voando, nas asas do pensamento, era, voando, grito de Cipoal:
– Ei, estamos indo, pessoal!  (pág. 60)
 
Quem puxa a jangada é Cipoal, o barqueiro, um comandante introvertido e centrado, anfitrião das cinco pessoas que nas primeiras páginas vão aparecendo, de uma em uma: Dulce-Mil-Homens, a prostituta de bom coração e que impõe respeito; Amigo-Urso, um bicheiro com sua banqueta, seus lápis e seus cartões de aposta; Recombelo, um calunga (carregador) de caminhão; Cachimbinho-de-Coco, cordelista, com sua maleta de folhetos, cantarolador compulsivo de trechinhos de músicas; e Nô-dos-Cegos, um pedinte com sua cuia e seus óculos escuros, que em horas diferentes parece que vê e parece que não vê.
 
Cipoal recebe esses viajantes e começa então um percurso de convivência. Cinco anos transcorrem sem que a jangada chegue a destino algum, e sem que esse pessoal volte a descer em terra firme, a não ser para breves e surrealistas aventuras, que sempre terminam quando o “aventureiro” volta correndo para o ancoradouro da margem, pula dentro da balsa e Cipoal a puxa de volta para o meio do rio.
 
São cinco anos, que o autor divide em cinco capítulos:
 
1º. ano: a nuvem
2º. ano: a calda
3º. ano: a chuva
4º. ano: a cheia
5º. ano: o sol
 
O lado fantástico do romance se dá através dessa “prisão”, esse encarceramento voluntário que os prende à balsa, e que em alguns momentos tensos lembra uma versão mais lúdica do Anjo Exterminador, de Buñuel, ou do quadro A Balsa da Medusa,  de Géricault.


("A Balsa da Medusa")
 
Ou da jangada de vinhático do misterioso Pai imaginado por Guimarães Rosa em “A Terceira Margem do Rio” (1962).
 
Sob este último aspecto, escrevi aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/10/4632-primeiras-estorias-terceira-margem.html
 
Durante o tempo de permanência a bordo, barbas crescem e desaparecem da noite para o dia; árvores são plantadas e dão frutos; Dulce-Mil-Homens é acometida de uma febre parideira, dando à luz uma enfieira de meninos, de 15 em 15 dias; os passageiros veem-se ameaçados por enchentes, proliferações surrealistas de peixes e de criaturas aquáticas, ou pela “calda” (torrente de resíduos das usinas de açúcar, jogados no rio).
 
Há uma sequência bem surrealista (pág. 66 e seguintes) em que Cachimbinho-de-Coco bota na cabeça de encontrar a palavra “fadário”, e por isso desce à terra. Batendo rua, batendo calçada, vai parar numa mansão cheia de câmaras, ou quartos, cuja variedade de nonsense lembra aquele corredor infinito do desenho Yellow Submarine (1968) dos Beatles, onde cada porta se abre para algo espantoso.
 
Cachimbinho vai de porta em porta. Na primeira câmara, encontra “uma poesia escrita por Pedro Álvares Cabral”; na segunda, “Prometeu acorrentado, o diabo do abutre beliscando seu fígado e fazendo dele um patê”; na terceira, três salafrários dali da zona usineira, “os três loroteiros empedernidos Mucurana, Goguéia e Bole-Sem-Tempo”; na quarta, “uma mulher loura, loura e nua, nua e morta, descendo por um riacho, enquanto cantava endechas de cortar o mais doce coração”; e por aí vai.
 
Outra aventura nonsênsica é a de Amigo-Urso que desce à terra com a compulsão irresistível de reencontrar um canivete “marca Corneta” que teve na infância, e vai parar numa bodega sortida, cuja placa informa:
 
Compra-se e vende-se toda a espécie de objetos novos e usados – Aceitam-se mercadorias em consignação, pelo sistema de percentagem, contra promissórias e cheques sem fundos – FOB ou CIF – Objetos roubados – Penhores – Todo e qualquer negócio realizado em benefício do freguês depois dos interesses do proprietário – Cuidado para não ser enrolado – Olho vivo e muito siso – Pechinchas a preço de ocasião – Aceitam-se encomendas de morte – Ver para crer. (pág. 82)
 
A versão hermiliana de Realismo Mágico é nesse tom, uma mistura constante entre o cruamente verdadeiro e o estapafúrdio, mesclado o tempo todo com a gargalhada báquica e pantagruélica dos indivíduos de grandes apetites.
 
Não é o Nordeste do sertão, com o ascetismo de seus cangaceiros, o fantasma endêmico da seca, as vastidões silenciosas cravejadas de pedreiras. 

O Nordeste de Hermilo é a zona da mata, úmida, fértil, pulsante de húmus, lúbrica, machista, violenta, hedonista e cruel. É mais o Nordeste de Gilberto Freyre e de Jorge Amado do que o de Graciliano Ramos. E por toda parte as usinas de açúcar bombando, e os antigos engenhos se desfazendo em ruínas, enquanto a impingem do canavial se alarga, se espalha, botando abaixo a mata atlântica.
 
Leitor voraz e erudito, Hermilo salta com facilidade das piadas fesceninas do teatro de mamulengos para a dicção apocalíptica dos profetas:
 
Houve um golpe militar, um tristíssimo golpe militar em nome da liberdade; e nesse golpe militar viam-se cabeças rolando no meio da rua, pernas penduradas nos fios elétricos, testículos nos açougues, intestinos enlaçados nas árvores; miolos esparramados pelo calçamento, e houve a morte lenta, conseguida depois de cada centímetro de dor; e houve um morto em cada casa e os homens se transformaram em inimigos dos homens...  (pág. 97-98)
 
É um grande título desse gênero nebuloso que seria o “romance fantástico nordestino” onde já brilham o Romance da Besta Fubana (1984) de Luís Berto, o Romance da Pedra do Reino (1971) de Ariano Suassuna, As Pelejas de Ojuara (1986) de Nei Leandro de Castro, A Cachoeira das Eras (1979) de Carlos Emílio Corrêa Lima... até títulos mais recentes como A Dançarina e o Coronel (2014) de Aldo Lopes e O Espelho dos Girassóis (2020) de Maviael Melo.
 
E muitos mais, é claro; estou citando de cabeça os autores com quem tenho alguma proximidade, e títulos que me passaram pelas mãos nos últimos meses. Com esse negócio de pandemia e quarentena, o tempo parece que parou de correr. Ou corre numas direções, e fica parado em outras. Hermilo, mais uma vez, é quem tinha razão:
 
...mas a jangada corria, correndo sem sair do lugar, ora já se viu que coisa... (pág. 18)
 
A gente saindo amanhã bem cedinho talvez chegue ontem. (pág. 20)
 



 
 
 
 
 
 
 
 






sexta-feira, 15 de abril de 2022

4813) "The Batman": o Homem que Bate (15.4.2022)

 

 
Tenho boas lembranças de ler gibis do Batman em nossa antiga casa na Rua Miguel Couto. Mudamos dali em 1960, de modo que posso contar umas seis décadas de convivência com o Cruzado De Capuz. Li os gibis; assisti fartamente a série de TV com Adam West; voltei anos mais tarde pelas mãos de Frank Miller; vi alguns dos filmes (numerosos e desiguais) feitos dos anos 1990 para cá; li algumas graphic novels.
 
O filme recente de Matt Reeves tem suas ênfases neste ou naquele aspecto da lenda ou do lore do personagem. É o que se espera de cada nova abordagem. Uma coisa que ele mantém, em relação aos filmes recentes de Christopher Nolan, é o aspecto trevoso, a pirotecnia nas perseguições e nas catástrofes, o impacto sonoro das porradas.
 
E isto é o que acaba fazendo emergir em mim uma lembrança difusa de infância, de quando eu lia alternadamente gibis do Batman e do Superman, e raciocinava que Superman não tinha o direito de dar socos de verdade nos bandidos, porque ele tem superpoderes, supermúsculos e supernós-dos-dedos, e poderia desintegrar o crânio de alguém; mas o Batman pode, porque ele não passa de um ser humano, fisicamente normal.
 
E não está no gibi o que o Batman soca, esmurra, cotovela, chuta e espanca nesses filmes. Não são só os filmes dele, é claro. Poderíamos até diagnosticar a existência de um gênero chamado “Testosterona Thrillers”, onde história, tema e personagens são irrelevantes, por serem meros pretextos para tiroteios, explosões, perseguições de carro... e socos, muitos socos. Como bate esse pessoal.
 
“Bater era um prazer. Havia um prazer especial em sentir as coisas se partindo, em sentir as coisas afundando-se e cedendo. Com o soco-inglês metálico encaixado nas falanges, com os poderosos músculos contraídos no braço que parecia uma jibóia, o sangue latejando nas têmporas, as mãos dele eram como dois aríetes poderosos esboroando, rachando, botando abaixo as muralhas obtusas da História.” 
 
Há todo um Fahrenheit 451 a ser escrito sobre esse prazer profano dos homens jovens (principalmente), um prazer mais legalizado do que o de queimar.


Bater é um descarrego físico que cumpre alguma função terapêutica inconsciente. Muitos homens deveriam ter em casa um daqueles sacos de areia dos boxeadores, pendurados no teto, para poderem descarregar suas raivas e voltar a si. A criminalidade cairia. É um impulso primitivo, como o de cravar dentes ferozes num naco de picanha ensanguentada.
 
Uma vez um cara me disse: “Estou com vontade de aprender a tocar bateria.”  Eu disse: “Acho uma boa idéia, desde que você entenda que a bateria é um instrumento musical, e não um veículo para descarregar as frustrações da vida.” Ele disse: “O que eu quero é descarregar as frustrações da vida.” Tenho o direito de dizer que ele estava errado?...
 
“Bateria” é um nome curioso de instrumento, porque vem do verbo bater; no caso, espancar com bastões. Tocar tambores cumpre uma função parecida com a de esmurrar sacos de areia acolchoados. Cumpre uma função parecida com a daqueles estabelecimentos suíços onde o sujeito entrava, pagava algo como dez dólares, e podia ficar meia hora lá dentro, por entre milhares de pratos e utensílios de louça barata, arrebentando o que bem entendesse.
 
Alguém vai ponderar que a maioria das pessoas não sente esse impulso, e eu concordo, mas acho que um dos problemas do mundo está nas pessoas que o sentem.
 
Tudo isto parece estar na raiz do visível tormento existencial do Bruce Wayne interpretado neste filme por Robert Pattinson. Diferentemente da empáfia autossuficiente do Bruce Wayne de, por exemplo, Christian Bale, Pattinson evoca (o diretor-roteirista o confirma) o sofrimento passivo de um Kurt Cobain do “Nirvana”, um indivíduo arredio, introvertido, dono de um poder que não controla e de uma inteligência que não consegue apaziguar.
 
Este Bruce Wayne é um guerreiro gótico com vibe de emo, um personagem tragicamente híbrido. Uma mente criptográfica, introspectiva, hospedada a contragosto num corpo que quer inflar-se, quer explodir, quer pilotar a 300 km por hora, quer voar, quer bater, bater.
 
Quando ele está de terno ou de roupas comuns, parece magro. Tem aquela aparência insalubre de quem não vê o sol há séculos, é um tipinho nosferal, caligaresco. Em alguns momentos, quando as mechas rebeldes de cabelo escuro lhe caíam sobre a testa larga, imaginei estar vendo na tela John Cazale, aquele emblema da neurose humana.



Quando ele enverga a armadura de Batman... Aí sim, ele é só músculos, triunfal como um The Rock, maciço como um Everest, rápido como uma Lucas-ship fazendo manobras em "V" no vácuo. Um Mr. Hyde desabrochando em plena maldade, finalmente livre, sentindo-se, como diz a canção de Caetano Veloso, “feliz e mau como um pau duro”. Do Bruce Wayne agora escravizado restam sob a máscara apenas os olhos, dois botões de angústia, e a boca lacônica e crispada.  
 
O desespero de Wayne é perceber que sua atividade de “vigilante” gerou um copycat como o Charada, um imitador psicótico que, como todo psicótico, interpreta seu ídolo como uma versão não-censurada de si mesmo.
 
Quem combate a violência com violência gera um loop do qual não se foge. Ele tenta fugir quando, por pelo menos duas vezes, no filme, evita que a Mulher Gato mate um vilão. Quando os dois estão juntos, ela o chama de “bat boy”, trocadilho com “bad boy” que a legenda traduz como “morcegão”. (Talvez uma alternativa fosse: “É você de novo, amorcego?...”)
 
O Wayne de Reeve/Pattinson ganha um pouco daquela aura de herói trágico que tem o Paul Atreides de Duna (refiro-me ao livro original de Frank Herbert). O herói a contragosto, um dom-sebastião messiânico que se sente desconfortável na missão que lhe cobram, o jagunço-sniper que não quer ser chefe do bando... O cara de boa índole que aceita liderar uma guerra por temer que talvez ponham no lugar dele alguém que não tem os seus escrúpulos, os seus valores, o seu equilíbrio... E lá vai ele, o pacifista frustrado, começar mais uma guerra.
 
Não é muito diferente do drama de T. E. Lawrence, o da Arábia, que a certa altura das guerras no Saara tem que matar alguns inimigos... e descobre, horrorizado, que gostou.


(T. E. Lawrence)

Todos esses indivíduos experimentam em si (porque são, teoricamente, personagens com uma inteligência e uma sensibilidade superior à média) essa contradição entre primitivismo e civilização, ou entre os prazeres puros e não-censurados do primitivismo... e o mal-estar da civilização.
 
Bater, bater, bater... Uma vez primitivos, primitivos até morrer. O ser humano não é um fantasma dentro de uma máquina, é um vidente montado num tigre.
 
O Homem Que Bate, mesmo quando se ilude com o discurso de que está castigando malfeitores ou defendendo a ideologia correta, não consegue ocultar de si mesmo (e muito menos das câmeras de cinema, essas deusas mitológicas que tudo veem e tudo revelam) o prazer que sente ao esmigalhar cartilagens.
 
Qual a solução? Ninguém sabe. Mas vale lembrar que o verbo bater em inglês pode ser “to beat”, no que se aplica surras, socos, etc.; mas que a palavra “beat” pode significar “batida” no sentido musical. Pancada, mas pancada rítmica. Bateria, mas bateria de tambores.
 
E que o verbo imperativo “beat it” significa “cai fora, sai dessa, te manda”.
 
https://www.youtube.com/watch?v=oRdxUFDoQe0
 
Beat It (1983), um videoclip famoso de Michael Jackson (escrito e dirigido por Bob Giraldi), mostra Jackson interferindo numa briga de gangs e pondo os brigões para dançar.
 
Nem todas as formas de violência podem ser sublimadas em música, mas algumas podem. Nada impede que alguém faça um spin-off da saga de Gotham City e introduza um novo personagem, The Beatman. 



 







terça-feira, 12 de abril de 2022

4812) Linhagem de sangue e linhagem de poder (12.4.2022)




Existem dois tipos de linhagens (=transmissões hereditárias de valores, de uma geração para outra, através dos séculos).
 
A linhagem de sangue é a que os pais e as mães transmitem aos seus filhos. Em termos modernos, é a linhagem genética, baseada no DNA. As descobertas genéticas dos últimos 100 anos deram mais nitidez a esse conceito, que o termo “sangue” deixava num terreno muito simbólico. Hoje podemos saber quem é filho biológico de quem –  e principalmente quem não é filho de quem – com um alto grau de certeza.
 
A linhagem de poder é tradicionalmente a herança do ducado, do baronato, dos títulos de nobreza que passam de pais para filhos. A posse das terras, das capitanias hereditárias, das riquezas acumuladas, dos servos, das tropas, de toda a parafernália medieval e feudal que compôs nossa cultura. Mais modernamente, no mundo “republicano”, é a transmissão hereditária de outros tipos de poder: cargos políticos, ações de grandes empresas, contatos e compromissos formais e informais no interior de grupos importantes.
 
Nesse drama genealógico está fundamentada toda uma literatura, todo um teatro, todo um cinema, toda uma novelística da televisão. Em um milhão de narrativas sobre outros assuntos, a certa altura surge o velho drama: é preciso provar que “A” é filho(a) de B, uma informação totalmente inesperada na história até então; ou então provar que “A”, que se supunha filho(a) de B, não o é de fato.
 
Para que? Para que o poder e a fortuna sejam transmitidos a quem é da mesma linhagem biológica.
 
Cada reviravolta folhetinesca desse tipo envolve mil circunstâncias dramatúrgicas – infidelidades conjugais, morte e substituição de bebês, bebês problemáticos que alguém entrega a um lenhador para que o mate... Alguém já viu lenhador matar bebê?! Não: ele esconde, cria, espera crescer... só pra ver a encrenca futura.
 
O ideal da mentalidade aristocrática, pelo que imagino, é que as duas linhas coincidam sempre. Que as riquezas materiais, o poder material (seja um castelo, seja uma vaga no Congresso Nacional) permaneçam sempre em mãos das mesmas linhagens genéticas que as administram há séculos (aqui na América), ou milênios (na velha Europa).


Vi pouco tempo atrás um excelente filme de Dino Risi, Aquele Que Sabe Viver (“Il Sorpasso”), onde Vittorio Gassman faz um playboy espertalhão e bon-vivant, e Jean-Louis Trintignant o estudante modesto que por acaso torna-se seu companheiro de farra ao longo de dois dias.
 
Gassman é malicioso, bonitão, conhece as sacanagens do mundo. Jean-Louis o leva para conhecer um velho casal de tios ricos que moram na província. Tomam chá com os tios, com o filho deste, o pomposo e engravatado “primo Alfredo”, e o capataz da herdade. A certa altura, Gassman sussurra no ouvido do amigo: “Você tem consciência de que seu primo Alfredo é filho do capataz, não?... Olhe só... A cara... a envergadura... o gesto que faz com a mão...”   


(a tia e o capataz)

E Jean-Louis, que convive com aquelas pessoas desde a infância, fica aterrado por essa verdade, que salta aos olhos.  Naquele instante, é como se se descobrisse numa árvore vetusta e centenária um enxerto de um parasita que ali se instalou para roubar-lhe a seiva, e quem sabe para um dia matá-la por estrangulamento vagaroso, e ocupar seu lugar na terra.
 
É a invasão genética dos plebeus. Vingam-se de séculos de opressão plantando, nas linhagens de poder, a infiltração vagarosa de seus genes egoístas, que daqui a um século estarão desfrutando das fortunas construídas às custas da servidão de seus antepassados.
 
A ironia, no filme de Dino Risi, é que essa infiltração, que poderia parecer uma revolucionária tomada do poder pelo povo,  é o contrário. Porque o “filho do capataz” tem um discurso proto-fascista que agrada tanto aos seus “pais jurídicos”, pequenos proprietários rurais, quando ao seu “pai biológico”, o capataz, que ao fim e ao cabo está se lixando para política e para o povo, quer apenas que seus cromossomos-transmitidos comam do bom e do melhor.
 
Filhos adúlteros, filhos ilegítimos, filhos bastardos, filhos adotados... Todos estes personagens de novela-das-oito são candidatos ao poder e à glória, e o único obstáculo é o diabo da genética.
 
E isto se complica quando pensamos que os detentores do poder – os reis, os nobres, os fidalgos, os senhores de engenho, os coronéis sertanejos – são muitas vezes um bando de garanhões impenitentes, passando no rodo qualquer mulher desprevenida que se atravesse na sua frente. Afinal, como diz o ditado popular, “triste do poder que não pode”. Ou seja: é digno de pena o sujeito que, dispondo do poder, hesita em usá-lo.
 
Uma antiga historieta fala de um príncipe que estava cavalgando pelos seus domínios quando avistou um jovem aldeão mais ou menos da sua idade, e praticamente um sósia dele. O príncipe inquiriu: “Você aí, rapaz. Caramba, como nós somos parecidos, dir-se-ia que somos irmãos. Sua mãe por acaso já trabalhou no palácio real?”  E o rapaz respondeu: “Não, Alteza, mas meu pai sim.”
 
E há aquela divertida canção gravada por Shawn Elliot (“e a torcida do Flamengo”), “Shame and Scandal in the Family”. Um rapaz se apaixona por uma garota. Diz isso ao pai, que responde, triste: “Não, meu filho, não pode ser. Essa garota é minha filha, mas sua mãe não sabe.” O rapaz, inconformado, vai se queixar à mãe. A mãe dá uma gargalhada e diz a ele: “Vá em frente! Você também não é filho dele, mas ele não sabe.”
 
“Shame and Scandal in the Family”:
https://www.youtube.com/watch?v=5rIKIvZVj7M
 
 
(Il Sorpasso) 
 




sábado, 9 de abril de 2022

4811) A ficção poética (9.4.2022)



 
Um recente livro de poemas de Fabrício Corsaletti (Engenheiro Fantasma, Companhia das Letras, 2022) parte de uma curiosa premissa ficcional, que o afasta do simples território do “livro de poemas” para o território, não tão distante assim, da narrativa em versos.
 
Fabrício Corsaletti (que não se perca pelas iniciais) propõe uma hipótese, não de FC, mas de “História Alternativa”. No prefácio, ele relata um sonho em que conheceu, num hotel de Buenos Aires, um homem de seus 60 anos, e percebeu em seguida que se tratava de Bob Dylan. O verdadeiro. O “outro”, o que circula por aí, ganhando prêmios e fazendo shows, é um mero dublê, um sósia – de recursos vocais bastante limitados, aliás.
 
Dylan teria dado um pontapé no showbiz e fugido com a família para Buenos Aires, incógnito. Lá escreveu um livro intitulado 200 Sonetos, e no sonho Corsaletti chegou a ver o livro numa banca de revistas, mas quando estendeu a mão para tocá-lo... acordou.
 
Começou então a escrever por conta própria os sonetos desse Dylan portenho, que constituem o presente livro, Engenheiro Fantasma (título de um fragmento inédito, que Dylan acabou transformando em outra canção).
 
É portanto uma espécie de poesia épica, por assim dizer – onde o que conta não é a expressão de sentimentos íntimos de um indivíduo, mas a produção de uma narrativa. Em Engenheiro Fantasma, os poemas não contam uma história: fazem parte de uma história mais ampla. Seria uma espécie de poesia ficcional, como os Cânticos de Ossian de Mac Pherson ou o Livro das Horas de Sóror Dolorosa de Guilherme de Almeida. Poemas ficticiamente atribuídos pelo autor a outra pessoa. (O pulo-do-gato de Corsaletti é atribuir tudo a um sonho, o que deixa a hipótese toda num território crepuscular.)
 
Curiosamente, são poucas as referências diretas e inequívocas a Dylan no livro, sendo a principal delas o soneto 27, que é praticamente uma paráfrase/recriação de “All Along the Watchtower”:
 
27
“os mercadores bebem do meu vinho
e falam alto, dando gargalhadas
eles pensam que a vida é uma piada
quero sair desse redemoinho”
 
disse o coringa, “procuro um caminho”
o ladrão respondeu: “não faça nada
nem diga falsidades, camarada
a hora está chegando, eu adivinho”
 
os príncipes na torre sentinela
vigiavam o panorama inteiro
entre mulheres e servos descalços
 
ouviu-se um gato na noite amarela
logo avistaram-se dois cavaleiros
o vento assobiou no cadafalso
 
Acho que vejo outras canções citadas en passant (“Leopard-Skin Pillbox Hat”, “Crossing the Rubicon”, “Dark Eyes”, “When I Paint my Masterpiece” etc). Porém, o que há de interessante no livro, além da premissa, é o verso fluente e coloquial do autor, que escreve “ao correr da pena”, sem pretensões simbolistas ou parnasianas, e vai cravejando pequenas frases brilhantes ou divertidas na estrutura do soneto.
 
17
(...) eu deveria acender uma vela
queimar meu passaporte e minha mala
 
12
ontem eu vi o show de umas garotas
os clássicos do tango com guitarras
panteras metafísicas com garras
forçando o leme e alterando a rota //
das melodias, bebi gota a gota
do melaço vocal livre de amarras
tomei um porre de cerveja em jarra
notei que a baterista era canhota (...)
 
18
estou sempre diante do mistério
quando te encontro, Senhorita M
seus olhos rimam, sua boca treme
o nariz aldeia, o cabelo império (...)
 
16
(...) estamos dentro de um instante raro
num café que é agora e é já lembrança
 
 
Corsaletti escreve sonetos à maneira moderna, abrindo mão das maiúsculas no início de verso, usando com frequência as rimas toantes (embora prefira as rimas exatas do modelo tradicional). Usa de ponta a ponta o formato clássico italiano, mais familiar a um brasileiro do que a um norte-americano como Dylan: ABBA-ABBA-CDE-CDE.



Outra experiência nessa mesma linha é um livro recente de Carlos Newton Júnior, Memento Mori - Os Sonetos da Morte (Nova Fronteira, 2020), em que ele reúne 100 sonetos atribuídos à Morte. (Quase todos em formato italiano, com um ou outro no formato inglês.) 
 
É ela quem se dirige na primeira pessoa a todos os humanos, ou ao leitor, ou a um grupo em especial... É a Morte quem fala o tempo inteiro, uma Morte irônica, coloquial, irreverente, às vezes cruel quando sugere os sofrimentos por que o leitor há de passar, às vezes desdenhosa quando comenta as tentativas fúteis de quem tenta escapar-lhe. Ora distante, ora cúmplice, ora solene, ora sarcástica, é ela quem dá as cartas:
 
31
Não há no meu palácio uma outra porta
que não seja a de entrada. Desde antanho
jamais eu solto o pássaro que apanho,
e o elo com o vivido aqui se corta.
 
Não há festa ao entrar. E o que me importa?
A tristeza profunda – eis o meu ganho.
A todos, amparando, eu acompanho,
quem me conhece logo se comporta.
 
O passado se foi: a fama, o nome,
agora nada conta ou interessa.
A luz, entrando aqui, em treva some.
 
A minha marca em todos tenho impressa.
Ninguém jamais se cansa, dorme ou come,
o tempo aqui não passa – e não há pressa.
 
A Morte não faz segredos daqueles que compõem, segundo ela, “minha milícia”: “Um qualquer assassino, um pistoleiro, / um chefão, um maluco, um genocida, / um cruel psicopata, um homicida, / desses que escondem corpos num bueiro”. Não faz segredos da sua indiferença pelas convenções humanas: “Às vezes colho a flor antes do fruto / e levo o filho sem levar o pai.”
 
Tem aqui e ali a lembrança de episódios clássicos de sua história:
 
Um dia, já faz tempo, um cavaleiro
ousou desafiar-me no xadrez. (...)
Achou que com seu jogo salvaria
algum jovem casal de saltimbancos;
percebi como agia pelos flancos
e ataquei com maior selvageria...
Ah, tão honrado e digno cavaleiro!
Pra contentá-lo eu o levei primeiro...
 
A Morte que escreve todos esses sonetos é portanto uma criação ficcional.  Assim como o livro de Corsaletti é atribuído a um “Dylan” que não passa de pretexto fabulatório do autor, a “Morte” de Carlos Newton faz o mesmo papel. Os dois livros não “contam uma história”: são conjuntos homogêneos e épicos de poemas que cumprem uma função narrativa, fabulatória, de ilustração a uma história subentendida.
 
E por que o soneto?
 
O soneto já foi a mais nobre e a mais popularizada das formas poéticas brasileiras. Imperou na segunda metade do século 19, mas não é exagero afirmar que grande parte dos sonetos mais impactantes de nossa poesia se deve a autores do século 20: Vinícius de Moraes, Jorge de Lima, Mario Quintana, Carlos Drummond, Ariano Suassuna, Manuel Bandeira, Glauco Mattoso...
 
Harry Mathews, numa conversa com John Ashbery, dizia que o soneto já foi difícil numa certa época, mas não é mais. É uma forma já familiar a todo mundo, e de certo modo já “domesticada”, já incorporada ao ouvido melódico do poeta e também do leitor. O soneto italiano é hoje, para um poeta brasileiro com domínio das formas fixas, quase tão simples de escrever como a sextilha do cordel. A forma em si deixa de ser um desafio a ser enfrentado; é um instrumento. Ou melhor, é um recipiente já pronto onde as “coisas a dizer” são derramadas.
 
Nasce daí uma crítica frequente à poesia em formas fixas – a de que, se métrica e rima são obrigatórias e estão sendo obedecidas, o autor se dispensa de usar linguagem “poética” e produz apenas uma espécie de prosa. Banal, opaca, diluída, sem graça – mas impecavelmente rimada e metrificada.
 
Não é o caso destes dois livros: neles, a forma “soneto” é adotada quase como um instrumento musical (poderia ser outro) para e execução daquela peça narrativa. O soneto isolado não é um fim em si, é um meio usado para compor um mosaico amplo de situações e idéias.