sábado, 28 de fevereiro de 2015

3750) Spoilers (1.3.2015)




(Agatha Christie)




Quando o cartunista Péricles fazia “O Amigo da Onça” na revista O Cruzeiro, um dos meus preferidos era o que mostrava uma fila na bilheteria do cinema e o Amigo da Onça saindo da sessão anterior e repetindo, enquanto caminha ao longo da fila: “O assassino é o pai da moça... o assassino é o pai da moça...”  

Eu já lia Agatha Christie; era capaz de captar a crueldade dessa ação. Quando uma narrativa (filme, livro, etc) coloca todo seu peso no aparecimento de um enigma e sua posterior resolução, saber essa solução antecipadamente estraga 90% do prazer.

Daí que um debate antigo na literatura policial tenha sido o de manter a presença e o interesse do enigma, mas de tal maneira que ele não seja o único motivo pelo qual o livro está sendo lido.  

Um leitor do O Caso dos Dez Negrinhos de “Dame” Agatha pode, mesmo sabendo quem é o “vingador invisível”, reler o livro somente pelo clima de suspense, pela detalhada criação de personalidades.  Mas nem todo livro dela se sustenta para quem já sabe o final.  

Um volume de análise muito interessante (A Talent to Deceive – An Appreciation of Agatha Christie, 1980, de Robert Barnard) previne o leitor, na introdução, de que os capítulos de 4 a 6 são obrigados, por serem capítulos de análise técnica dos enredo, a revelar o final; mas o autor avisa que os demais capítulos podem ser lidos sem susto, pois não revelam mais nada.

Não é só com o romance policial.  Muitas obras de literatura mainstream têm revelações finais que são cruciais para o enredo, e que não são necessariamente sobre um crime. Pode ser uma revelação de identidade, como em Grande Sertão: Veredas, ou a descoberta de que o mundo não é o que parece ser, como em tantos romances de ficção científica. 

O mistério e o enigma não pertencem apenas à literatura de crime. Eu gostei muito dos desfechos de A Misteriosa Chama da Rainha Loana de Umberto Eco, ou de A Invenção de Morel de Bioy Casares. Se vier a escrever sobre esses livros, terei que omitir informações, para que o leitor leia em paz, fique impregnado do livro por inteiro, e possa extrair desses momentos literários a satisfação que eles pretendem produzir. 

Como resenhar livros dessa natureza?  Eu diria que a uma solução possível é: 

1) resenhar o romance descrevendo-o apenas em parte; 

2) prevenir o leitor de que o enredo se baseia em algum tipo de surpresa ou resolução de enigma; 

3) criar um certo suspense sobre o não-dito.  Deixar que a consciência de que há “spoilers” (revelações inoportunas) à espreita funcione como um atiçador a mais da curiosidade do leitor, e é melhor ainda que ele não saiba ao certo qual aspecto da história está sujeito a spoilers.





sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

3749) "The Black Room" (28.2.2015)



Colin Wilson, escritor existencialista britânico, propôs o conceito de “outsider” para designar o indivíduo inquieto, rebelde, movido por uma intensa busca de sentido na vida, e que tanto pode derivar para a grande arte quanto para o crime.  Muitos livros seus têm como centro personagens que realizam essa busca.  Neste romance de 1971, a história acompanha o compositor erudito Christopher “Kit” Butler, que aceita, meio na esportiva, o convite de um amigo que faz parte do Serviço Secreto britânico, o MI5, para participar de uma experiência científica como cobaia altamente qualificada.  A experiência, realizada numa espécie de hotel-com-laboratório num lugar remoto, consiste em submeter-se durante dias à experiência da total privação dos sentidos da visão e (tanto quanto possível) da audição.  O objetivo é medir o grau de resistência ao tédio e ao isolamento, para seleção e treinamento futuro de espiões.

Butler é o porta-voz das teorias de Wilson, e discute com os cientistas e as outras cobaias sobre energia mental, concentração, autocontrole emocional, etc.  Ao mesmo tempo, ele percebe que outras agências, como a CIA, a KGB e uma misteriosa “Estação X”, espionam as pesquisas dos ingleses.  Na segunda parte do livro, Butler, já aprovado, está em Praga numa missão um tanto inócua mas arriscada. É sequestrado e depois de algumas aventuras violentas vai parar na sede da misteriosa Estação X, onde se defronta com um chefe cheio de teorias próprias sobre o assunto.

Em matéria de escritor popular, conheço poucos como Colin Wilson capazes de encadear uma discussão filosófica e psicológica superficial, mas que faz sentido, com aventuras e um senso de realidade satisfatório.  Os seus romances policiais são bem melhores que sua ficção científica, e The Black Room lembra um pouco aquelas histórias de espionagem cheias de traições, subentendidos e reviravoltas, tipo John Le Carré.  O único defeito do livro, se é que é defeito e não um corte ousadíssimo, é que ele não acaba, interrompe-se bruscamente.  Há um desfecho em vista, mas precisaria de mais 20 ou 30 páginas para dar-lhe alguma conclusão satisfatória numa situação política tão complicada, embora haja algumas alusões interessantes à política européia de 1968. 

Pode-se dizer de Wilson o que já foi dito de Philip K. Dick: que a leitura de sua obra pode começar com qualquer título, porque sua visão do mundo está inteira em cada um, e cada um conduz aos demais como se todos fossem continuação de todos. A fé infatigável de Wilson nos poderes da mente humana perpassa sua filosofia, seus romances populares, suas antologias, sua obra sobre crimes e sobre ocultismo.







3748) Livros ilustrados (27.2.2015)



(ilustração de Poty para O Púcaro Búlgaro, de Campos de Carvalho)


O pesquisador João Antonio Buhrer postou no Facebook imagens de livros ilustrados pelo curitibano Poty. Obras de Campos de Carvalho, Guimarães Rosa, Jorge Amado e muitos outros.  

Houve um tempo em que era uma prática corrente em nosso mercado editorial lançar romances ilustrados.  Nosso conterrâneo Santa Rosa produziu ilustrações extraordinárias para obras de José Lins do Rego, Graciliano, Drummond e Jorge Amado. 

Hoje em dia, isso parece que acabou.  Se pegarmos ao acaso 100 romances (ou livros de contos) brasileiros lançados ano passado, de diferentes editoras, quantos deles terão ilustrações internas?

A ilustração encarece o livro? Não acho. Por outro lado, tem editora encarecendo livros ao imprimi-los, pretensiosamente, em papel cuchê, papel brilhante de todo tipo.  Olhe, é um absurdo imprimir em papel brilhante um livro para ser lido. A gente tem que ficar procurando um ângulo que não reflita a luz em nossos olhos  Papel de livro tem que ser fosco. Ponto final.  

E um romance ilustrado não precisa de papel de gramatura alta ou com brilho. Livro de arte, livro de fotografia, tudo bem.  Mas um livro onde o foco é no texto e a ilustração é complemento, essa ostentação não é necessária. Em geral, ilustrações como as de Poty ficam com seu valor estético intacto em qualquer tipo de papel.

Dizem que “livro ilustrado é livro para crianças”.  Já vi leitores metidos a sofisticados dizendo do livro de alguém: “O livro é cheio de figurinhas, até parece que é pra leitor analfabeto”. 

A verdade é que existem analfabetos da escrita e analfabetos da imagem. Um leitor desse tipo não sabe o que está perdendo, e talvez não saiba nem o que está ganhando.

Idealmente (cada caso é um caso, sempre) um livro ilustrado deveria pagar “luvas” ao ilustrador pela execução da encomenda (toda obra encomendada tem que ter uma paga extra, fora o recolhimento de direitos autorais), e uma percentagem do preço de capa, tal como o autor recebe.  As fórmulas são muitas, e devem ser conversadas em cada trabalho. 

Alguns livros pagam um preço fixo ao ilustrador, e tchau. Outros pagam uma percentagem a ele, sem mexer nos 10% do autor (o mínimo que um autor deve receber). Em outros casos, a percentagem do ilustrador é diminuída da do autor, este ficando com 9% e o ilustrador com 1%. Também há divisões de 5% para cada, quando a proporção do volume de material criado por cada um seja essa. 

A ilustração não está ali para explicar o livro, para torná-lo mais fácil de entender, e sim para tornar o livro mais complexo, mais rico de informações, produzindo um diálogo entre dois criadores, mesmo quando é um diálogo em que um dos dois toma a dianteira.






quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

3747) Os nomes das ruas (26.2.2015)



(rua em Paraty, RJ)

Nomes de ruas já foram flashes de poesia ou de humor, ou serviram como uma polaróide-de-época, ou indicaram pequenos mistérios que um estrangeiro custa a decifrar.  

Vi um dia desses uma foto de uma placa inglesa, com o comentário embaixo: “A placa mais triste de todos os tempos”.  A placa dizia: “Carters Lane, antiga Wibbly-Wobbly Lane”.  “Wibbly-Wobbly” é um termo wibbly-wobbly de traduzir. Significa algo tortuoso, acidentado. Em termos nordestinos, a placa citada seria como trocar “Rua do Catabí” por “Rua Bonifácio Magalhães”. Tem coisa mais sem graça?  

Portanto, vou logo avisando: quando eu morrer não quero meu nome em rua.  Se quiserem me homenagear, criem uma biblioteca onde não existia nenhuma, e botem meu nome. Ou qualquer outro.

Alceu Valença tem uma canção (“Pelas ruas que andei”) homenageando os nomes das ruas de Recife e Olinda, talvez as cidades com nomes mais poéticos.  Nunca esquecerei que minha avó Clotilde, já velhinha, morava na Rua das Moças.  Quando eu era menino, passei muitas férias na casa dela na Rua Subida do S, no Fundão, nome que eu achava tão descritivo (a rua era exatamente isso, uma ladeira em forma de S, lembrando a sextilha famosa de Pinto do Monteiro) que o utilizei anos depois no meu romance A Máquina Voadora

O Rio ainda tem a Rua das Marrecas, a Rua do Teatro, a Rua do Jogo de Bola, a Rua da Quitanda, a Rua da Alfândega, a Rua do Paraíso e outras que talvez não demorem a ser rebatizadas com o nome de algum picareta municipal, cavalheiro-de-indústria estadual ou bilionário-provisório federal. 

Quando morei em Salvador, procurei casa no bairro do Garcia, e descobri a Rua dos Artistas. Saí batendo de porta em porta perguntando se não havia alguma casa para alugar ali.  Não havia, e o mais que consegui foi acabar morando na Rua Vítor Meireles.  (O fato de depois ter morado, no Rio, na Rua Pedro Américo me pareceu uma rima com essa moradia baiana.)  

A rua em que nasci, em Campina Grande, era chamada de Rua dos Paus Grandes (“honni soit qui mal y pense”), devido a umas árvores enormes que a enfeitavam nos idos de 1950.  É aquela rua que desce do final do Beco dos Bêbos (cujo nome oficial ninguém sabe) e vai até o Ponto Cem Réis.

Não são somente os nomes de ruas.  Drummond viu a cidadezinha de Brejo das Almas ser rebatizada como Francisco Sá; revoltou-se, e imortalizou o nome no título de um livro seu. Muitas vezes os nomes novos não pegam. O povo continua a dizer o nome enraizado na memória coletiva.  

E é tão bonito alguém poder dizer que mora Rua da Floresta, Rua da Passagem, Rua da Aurora, Rua das Palmeiras, Rua das Ninfas, Rua da Boa Hora.



terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

3746) Nossos bilionários (25.2.2015)



(ilustração: www.nationofchange.org)

Os dados são de 2013-2014, mas os números absolutos não importam muito. Vi-os no saite da revista Exame (http://tinyurl.com/oyuvsk6), com dados da consultoria Wealth Insight.  Outras fontes dão outros números, por diferença de metodologia. Uma fortuna inclui ações e outros papéis (e seu valor momentâneo), participação em lucros, contratos vigentes, valor de propriedades imobiliárias, etc. 

Mas, resumindo: a matéria diz que o Brasil ganharia 17 mil milionários em 2014, 8,9% a mais em relação a 2013, que era de 194.300 milionários. A estimativa é de que com mais cinco anos, em 2018, haja no país um total de 407 mil milionários. (Como esses cálculos são estrangeiros, imagino que o critério seja o dólar, ou seja, milionário é quem tem mais de um milhão de dólares, ou 2 milhões e meio no câmbio atual, mais ou menos). E os bilionários?  Cito: “Em 2012, o país tinha 49 bilionários com uma fortuna combinada de US$ 300 bilhões. Neste ano, o país ganhou um bilionário, mas o total acumulado entre eles caiu 13,7%, para 259 bilhões de dólares. Eike [Batista] é responsável por aproximadamente metade desta queda.”

Não acho, como os anarquistas barbudos, que toda propriedade é um roubo. Vai ver que uma boa fatia desse dinheiro é dinheiro justo, de quem (pra usar o jargão vigente) aqueceu a economia, gerou empregos, botou produtos nas prateleiras, pagou seus impostos.  Muitos herdaram suas fortunas, e, como já disse um aristocrata inglês, “quem herda dinheiro roubado não roubou”.

Precisamos de uma revista misturando a Forbes e a Nature, para estudar cientificamente os bilionários e milionários. Dinheiro transforma a gente. Eu mesmo, quando estou com a conta bancária cheia de zeros, fico com 10 metros de altura e 900 anos de vida pela frente.  Só não saio voando porque os bolsos estão pesados.  E esses caras? Em que pensam? Que tipo de olhar eles dirigem para os pobres? (Não falo dos famintos do Sudão ou da Nigéria: falo de mim e dos meus leitores.) São indivíduos soturnos, misantrópicos, de cérebro lagartiforme, faturando fortunas a golpes de ambição e de perfídia?  São hedonistas construindo palacetes submarinos, satélites-de-lazer, bordéis repletos de andróides e ginóides?  São capitalistas truculentos à velha moda, esmagando a concorrência, jogando dez mil famílias na miséria enquanto cuidam da catarata do seu rotweiler? Mistério.

Bilionários e milionários, sejam eles xeiques sauditas, executivos de Manhattan ou playboys latino-americanos, são uma nova espécie criada em nosso tempo, e estudá-los pode lançar luz sobre o rombo no casco do nosso Titanic, mesmo que já seja tarde demais para consertá-lo.




segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

3745) Oliver Sacks (24.2.2015)



Oliver Sacks, neurologista e escritor, ficou famoso ao ser interpretado por Robin Williams no filme Tempo de Despertar, onde ele faz o médico que trata de um paciente (Robert de Niro) que está há anos em estado vegetativo.  O médico inventa uma complicada terapia para trazê-lo de volta à consciência, e consegue.  Depois, médico e paciente percebem que o tratamento funciona, mas não por muito tempo, e este se vê condenado a mergulhar de novo nas trevas. Lembra muito a situação do clássico de FC “Flowers for Algernon”, de Daniel Keyes (1959).

Sacks, de 81 anos, publicou recentemente no New York Times uma carta anunciando que está com câncer de fígado, em fase terminal, e tem apenas algumas semanas de vida. (Aqui, a carta, traduzida: http://tinyurl.com/k9xvcex). Os leitores brasileiros hão de lembrar livros como O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu, Um Antropólogo em Marte e muitos outros em que ele descreve casos clínicos recolhidos de sua longa carreira médica. Sacks dedicou sua vida ao estudo do cérebro humano e da mente humana, e ler um dos seus livros abre os nossos olhos para a fragilidade de conceitos como consciência, percepção, personalidade, etc. 

Diz ele, em sua carta: “É só minha a decisão de como viver os meses que me restam. Tenho que viver da forma mais rica, profunda e produtiva que conseguir. (...) Repentinamente me sinto possuidor de um foco muito claro, e de perspectiva. Não há mais tempo para nada que não seja essencial. Preciso focar em mim mesmo, no meu trabalho e nos meus amigos. Não vou mais assistir o jornal na TV todas as noites. Não vou mais prestar atenção para política ou para argumentos sobre aquecimento global. Não se trata de indiferença, mas de desapego – ainda me importo muito com o Oriente Médio, com o aquecimento global, com o crescimento da desigualdade, mas estas coisas não estão mais na minha alçada; pertencem ao futuro.”

Diante de situações assim a gente percebe que o mundo se divide em O Mundo e o Meu Mundo. Há uma área imensa do mundo que ignora a nossa existência, que vai ficar para sempre invulnerável às nossas ações. Como se fosse outro planeta, e não o planeta onde vivemos. Mas há outro, o Meu Mundo, onde a nossa vida conta, nossas ações produzem resultados, nossa presença chama a atenção, nossa ausência deixará um vazio. Quando somos jovens cheios de sonhos, de atrevimento, de esperança, achamos que um dia o Meu Mundo se confundirá totalmente com o outro. Quando estamos na porta, nos preparando para ir embora, é hora de esquecer o que está fora do nosso alcance, e de reconhecer que o Meu Mundo é pequeno, mas é tudo que a gente tem.




domingo, 22 de fevereiro de 2015

3744) O livro sem E (22.2.2015)



A palavra “contrainte” (em francês; “constraint” em inglês) significa “restrição arbitrária que um autor se auto-impõe”, e tem produzido obras curiosas na literatura.  O sujeito pode dizer, por exemplo: “vou escrever uma história onde tudo acontece de trás para diante”, uma história onde o tempo corre ao contrário. Isto foi feito, com relativo êxito, por Philip K Dick (Counter-Clock World), Fritz Leiber (“The Man Who Never Grew Young”) e outros.  Em geral, contudo, a “contrainte” não se prende ao tema, mas à forma, a um detalhe técnico qualquer.

Já escrevi sobre o romance de Georges Perec La Disparition, onde ele não usa a letra “E”.  Não foi o primeiro a fazê-lo. Provavelmente essa honra cabe ao romance Gadsby (1939) de Ernest Vincent Wright, um autor obscuro que morreu logo após o lançamento do livro. Um artigo de Mark Juddery (aqui: http://tinyurl.com/bhyzlfw) comenta essa verdadeira anomalia literária, como foi considerado na época, e anota o detalhe de que Wright, para se manter fiel ao compromisso, amarrou com cordão a tecla da letra E de sua máquina de escrever, para não usá-la por distração. Não sei se o recurso poderia ser usado num teclado de computador, mas este tem a vantagem da busca. Toda vez que tentei fazer algo assim, uma rápida busca pela letra em questão acaba nos mostrando todas as vezes em que a empregamos por descuido.

É uma história de amor, mas Wright nunca usa, por exemplo, a palavra “love”, e a substitui por circunlóquios (“strong liking”, “throbbing palpitation”).  Wright foi mais rigoroso do que Perec: ele evita o uso de abreviaturas como “Mr.”, porque “Mister” contém a letra proibida (Perec abreviou algumas palavras que continham “E”).  Wright também praticou primeiro algumas das façanhas mais divertidas do livro de Perec: pegar frases famosas e parafraseá-las omitindo a letra proibida. Uma frase como “a thing of beauty is a joy forever” do poeta Keats (“uma coisa bela é uma alegria eterna”) ele recria como “a charming thing is a joy always”, que é quase a mesma coisa.

Proezas desse tipo se parecem àqueles filmes feitos num único plano-sequência, sem cortes, ou àquelas peças de piano tocadas apenas nas teclas pretas. O objeto não é o mesmo dos jogos comuns, das músicas comuns. No caso dos lipogramas (textos que omitem uma ou mais letras), trata-se de um exercício intelectual onde o objetivo estético, embora presente, retrocede para segundo plano.  O objetivo não é só o de produzir uma obra de arte, mas de testar os limites de esforço e de engenhosidade que alguém pode atingir na feitura de uma obra de arte. Metade obra, metade exercício.




sábado, 21 de fevereiro de 2015

3743) Dicionário Aldebarã IX (21.2.2015)



(ilustração: Arzach, Moebius)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Skensoul”: a sensação de não conseguir lembrar a identidade, o nome, o rosto de uma pessoa, mas lembrar com precisão todo o complexo de emoções que em nossa memória está associado a ela.  

“Campertuis”: a atitude de alguém que está fazendo várias coisas ao mesmo tempo, como tomar café da manhã, assistir TV e falar ao celular simultaneamente. 

“Amboure”: a sensação inexplicável de que todos os nossos problemas se resolverão ao mesmo tempo graças a um único fato que não imaginamos qual seja. 

“Talwin”: a sensação incômoda de ver uma pessoa carregando um objeto que parece ser mais pesado do que ela.

“Ustahan”: o dia convencional de jejum que se segue às datas festivas com ceias que reúnem toda a família.  

“Oldavires”: aplica-se a todas as pessoas que dão pouca atenção ao ambiente que as cerca e estão o tempo inteiro atravancando a passagem com seus veículos, etc.  

“Semajy”: pessoas extremamente cerimoniosas que passam horas para dizer ou pedir algo que a essa altura já ficou óbvio para todo mundo. 

“Bargle”: a fala ininteligível dos bebês, e também os significados intencionais que a família fica ansiosamente lhe atribuindo.

“Icterah”: a sensação de inebriação e de expectativa misturada com receio de quem embarca numa empreitada de grande porte.  

“Daiobill”: a falsa sensação de anoitecer produzida por uma chuva que escurece o céu durante o dia. 

“Endivar”: as pequenas mudanças no comportamento de alguém muito próximo que nos indicam que algo está acontecendo, embora a gente não possa adivinhar o que é.  

“Abofrin”: nossa tendência a imaginar que se uma sequência de fatos até agora assumiu uma forma, os próximos fatos também estarão sujeitos a ela.

“Ambiloon”: o lado bom e oculto de toda pessoa antipática, ou o lado negativo e oculto de toda pessoa simpática.  

“Todills”: qualquer solução repentina para um problema, que aparece como que caída do céu.  

“Nostres”: banhos de mar coletivos, noturnos, na época em que o sol forte do verão torna as praias inacessíveis.  

“Lequirum”: pequenas gavetas sob a mesa de jantar onde as pessoas da casa guardam seus talheres especiais, copos, etc.  

“Mausbaq”: rebatedores de luz pintados com tinta prateada e colocados à cabeceira da cama, para refletir a luz do teto e facilitar a leitura de quem está deitado.



sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

3742) Um problema de xadrez (20.2.2015)



(As brancas jogam, e dão mate em dois lances)

Quem não é aficionado de xadrez pensa que um problema de xadrez é a mesma coisa que uma partida de xadrez, mas não é.  Uma partida é um jogo entre adversários. Como em qualquer jogo, parte de uma situação inicial sempre a mesma, e vai refletindo a disputa de forças que passa a acontecer.  Um problema de xadrez é outra coisa.  É uma situação imaginária, proposta numa revista ou jornal. Envolve poucas peças, e o desafio: “As brancas dão xeque-mate em três lances”, ou “as pretas deixam o jogo empatado com dois lances”, coisas assim.

A graça do problema é você saber, pelo enunciado, que existe, sim, uma combinação de jogadas que conduz ao resultado anunciado.  Fogo é encontrar, porque às vezes é preciso um raciocínio meio não-convencional para achar a resposta.  No problema, aliás, isso é até mais fácil de acontecer, porque não houve toda uma partida cheia de peripécias e de intenções não-alcançadas, para chegar até ali.  Numa partida de verdade é mais fácil ficar preso à narrativa que aquele momento do jogo está propondo.  Num problema, não: chega-se emocionalmente zerado ao que na verdade é um desfecho.

Nos romances de Raymond Chandler, um dos hobbies do detetive Philip Marlowe é o xadrez, mas não me lembro de nenhuma história em que Marlowe dispute uma partida com quem quer que seja.  Ele volta para casa à noite (mora sozinho), toma banho, ouve música no rádio, prepara comida, come, depois pega o tabuleiro e arma um problema, ou reconstitui uma partida inteira entre dois mestres do passado, como um pianista que volta a tocar um Noturno para não se esquecer.

Um problema é uma pequena obra de ficção enxadrística.  Como no romance, imaginamos a existência de uma imensa teia de narrativas prévias, não-contadas, que desaguam naquele texto que começamos pelo “Capítulo 1”.  Um romance é uma história que vai acontecer, e um problema de xadrez é uma história de que não vimos o começo mas vamos ter que adivinhar seu possível fim.  Teoricamente seria possível prolongar indefinidamente aquela partida, mas a certeza da existência de uma solução radical, uma guilhotina instantânea, leva o jogador a não descansar enquanto não a encontra.

Jogar xadrez é um duelo intelectual, uma relação densa e aguerrida entre duas mentes.  Um problema de xadrez é o contrário disso: é um prazer solitário.  Uma minipartida abstrata entre o cara que publicou o problema no jornal, e o cara que vai tentar resolvê-lo.  Parece muito com a literatura, e parece mais ainda com a literatura policial.  É um detalhe sutil de Chandler, fazendo uma homenagem discreta aos grandes mestres do romance detetivesco.




quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

3741) A Sexta Profecia (19.2.2015)



(Abbey Bookshop, em Paris)

Almério mandou o calhamaço de 600 páginas, romance ainda por cima, pra uma editora carioca. Depois de roer unhas uma semana, ligou para o editor, Diogo Montalvão. “E aí, Dr. Montalvão, o que o sr. achou?”  O editor disse: “Meu querido, eu tenho uma fila de leitura, por ordem de chegada. O seu acabou de chegar. Ou você pensa que é o único brasileiro que quer viver sem trabalhar?”   “Foi o sr. quem me pediu, o sr. mesmo disse que eu podia mandar.”  “Foi pedido, foi recebido, será lido, será avaliado.”  “E se alguém me fizer uma oferta  muito boa por ele?  Pelo que eu vejo o senhor nem passou os olhos pelo livro.”  “Acertou.  Ele foi para a prateleira de espera. Eu tenho um vazamento financeiro nas minhas empresas, preciso tratar. Quando normalizar tudo, eu volto a cuidar da editora.”  “Então o senhor não vive da editora, tem mais de uma atividade.”  “Isso mesmo.  Ter várias atividades é também uma forma honrosa de viver sem trabalhar, concorda?  Mas se a Gallimard ou a Penguin lhe fizerem uma proposta irrecusável eu cedo a vez. Basta me avisar, e desejo sucesso.”

Almério já desligou com o plano armado.  A prima em Paris fazia Letras, e o marido francês dela trabalhava nessa editora.  Ele pediria pro cara lhe mandar um email banal indagando sobre o manuscrito. O livro dele era uma fantasia heróica: Cavaleiros da Sexta Profecia, por Almério Patrício. Mostraria o email: “Olhe aqui, Dr. Montalvão, a Gallimard está me sondando...”  Isso poderia motivar o velho, certo?  Ninguém mais ficaria sabendo, o assunto morria ali mesmo.

De fato a prima conseguiu, e o marido dela até se interessou pelo livro. “Pensei que a Gallimard era uma editora para intelectuais,” disse Almério.  O francês disse que toda pessoa capaz de ler e entender um livro é um intelectual, e que fantasia heróica sempre vende, mas é muito repetitivo, é preciso procurar algo com um gume de novidade, de diferença.  Ele mandou.

Quando recebeu da Gallimard a confirmação de interesse e a informação de que já tinham até um tradutor, Almério ligou para Montalvão. “A Gallimard quer meu livro, Dr. Montalvão. E eu devo isso ao sr., por absurdo que pareça.” “Você nasceu de quina pra lua, rapaz, porque eu acabei de liquidar a editora, o vazamento era nela.  Fechando isso eu respiro. Teu livro é bom, então? Mas vejam só, talvez tivesse sido minha tábua de salvação. Você ia ser meu Paulo Coelho.”  A editora de Montalvão sumiu do mundo, Almério publicou em Paris, ganhou dois prêmios e já vendeu os direitos para o cinema e os quadrinhos.  À imprensa, já admitiu que tem uma idéia bastante clara para o próximo livro, Cavaleiros da Quinta Profecia.




3740) O susto e o suspense (18.2.2015)



Existe filme de susto e filme de suspense.  São sensações diferentes: a queda que machuca o joelho, e o mergulho numa montanha russa.  Uma das nossas primeiras descobertas na linguagem do cinema é a diferença entre estas duas.  Não são duas ideologias estéticas; são dois tipos de recursos que os diretores hábeis usam alternadamente, conforme lhes convém.  Os dois não são antagônicos, a não ser no sentido de que não podem ser usados simultaneamente.  Sabendo a hora de usar cada um, o diretor faz sua fama.

Alguns sustos de Hitchcock: uma cena no antigão A Dama Oculta (1938), em que pessoas buscando a dama desaparecida num vagão de carga de trem fazem surgir de repente uma imagem em display (de papelão pintado), em tamanho natural, de um mágico.   Ou a irrupção súbita das aves ameaçadoras, depois que a casa toda foi trancada, através da chaminé (Os Pássaros).  O susto é aquele corte brusco, uma cena calma, que vai fluindo de maneira aparentemente natural, e de repente... BAM!  Uma coisa acontece, e faz 500 pessoas darem um pulo ao mesmo tempo, na sala de projeção.

Hitchcock costumava dizer que o susto é quando a platéia, um segundo antes, não sabe o que vai acontecer; e que o suspense é quando ela sabe o que pode ocorrer (ou está a ponto de ocorrer) mas o personagem não.  Duas pessoas conversam tranquilamente numa mesa de restaurante sem saber que há uma bomba-relógio ligada, embaixo dela: mas o público sabe, e é o fato de saber que gera o suspense.  Note-se que não basta haver a mera possibilidade de uma bomba, um tiro, um ataque: é preciso que o diretor mostre com clareza que isso está, sim, para acontecer.

Todo diretor (ou roteirista) precisa saber explorar a ignorância-do-espectador e a onisciência-do-espectador.  Em certos casos, a gente obtém um efeito mais forte sobre a platéia mantendo-a “no escuro”, desinformada, sem saber algo crucial.  No segundo caso, o efeito é obtido ao contrário: dando ao espectador uma informação importante sobre a trama ou sobre uma cena específica, informação que o personagem não tem.  O espectador, na sua relativa onisciência (ele “sabe tudo” a respeito daquele detalhe, o personagem não) entra numa atividade mental mais intensa e mais prazerosa, comparando o que os personagens estão fazendo e dizendo, na tela, com o que fariam ou diriam se soubesse o que ele, espectador, já sabe.

No susto, puxamos o público, de repente, para dentro da cena, e ele tem a emoção passiva de deixar-se levar.  No suspense, damos a ele a emoção ativa de saber tudo  - mas sem poder gritar pra quem está na tela: “cuidado, ele está escondido atrás da porta!”.




3739) Trailer (17.2.2015)



(ilustração: Supranav Dash)

A mulher loura atravessa o banheiro envolta numa toalha azul-turmalina.  Um texto em itálico começa a correr horizontalmente na tela, à altura das legendas: “Quando a humanidade inteira pareceu ter enlouquecido e o mundo começou a se acabar, ela conheceu o seu primeiro tempo de paz, o primeiro oásis de sua vida”.  Imagens da cidade, um porto nórdico ou eslavo, com longos armazéns de peixe se enfileirando no cais do porto.  Uma voz de policial, fatigado de tantas horas-extras:

“Há mais de meio século esta cidade agarra-se à vida, quando já devia ter virado cidade fantasma.  Foi sendo engolida por portos maiores e evitada pelas rotas comerciais mais rentáveis.  Não morreu porque três ou quatro quadrilhas étnicas dominam sua economia e seus três poderes.  Jogo, contrabando, cabarés, drogas aqui e ali, armas aqui e ali, mas de um modo geral, por ser uma cidade turística, é uma criminalidade do lazer e do prazer, onde a violência só acontece quando necessária.”  

A câmera avança por um corredor, um braço percute numa porta com os nós dos dedos.  A textura dessa imagem é meio quadrinhos, meio videogame de muitos polígonos.  A mulher que abre a porta, no entanto, é de uma perfeição digital onde é possível reconhecer cada poro do seu rosto e dar-lhe um nome e um apelido.  Ela diz ao doutor que ele é muito bem vindo, e é uma honra receber uma visita tão ilustre.  Ela está visivelmente nervosa.  O cenário ao fundo continua poligonal.  Sentam-se os dois na sala de visitas, diante de uma mesinha de chá, com bule, xícaras, etc.  Ela tem as mãos pousadas no colo.  Ele usa terno e tem a cabeça de um abutre, com o bico bem aberto.

Vem a seguir um desfile rápido dos nomes do elenco, acompanhados por uma música triste-alegre de circo ou de teatro de revista .  Câmara mostra bandinha semelhante na rua, faz panorâmica e mostra o letreiro luminoso de um teatro anunciando a banda em cartaz: Dêutero Blue.  Uma mulher ruiva diz à câmera: “Num jogo onde todo mundo está mentindo, nenhuma arma é mais mortal do que a verdade!”  Revólveres cuspindo fogo.  Carrão perseguindo pedestre numa viela, quicando latas de lixo e espantando os gatos.  Um homem de sobretudo segura uma moeda em cada mão e mostra as duas: “Somente uma delas é verdadeira.  Qual? A que a gente tem em maior quantidade.”  Um aguaceiro à noite, um jazz de vigésimo andar.  Na calçada passa um casal semi-encharcado, caminhando sem pressa embaixo de um guarda-chuva, aos cochichos.  Uma voz diz: “Todas estas imagens são autênticas, e o nosso trabalho foi somente criar novo áudio e fazer a edição final.”  Fim do trailer.





3738) Maratona Casablanca (15.2.2015)



Tenho amigos cinéfilos na Paraíba que costumam programar maratonas cinematográficas na casa de um deles. O detalhe é que são maratonas de um filme só, o mesmo filme rodando em sessões contínuas desde a chegada do primeiro conviva até a partida do último.  A duração disso depende da quantidade de presentes, além de outros fatores, mas não é extraordinário que vá das oito da noite às seis da manhã.

Esqueci de dizer que o local é ideal para isso, numa granja a 20km do centro da cidade, uma espécie de anfiteatro ou concha-acústica coberta, com capacidade para 36 poltronas, uma boa projeção, ótimo áudio, e no degrau de cima da arquibancada expande-se uma área servida por um barzinho acarpetado e discreto. Tanto é possível ficar sentado, vendo qualquer trecho do filme, quanto ir para aquela área, e geralmente isso acontece da segunda projeção em diante.

Na noite mais recente que eu fui o filme era Casablanca, que eu acho simpático mas, numa distribuição de senhas por ordem de importância, ele só ia ser atendido quinta-feira que vem.  Foi até melhor, porque depois de ver a primeira sessão integralmente (nisso eu nunca transigi, companheiros, meus princípios éticos continuam os mesmos: “Filme começado a ver é filme visto até o fim!”) tirei algumas horas conversando com meu clínico geral, com um amigo de minha filha mais velha e com dois ex-colegas de trabalho. 

Engraçado que toda vez na cena da Marselhesa a gente suspendia a conversa.  Era como se aquele nosso cinema fosse uma embaixada, um território diplomático, e a gente tivesse a obrigação etiquetal de respeitar o hino alheio.  Uma Marselhesa de filme B americano!  Grande prédio.

Fui olhar de novo a platéia às 3:15. Havia dois ou três casais de dedos fortemente entrelaçados, soprando o pó da sua Paris.  Alguns nerds silenciosos manipulando câmeras de celular, gravadores, cronômetros.  Tini copos com Pascoal, o dono da casa.  “Sempre sonhei com isso,” disse eu. “O Restaurante de Alice, né?” disse ele.  Uma piada antiga de quando o filme de Arthur Penn passou em Campina. Lá embaixo, na tela, a gigantesca mulher das nossas vidas embarcava, reprimindo um soluço.  Graças a Deus o nosso personagem estava de chapéu e sobretudo. Imagina uma despedida como essa, e o cara de camiseta e bermuda. Seria o juízo final.

“O filme bom,” estava dizendo Pascoal, “é aquele que a gente revê achando que desta vez, pode vir a acontecer uma coisa diferente. Que pode ter acontecido algo diferente naqueles dias em que imprimiram tantos metros de películas, aquelas noites em que se gravaram às pressas aqueles diálogos que estavam sendo lidos pela primeira e última vez.”




sábado, 14 de fevereiro de 2015

3737) Erro de leitura (14.2.2015)



(ilustração: Debbie Millman)

Falo aqui de vez em quando sobre certos erros ou distrações que acabam nos dando idéias criativas.  Interferências do Acaso, produzindo uma idéia que nunca teria nos ocorrido pelos canais costumeiros.  São muitos os exemplos de coisas que interpretamos erradamente e que equivalem a um ato de criação.  É claro que nem todo erro nos dá uma boa idéia, mas o importante é ficar atento ao processo.  Muita coisa boa já surgiu dele, e o exemplo que cito sempre é “O Evangelho segundo Jesus Cristo” de José Saramago. O livro surgiu depois que ele leu erradamente, ao passar por uma banca de revistas, algumas palavras isoladas, que pareciam formar esse título.  Não era; mas o título lhe pareceu interessante, e o livro todo surgiu daí.

Eu estava assistindo um documentário e no fim apareceu um letreiro, todo em letras caixa alta (maiúsculas), dando informações sobre as pessoas abordadas no documentário.  Dizia que elas estavam “produzindo um ovo”, e que “o lucro com a venda do ovo” seria empregado nisso e naquilo... Prestando mais atenção, percebi que a palavra não era OVO, era DVD.  Um caso parecido foi o do cartaz de uma peça, que li à distância; o título era FREUD (havia um retrato dele) mas eu li FREVO, porque o traçado das letras era muito parecido. (Caberá uma analogia entre o frevo como dança instintiva e o modo como o inconsciente se manifesta?) 

No interior do Nordeste vi uma placa na beira da estrada anunciando o HOTEL PAN DRAMA, título que achei original até perceber que era apenas “PANORAMA”.  Quem também não escapou da minha ficção miópica foi o livro de Laurentino Gomes, “1808” que de longe imaginei ser intitulado “ISOS” e fui olhar de perto para saber que diabo era aquilo.  Mas não é só comigo: meu amigo Pedro Ribeiro comentou um dos meus artigos sobre este tema, “O erro poético”, dizendo que no primeiro relance imaginou ter lido “O perro erótico”, o que não deixa de ser um tema pedindo para ser mais bem desenvolvido. (Alguma alusão inconsciente a “El Perro Andaluz” de Luís Buñuel, será?)

Não é só a vista, é também o ouvido.  Alguém me disse que passou no Largo da Carioca e viu um camelô oferecendo aos brados um “computador do Al Gore”, o que o fez dar meia-volta para checar e descobrir que era “Dual Core”.  Na  Paraíba, a polícia rodoviária executou durante anos a “Operação Manzuá”, nome de uma armadilha para pegar peixes, na qual o peixe entra mas não consegue sair; já vi gente explicando, com a maior segurança, que se tratava da “Operação Mãos ao Ar”. E assim vamos nós, treslendo, tresouvindo, errando e inventando, usando o Acaso como trampolim para o Inesperado, pois “a vida só presta reinventada”.




sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

3736) Bartolomeu e Sueli (13.2.2015)



(ilustração: Marion Fayolle)

Não, rapaz, eu posso afirmar a você, não foi culpa nem de Bartolomeu nem de Sueli.  Eu era amigo, convivi com um e com outro antes mesmo deles se conhecerem. Acompanhei tudo. À distância, claro, mas a gente convivia.  E tem mais: pelo grau de amizade, eu não saía apenas com o casal. Às vezes saía para tomar uma cerveja a sós com ele, tínhamos nossos papos de livros e de futebol.  E outras vezes era com ela, porque dávamos aula no mesmo curso, e mil vezes dei carona, tínhamos uma conversa legal sobre política, música, essas coisas.

Culpa não sei, porque ninguém tem culpa de nada.  Se quer mesmo a minha opinião.  Só existe culpa quando existe dolo, intenção de prejudicar, de fazer o mal a alguém.  E muitas vezes o mal que é feito nasce de ruído de comunicação, nasce de uma síndrome-de-Babel em que a gente não só não se entende como nem percebe que está sendo assim, aquilo vira uma bola de neve, no fim dá no que deu. Gosto nem de pensar.

Bartolomeu me perguntou certa vez: “Você acha que Sueli é minha Mega-Sena?”.  Eu dei de ombros, meio em cimão do muro, porque ela não era propriamente uma capa da “Trip”, mas falei: “Rapaz, tem gente que roda a vida toda e não consegue o que tu tem. Aproveita.”  Sueli era um doce, apesar de teimosa com certas coisas, mas me falou certa vez, numa festa junina, no sítio de um professor da faculdade: “Meuzinho é trabalhoso, sim, mas homem que não é trabalhoso não merece confiança”. Não sei porque ela disse isso, achei na época que era um elogio, e era, porque todo mundo o achava meio bobo, mas agora, depois do que ocorreu, eu estou relativizando tudo.

Casal é uma química que nem os dois envolvidos entendem. Como é que a torcida, lá de cima da arquibancada, vai entender?  Não, amigo, pense num mistério. Quando se vê um filme não se visita coxias nem camarins. Ninguém assiste o drama entre quatro paredes, ninguém lê os pensamentos que até quem pensou procura tirar da cabeça o mais depressa possível, ninguém vê o vulcão por baixo da geleira, a ratoeira em volta, só vê queijo.

Hoje é fácil todo mundo dizer que estava destinado a acabar assim.  E Sueli era uma pessoa tênue, maneira. Pra onde o tempo e o vento a assoprassem ela derivaria em paz.  Se o final foi como foi, então palmas para o que foi.  Deixa cada um saber lidar com o momento.  Parece auto-ajuda, mas é somente calo, é cicatriz, é cascão.  Chega às vezes um momento em que o mundo, que parecia cheio de problemas, revela um problema único e final. E só então aquela pessoa percebe que até então estava vivendo o seu melhor momento, tornado ainda melhor pela esperança real de que dali para a frente ficasse tudo assim.





quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

3735) O Jamacós (12.2.2015)



Existe uma zona limítrofe entre o reino animal e o reino vegetal. Musgos, líquens, fungos – tudo isso, embora pertença a um lado, guarda semelhanças ou afinidades com o outro, ou com nenhum. É o que se dá, só que numa escala maior e sob formas imprevisíveis, com o jamacós, uma criatura encontradiça em Bornéu, Sumatra, na Indonésia e em regiões tropicais do Pacífico. Falar do jamacós envolve vários níveis de dificuldade, a primeira delas relativa ao uso do plural ou do singular.

Visto à solta, na natureza, o jamacós parece uma mancha arroxeada de geléia de amora, grudada à casca de algumas árvores que são seu habitat preferido.  Essa mancha aumenta, diminui, desloca-se ao longo da casca de que se alimenta, deixando-a polida, sem rugosidades. Vista ao microscópio, a mancha revela ser um aglomerado fervilhante de pequenas criaturas arredondadas, com ventosas no ventre, unidas umas às outras por filamentos, como irmãos siameses. O jamacós adulto parece-se a uma joaninha, com um décimo de milímetro de diâmetro,  uma quase-esfera arroxeada coberta de pontos negros. A certa altura do ciclo vital, um desses pontos incha, estende-se em filamento e produz na ponta um jamacós idêntico ao original; sem se desprender do primeiro, este segundo jamacós também produz outros filamentos, reiniciando o ciclo, o que dá ao conjunto de todos eles o aspecto de uma infinidade de colares de contas, entrelaçados.

A ciência ainda questiona: o jamacós individual é a bolinha, ou o conjunto de todas elas? Metaforicamente: o indivíduo é a uva, ou o cacho de uvas?  Será que um conjunto dessas manchas de jamacós não pode ser considerado também um indivíduo?  Um conjunto de “cachos” de jamacós comporta-se muitas vezes (principalmente em sua absorção de cascas vegetais) como um indivíduo consciente de si e do ambiente à sua volta, capaz de tomar decisões, capaz de tirar do ambiente o que precisa para sua sobrevivência e de se reorganizar em função desse ambiente.

Há cada vez mais perguntas não-respondidas sobre essa estranha espécie, nas pranchetas e nos tablets dos biólogos. O que leva o jamacós de uma fazenda a aprender com as experiências alimentares de outro, a mil km de distância?  Por que um jamacós precisa alimentar-se sem cessar, se ele mal dorme, é quase imóvel, e não aparenta ter como consumir tanta energia?  São questões ainda em aberto para os que, como nós, se dedicam a essa pesquisa.  Estamos focados no objetivo final, aqui nas inúmeras estufas do Instituto.  Vários de nós já têm até jamacós de estimação, espalhados sobre o colo das professoras, como echarpes, ou presos à testa dos doutorandos mais jovens, estilo bandana.




quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

3734) O original também erra (11.2.2015)



(ilustração: Giambatista Della Porta)

Dizer que o original erra parece uma heresia tão grande quanto afirmar que o Papa se equivoca em matéria canônica.  A idéia de um erro no livro original produz no tradutor, no revisor, um vacilo de incerteza cósmica.  Seria como dizer que Deus joga dados.  Mas é fato. Os originais impressos em qualquer país estão sujeitos às idas e vindas do trabalho assalariado em qualquer país.  O que eu já vi de calamidade de editoração em livro estrangeiro não tá no gibi.

Traduzindo um livro de Tim Powers me deparei com a frase “a darting garb” (numa cena de multidão ao ar livre), cujas traduções possíveis não se encaixavam.  Comecei a pedir ajuda.  Chegou uma carta (era nos tempos das cartas, dos aerogramas, do Coupon Réponse International, tudo o mais) de um amigo dizendo que os livros da Ace Books eram notórios pela revisão claudicante, e que aquilo devia ser “a darting grab”.  Abri uma cerveja e escrevi “um bote certeiro” (o autor estava descrevendo a coreografia de um batedor de carteiras).

Traduzi um romance de horror contemporâneo, ambientado no campus de uma universidade nos EUA, e a certa altura o livro era interrompido por umas duas páginas de um texto totalmente diferente falando de antropóides primitivos duelando numa caverna, e depois voltava para o romance como se nada tivesse acontecido.  Uma gralha; um pedaço de arquivo que alguém tinha botado na Área de Transferência e sem querer tacou Ctrl+V noutro arquivo que estava revisando, e depois ninguém revisou de novo.

Já vi num livro que eu estava traduzindo o autor colocar umas 3 ou 4 vezes ao longo de um compridíssimo diálogo: “ele ergueu-se da mesa”, “ele levantou-se para sair”, etc.  Como se tratava de um enorme “infodump” de desfecho da história, um entulho de explicações do enredo, imaginei que o autor tinha recortado com tesoura-e-cola vários trechos (da Era pré-computador), e os montou. Algumas dessas rubricas, que vinham de diferentes esboços, acabaram vindo junto das respectivas falas.  Cortei e deixei apenas o que orientava a ação.

O original pode errar.  Que o digam Joyce, Rosa, Flaubert e outros que sucumbiram à maldição de Lynotípia, a cruel deusa invocada pelos tipógrafos quando querem rogar praga a um autor muito trabalhoso.  Quanto mais eles corrigiam, mais erros novos se infiltravam em seu edifício perfeito, corroendo-o por dentro.

Olha só que besteira eu escrevi.  Posso supor também que ambos aceitavam a contribuição do erro e do acaso. Há testemunhos.  E que às vezes achavam mais legal a palavra errada que veio da oficina.  Um pequeno tributo para apaziguar a Deusa, algo como o golezinho que se verte no chão para aprazer o santo.




segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

3733) Amor humor (10.2.2015)



(ilustração: Lisa Congdon)


Oswald de Andrade foi um dos praticantes mais espirituosos do poema curto tipo poema-piada.  

Um dos seus mais conhecidos e mais citados intitula-se “AMOR”, e tem uma palavra apenas: “humor”.  

AMOR

humor

Um jogo-de-palavras até simplório para o homem que disse “Tupi or not Tupi, that is the question” e outros biscoitos finos. Oswald tem outros belos poemas de amor.  Era um sujeito meio vulcânico, tinha qualidades únicas, tinha os defeitos de sua época e os de seu temperamento, mas sua atitude amorosa ao escrever é às vezes exuberante.

Muita gente lê esse poema assim: O amor é humor.  O amor tem que ser divertido.  Amor era para ser uma coisa bonita e leve, uma coisa que passa.  Amor não é para carraspanas, melodramas, aquelas tragédias gregas de paixões e de vinganças.   O amor teria que ser uma coisa art-noveau e Modernista ao mesmo tempo. 

Outros leem assim: para manter um amor é preciso ter muito bom humor.  Senão, você endoidece. O humor surge aí não como a essência do amor, mas como uma espécie de contrapeso ou atenuante.  O modo como Oswald os colocou no poema não implica equação.  Pode ter lido, por exemplo, como uma polarização, como se o título fosse “YIN” e o poema tivesse apenas a palavra “yang”. 

YIN

yang

De fato, o amor é muitas vezes descrito pelos seus bardos como a fusão ideal entre duas pessoas, que se tornam capazes de ver com os olhos um do outro, sabem o que o outro está pensando, etc.  

E o humor, claro, é o contrário: é saber se cortar e se isolar instantaneamente de algo ou de alguém, em função de outra associação de idéias que só é possível fazer “de fora”.  A expressão popular “eu perco um amigo mas não perco uma piada” existe porque devem ser muitos os episódios em que alguém manda um gracejo pesado demais para que a amizade se mantenha.  

O amor aproxima, o humor distancia, então o humor é o contrapeso brechtiano, cortando o barato da paixão, que só enxerga a si mesma. Cuidado com um e cuidado com o outro.

Uma das declarações mais bonitas de Riobaldo no Grande Sertão é um trecho em que ele diz que, pro “doutor” ter uma idéia do quanto ele amava Diadorim, ele diz que nunca mangou dele.  O termo não é este, mas é o sentido.  

Quando você manga, zomba de alguém, quando você acha o outro ridículo, é o máximo do distanciamento, é o humor cruel que não tem volta.  O outro nunca mais poderá ser amado, se o mico que pagar for muito grande.  (Ou nem é assim, e sou eu que estou dramatizando a coisa; até isso sara.)  

Não mangar da pessoa amada é um compromisso de honra dos que amam com pureza.  É um pouco como não mangar de Deus, não fazer humor com Deus (pelo menos com o Deus que a gente crê).





domingo, 8 de fevereiro de 2015

3732) O escritor e a mãe (8.2.2015)



(Cortázar e sua mãe)


“Momma boy”, filhinho-da-mamãe, há expressões igualmente desdenhosas em qualquer idioma.  Foi feita para aplastrar aquele menino assustado ou impertinente que não larga a saia materna, e o máximo de independência que ganha ao crescer é uma certa autonomia para chantageá-la e extrair o que quer.  

Porém são igualmente numerosos os casos de meninos criados na órbita de uma matrona e que se tornaram, se não grandes homens, pelo menos grandes artistas (o que, pelo menos pra mim, parece melhor negócio.)

Penso em Julio Cortázar, cujo pai sumiu por completo quando ele tinha cinco anos.  Quando o filho estava famoso, o velho escreveu-lhe pedindo que por gentileza se assinasse “Julio Florencio Cortázar”, para que não fossem confundidos um com o outro. Ele respondeu: “Querido senhor, nada sei do senhor, espero que esteja muito feliz, mas eu vou continuar assinando Julio Cortázar”. 

John Lennon reagiu com mais acidez ainda, quanto o pai o procurou depois da fama; mas Lennon não teve por muito tempo “a virtude de dormir entre dois seios”, como versejou Lourival Batista.  A mãe morreu atropelada quando ele era ainda garoto, mas a preferência afetiva por ela sempre foi muito clara em tudo que ele escreveu.

Penso em Cornell Woolrich, o rei do “roman noir” levado ao cinema (A Sereia do Mississipi, A Noiva Estava de Preto, Janela Indiscreta, etc.). Pais separados; ele ao que parece era gay, teve durante 3 meses um casamento frustrado e depois viveu num hotel com a mãe até a morte dela, quando ele tinha 54 anos. Bebeu até apagar.

Raymond Chandler, que nunca conheceu o pai (alcoólatra, como ele viria a ser), e cuidou da mãe até os 35 anos, quando ela morreu. Meses depois ele casou-se com Cissy Pascal, 18 anos mais velha, e cuidou dela até a morte. 

Não muito diferente foi a trajetória de Jorge Luís Borges, que após a morte do pai cuidou da mãe, D. Leonor (cuidou é eufemismo para “foi cuidado por”).  Teve também um casamento mal sucedido e voltou para morar com a mãe até a morte dela aos 99 anos, quando ele próprio tinha 75. 

Todos parecem ter feito tudo isso em parte pelo bem delas e em parte para si mesmos.  Pode ser imaturo, mas essa convivência gerou talvez um canal de entendimento que foi bom para a literatura de cada um.  

Mas talvez nenhum deles tenha tido o espírito arlequinesco e lúdico que Sartre afirma (As Palavras) ter experimentado na infância ao lado da mãe, que enviuvou muito jovem, o que gerou entre ela e o filho uma convivência de cúmplices numa família dominada por um avô tonitruante; ela e o menino partilhavam passeios, filmes, pequenas aventuras de gente sem culpa que se diverte com bem pouco.







sábado, 7 de fevereiro de 2015

3731) A loucura e a lucidez (7.2.2015)



("The Tell-Tale Heart", por Virgil Finlay)

Não sei quem foi que disse que o remédio de um doido é outro na porta.  Talvez seja preciso um maluco para entender o que se passa na cabeça de outro maluco.  Ele tem que ser capaz de pensar como o maluco e ver que até certo ponto toda maluquice é justificada.  E tem que ser capaz de dar um passo atrás e ver que é só doidice mesmo, ou seja, aquilo não é a narrativa-mãe, aquilo é o Delírio do Depoente.  Por mais comovente que esse delírio seja.  Assim como um bêbado é alguém que ‘NÃO ESTÁ BÊBADO!!!”, um bom doido relativiza qualquer loucura.

Num ensaio sobre a imaginação, Montaigne diz (não li o ensaio, vi a citação por aí): “Gallus Vibius preparou sua mente de tal forma para compreender a essência e a dinâmica da loucura que deixou seus critérios serem distorcidos, a ponto de não poder acomodá-los de novo em seus devidos lugares; e, caso quisesse, poderia se vangloriar de ter-se tornado um abestado através da sabedoria.” 

O psicanalista Robert Lindner tem um ensaio famoso, “O divã espacial” (“The Jet-Propelled Couch”) onde ele descreve a longa terapia de um homem que acreditava piamente num universo paralelo “space opera” onde alternava seus dias com os dias passados na Terra.  (Há uma tese de que esse paciente teria sido o escritor Cordwainer Smith.)  O analista dava-lhe conselhos de como administrar seu império galáctico, mas acabou se envolvendo e entrando na viagem do outro. Recompôs-se depois (não é spoiler), mas admitiu que houve um duelo psicológico intenso, e que por um momento o Delírio do Depoente prevaleceu.

Vejo, por exemplo, Rubião tentando glosar os motes de Quincas Borba, tentando a ominosa tarefa de entender um doido por dentro.  Deve acontecer muito com empresários no campo das artes, que endoidecem por artistas imbancáveis, que se deixam levar mais pelos seus instintos do que pela razão, e que antes dos interesses pessoais pensam acima de tudo nos interesses do coração. Muitos ficam ricos. Provavelmente porque sabem como pensam os seus fãs na derradeira fila a contar do palco. São mentes iguais. 

O protagonista tem um amigo que é doido: eis uma cadeia dramatúrgica presente numa enorme variedade de textos.  Quem entende o doido, sensato lhe parece. O que mais chamamos de loucura é o contrário dela, chamamos de loucura a desorganização fatal do pensamento. Mas não, a loucura também é organização, organização maligna, sugadora, feito raiz de algaroba visitando o poço alheio.  Uma ordem vinda de cima que se recusa a dialogar com o resto e que precipita assim a crise que faltava.  O organismo é invadido por uma linguagem estranha que acaba por matá-lo por dentro.