sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

1495) O jogador pop (28.12.2007)


(Paulo César Caju)

Um repentista comentou comigo certa vez: “Tem três profissões onde a pessoa tem até os trinta anos pra ganhar dinheiro, porque depois disso é só prejuízo: jogador de futebol, cantador de viola e rapariga”. Existe uma verdade poética nessa frase, embora do ponto de vista factual não seja uma verdade científica. O autor dela, por exemplo, está hoje na casa dos 60, e provavelmente ganha mais do que quando a proferiu. Sobre as praticantes da “mais antiga das profissões”, não disponho de dados estatísticos. E no futebol a longevidade dos jogadores aumentou tremendamente. Nem me refiro a casos peculiares como o de Romário. O time do Milan, recente campeão mundial interclubes, é composto quase todos de trintões, sendo Kaká, aos 25 anos, quase um mascote.

Revi há pouco na TV um episódio da série “Futebol” dirigida por João Moreira Salles, enfocando o cotidiano do ex-jogador Paulo César “Caju”, que foi craque do Botafogo, Flamengo, Seleção Brasileira e muitos outros times. Paulo César foi um dos primeiros jogadores “pop”. Dirigia carros caríssimos, pintava o cabelo (daí o apelido “caju”), aparecia nas colunas sociais, falava francês, namorava modelos e socialites, dava entrevistas irreverentes onde dizia exatamente o que pensava. A imprensa, desacostumada com aquilo, vivia atrás dele. Não simpatizava muito com ele, porque era na época da ditadura. Paulo César, embora não fosse propriamente um jogador politizado ou questionador como seus contemporâneos Reinaldo, Afonsinho e outros, não abaixava a cabeça. Era o que já vi alguém chamar de “nego metido a branco”, expressão que descreve maravilhosamente o nosso racismo embutido.

Hoje em dia, dois terços dos jogadores de futebol são jogadores pop, ou seja, fazem tudo que Paulo César fazia: pintam o cabelo, dirigem BMW, namoram modelos, saem nas revistas. O que lhes falta, curiosamente – já que vivemos em plena democracia, onde qualquer um pode dizer o que pensa sem medo de ser preso ou perseguido – é a personalidade na hora de falar. O jogador típico de hoje é o robô disciplinado que fala somente em “seguir as instruções do ‘professor’ para trabalhar com determinação em busca do nosso objetivo que é a vitória”, ou o craque marrento, emproado, metido a besta (como Caju também era), mas que parece viver num Brasil virtual composto apenas de estádios, aeroportos e boates. Dou um no outro e não quero volta.

Numa época em que o jogador tinha de ser um cara discreto, vestido com simplicidade, sem esbanjamento, sem consumo conspícuo, Paulo César explodiu o modelo, tornou-se o contrário disto. Hoje em dia, o modelo é o que Paulo César criou, o jogador pop. Falta algum jogador no futebol de hoje que conteste esse modelo consumista, playboy, socialite. Até porque não são poucos os talentos futebolísticos que têm se deteriorado por essa obrigação de frequentar as boates da moda, os acontecimentos sociais, os coquetéis, os bailes, as capas de revistas

1494) O salto e a natação (27.12.2007)


A diferença entre um conto e um romance não é apenas o fato de que um é pequeno e o outro é grande. Diferença de escala determina também uma diferença de estrutura. Comparemos com a pintura. Um quadro com as dimensões aproximadas da Mona Lisa é feito para ser visto de uma certa distância, revelar certo nível de detalhe, produzir uma impressão específica. Quadros enormes como o Grito do Ipiranga de Pedro Américo ou as Bodas de Caná de Veronese pedem outro tipo de leitura. Contemplar “palmo em cima” um quadro como esses, ou como a Ronda Noturna de Rembrandt, equivale a ver uma sucessão de Monas Lisas justapostas como ladrilhos num mosaico, e precisamos de um recuo muito maior para ter a percepção do Todo.

O tamanho relativo de um quadro muda nossa relação espacial com ele, e no caso da obra escrita essa variação muda nossa relação com o Tempo. Histórias curtas sempre existiram, oriundas da literatura oral e das chamadas formas simples (a fábula, a lenda, etc.) – ou, numa classificação mais nossa, a anedota, a piada, o “causo” pitoresco. Estas formas, contudo, ao serem incorporadas à literatura escrita sofreram a inevitável interferência do temperamento pessoal de autores com mais recursos, que foram lhes dando outro perfil.

Edgar Allan Poe deve ter sido o primeiro (ou pelo menos o primeiro mais famoso) a formular uma regra essencial do conto moderno. Poe sugeriu que o conto deveria requerer, para sua leitura, “de meia-hora a uma ou duas horas”, e completou: “Durante a hora da leitura, a alma do leitor permanece submissa à vontade (do autor)”. Os melhores analistas da obra de Poe reconhecem aí uma das razões do impacto de seus contos, que estão completando mais de 150 anos de idade.

É o caso de Baudelaire, que ao comparar o conto e o romance destaca, no primeiro, a “unidade na impressão, na totalidade do efeito”. Baudelaire foi um dos primeiros a perceber a importância, nos contos de Poe, de uma escrita em que tudo conduz para um desfecho. A impressão que um conto desse tipo nos provoca deve ser una, inteira, contínua. O conto deve poder ser lido de uma assentada, sem interrupções, para que nada venha quebrar o encantamento com que o texto, frase por frase, obriga o leitor a ler a frase seguinte. Um conto é como um salto de trampolim numa piscina: um movimento rápido, intenso, indivisível, algo que transcorre no tempo mas cuja tensão interna nos produz a impressão de algo inteiro, algo já completo onde nada falta e nada sobra.

Já o romance não busca a intensidade, mas a extensão da experiência ao longo do tempo. Um romance é para a gente conviver, para nos fazer companhia durante dias. Ele não depende da impressão forte e momentânea, e sim do acúmulo de mil pequenas coisas que se sucedem e criam uma história que parece que não vai ter fim. (Talvez por isso as histórias de amor queiram se chamar “romances”.) Um conto é um salto de trampolim na piscina; um romance é uma travessia a nado.

1493) A Razão Cínica (26.12.2007)




A Razão Cínica consiste em dizer: “O mundo não presta, e é melhor você não prestar também”. Ela dá um diagnóstico pessimista sobre a qualidade moral do mundo, e procura tirar o melhor partido possível dessa situação. O cinismo pode ser necessário quando o indivíduo se vê em desvantagem e, para evitar um prejuízo ainda maior, abre mão, provisoriamente, de alguns escrúpulos. É um recurso extremo – como a violência, ou a fuga, ou a mentira. E, assim como elas, não pode ser um meio de vida. Serve para evitar um mal maior, mas não é norma de conduta de um sujeito que se preze.

“Acostuma-te à lama que te espera! O homem, que nesta terra miserável vive entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera”. O soneto de Augusto dos Anjos é um dos poemas mais dolorosamente cínicos de nossa literatura, ainda mais porque sabemos que ele expressa, com tamanho vigor e sinceridade, algo que Augusto não era. É um desabafo amargo, ressentido, revoltado, de alguém que perdeu a fé na humanidade à sua volta. O poeta assume um cinismo que não é seu, sugerindo a si próprio uma retaliação que jamais praticou. São “versos íntimos”, feitos de si para si mesmo, versos escritos para remendar um ego destroçado. Sabe-se lá qual foi a desilusão, entre as incontáveis que teve na vida, que levou o poeta a esse rompante de escárnio. Sabemos, contudo, pelos relatos dos que o conheceram, que sua atitude pessoal sempre foi o contrário disto.

“Versos Íntimos” é um monstro que Augusto extraiu de dentro de si para não tê-lo mais dentro de si. Como tantos monstros produzidos pelo sofrimento moral, veio carregado de uma revolta que tanto pode se transformar em fonte de ódio como em fonte de energia redentora. O cinismo pode ajudar a diminuir a dor num momento de crise, espezinhando aquilo ou aqueles que produziram essa dor. Quando associado, no entanto, aos momentos de triunfo, de auto-afirmação, de bem-estar, de Poder, o cinismo é o pior dos instrumentos.

A Razão Cinica insiste que todo o mundo é desonesto: “Venha! Junte-se a nós! Não seja otário, não fique aí parado!” Tenta nos fazer acreditar que de nada adianta lutarmos por uma causa perdida, ou insistirmos num trabalho que não faz sucesso, ou defendermos idéias que não dão resultado. Ela nos diz que numa negociação entre um egoísta (que só pensa em si) e um altruísta (que se preocupa com os outros) é matematicamente certo que o egoísta sairá ganhando, assim como um violento sempre ganhará num embate contra um não-violento. Um bom argumento contra isto é mostrar que se o número dos altruístas e dos não-violentos se multiplicar o bastante, suas chances de vitória aumentam proporcionalmente: são virtudes cujo poder está no coletivo. Esta é a idéia por trás das ideologias civilizatórias. A melhor maneira de eliminar a selvageria e a violência é diluindo-as numa maioria que rejeita o cinismo e defende um contrato social em que todos se respeitam e se apóiam mutuamente..


(Este texto está publicado no livro 78 Rotações, Natal, Editora Jovens Escribas, 2015.)




1492) “Enquanto houver Natal” (25.12.2007)


No mercado editorial norte-americano existe uma tradição, pouco frequente entre nós, de publicação de textos relativos ao Natal e a outras efemérides religiosas ou civis. São as chamadas “holiday anthologies”, e o lado mais divertido delas é ver de que maneira os escritores conseguem reunir o tema proposto e as convenções do gênero. Enquanto Houver Natal – oito estórias de ficção científica é uma antologia cujo título é auto-explicativo, e foi publicada em 1989 por Gumercindo Dórea em sua tradicional Editora GRD, de São Paulo. A GRD foi a principal editora de FC no Brasil na década de 1960. Ao mesmo tempo em que lançava para o grande público as obras de estréia de jovens desconhecidos como Rubem Fonseca e Nélida Piñon, a GRD publicava os melhores títulos da FC internacional, além de antologias e de coletâneas de autores brasileiros como Dinah Silveira de Queiroz e Fausto Cunha.

Meu conto preferido na antologia natalina é o de José dos Santos Fernandes, “Atendimento Domiciliar”, em que um grupo de viajantes no Tempo tem problemas técnicos e fica preso por algumas horas no passado remoto. O conto evita com habilidade qualquer indicação clara de que lugar é aquele, quem são aquelas pessoas. Os viajantes no Tempo são identificados por seus nomes (Prof. Franz, Dr. Armand, etc.), mas não temos idéia da região do planeta onde desceram. Um dos personagens, ao conferir seus cálculos, diz que estão a mais de 5 mil anos de sua própria época – o que nada revela. Mas quando a nave em que viajam (é uma nave espacial que viaja no Tempo) precisa pousar, o piloto diz: “Se eu usar os desaceleradores, nós vamos brilhar mais do que a lua cheia”. E em seguida “a nave riscou o céu noturno como uma estrela cadente de brilho jamais visto, indo descer no sopé de umas colinas, fora dos limites da cidade”.

Enquanto a nave é consertada, o médico e o historiador exploram o terreno em volta e acabam descobrindo uma gruta “sombria e abafada”, com “palha e capim espalhados por toda parte”, e onde, num cercado ao fundo, estão dois jumentos e um cavalo. Ao se aproximarem dali eles vêem um homem de meia idade sair correndo, rumo à cidadezinha; quando entram, percebem uma mulher muito jovem está em trabalho de parto, com risco de morrer. O cirurgião faz uma cesariana a laser e depois fecha a cicatriz, deixando-a imperceptível. E diz: “Ninguém jamais poderá dizer, nesta época, que ela foi operada e teve um filho”. Deixam o bebê com a mãe e, quando a nave fica pronta, embarcam de volta, e ainda têm tempo de ver um grupo de pastores e camponeses aproximando-se da gruta.

É um desses contos “à clef” da ficção científica, em que uma situação familiar ao leitor é descrita pelo ponto de vista de observadores externos, e a charada vai se resolvendo aos poucos. É também um tipo de conto em que o autor procura dar uma explicação científica, ainda que com elementos imaginários, aos milagres e aos mitos de nossa cultura.