quinta-feira, 15 de julho de 2010

2272) “A Conversação” (19.6.2010)



Harry Caul é um tipo especial de detetive, o chamado “araponga”, que se especializa em escutar e gravar conversas alheias, grampear telefones, etc., a fim de fornecer provas de diálogos clandestinos. Ele não apenas executa os serviços como também desenvolve e aperfeiçoa seu próprio equipamento (bugs minúsculos colocados nos objetos pessoais ou nas casas das vítimas, etc.). Quando comparece a uma convenção de espiões (parece piada, mas não é – nos EUA isso é um mercado tecnológico como qualquer outro) é saudado por toda parte como um dos gênios dessa atividade. Invejado e imitado por todos, mantém o tempo inteiro um perfil discreto. Sua vida se complica quando recebe a função de espionar um jovem casal que namora numa praça. Ele começa a temer que o marido, um poderoso executivo que o contratou, acabe querendo matar os dois.

A Conversação (1974) de Francis Ford Coppola, é um filme injustamente esquecido hoje, talvez obscurecido pelo sucesso e pela polêmica de outros filmes que o diretor fez na mesma época, como as primeiras partes de O Poderoso Chefão e Apocalypse Now. Perto desses superespetáculos, A Conversação parece uma coisa menor, como uma canção de Tom Waits ao lado de uma canção do Pink Floyd. Ainda assim, o filme ganhou para Coppola uma das poucas Palmas de Ouro que o Festival de Cannes já concedeu ao cinema americano. Certamente pelo seu teor político: é um filme típico da Era Watergate, quando escutas telefônicas dessa natureza derrubaram Richard Nixon (episódio citado de passagem na cena em que Caul assiste TV num quarto de hotel).

As cenas em que Harry Caul remonta e equaliza trechos de gravação sonora para reconstituir as falas do casal espionado lembram as longas cenas de Blow Up de Antonioni, em que o fotógrafo revela as fotos que parecem revelar um assassinato no parque. Em ambos a mesma situação: um técnico que espiona à distância um casal de namorados e julga descobrir uma trama criminosa. A situação lembra também o recente filme alemão A vida dos outros, em que um “araponga” do governo leva meses inteiros grampeando conversas da vida de um casal no apartamento de baixo, e acaba simpatizando com as pessoas que espiona. É uma curiosa simbiose à distância: o “voyeur” deixando-se embeber pela personalidade daqueles a quem espreita.

A Conversação é um thriller tecnológico que, sem ser propriamente ficção científica, é um filmes sobre a “mídia ambiente”, em que a tecnologia tem papel essencial, e revela o mundo urbano como uma floresta eletrônica. Coppola não imaginaria os níveis de sofisticação e de onipresença que esse tipo de vigilância alcançaria hoje, mais de trinta anos depois. Seu filme, usando gravadores de rolo de fita magnética, faz a ponte entre a sociedade retrô e super-vigiada do 1984 de George Orwell e o mundo digitalizado da espionagem de agora, com câmeras de segurança em todas as esquinas e recintos, e onde ninguém pode se sentir ao abrigo de espiões.

2271) Brasil 2x1 Coréia do Norte (18.6.2010)



Uma estréia normal. O Brasil só estréia assim. A única vez em que nossa Seleção estreou arrasando, pelo menos desde que assisto Copas, foi em 1970, quando goleamos a Tchecoslováquia por 4x1, de virada, com golaços de Jairzinho (2), Pelé e Rivelino cobrando falta. Foi um baile. Depois disso, amigos, foi só empate e vitória apertada, em geral contra times fraquinhos como esse time coreano. Mesmo assim, acho bobagem esse papo que ouço a todo instante, de que “o primeiro jogo é o mais difícil”. O jogo mais difícil é o último, é a decisão do título. Só acha difícil a estréia quem nunca jogou uma final. O jogo de estréia só é difícil pela enorme carga emocional que se coloca nos ombros dos jogadores.

O Brasil jogou um futebol meticuloso, cuidadoso, parecia uma solteirona namorando pela primeira vez. Todo cuidado era pouco. Teria sido mais simples partir pra cima e ver no que dava, mas essa é a filosofia que Dunga mais abomina. Dunga é a exacerbação do estilo de Zagallo e de Parreira. O mais importante é a posse de bola e a distribuição dos jogadores em campo de modo a que quem tem a bola tenha sempre três ou quatro opções de jogada à sua volta. O time deve ficar tocando, e “só ir na boa”, ou seja, só partir para o gol quando tiver certeza. O problema é que hoje em dia essas situações de certeza pouco aparecem. Precisamos partir para o gol como quem salta no escuro, e foi justamente o que fez Maicon, acertando um chute dificílimo, mas fazendo um gol que ele próprio já fez outras vezes (lembram aquele amistoso, 6x2 em Portugal?). Claro que não acerta todas, mas um dia acaba acertando, e quando acerta o alívio é grande, não é mesmo?

O segundo gol foi um gol do Santos campeão de 2002: Robinho pega a bola, deriva para a direita, vê Elano fechando em diagonal pela ponta direita e dá a bola cruzada no meio dos beques. Se a zaga não cortar, tem 90% de chances de ser gol. Foi assim o primeiro gol de Elano pela Seleção, naquele amistoso Brasil 3x0 Argentina em Wembley, em 2007 (pode ver no YouTube).

Acho que o Brasil pode chegar até as semifinais nesta Copa, só não acredito que ganhe. Pode avançar porque tem um time sólido como a maioria não tem. Claro que no meio do caminho pode ter uma pedra, uma topada, uma surpresa. Pode até ser a Costa do Marfim, que enfrentaremos hoje. Por que não? O time africano não joga um grande futebol mas é jovem, vigoroso, rápido, e tem um técnico veterano, o sueco Ericsson, que conhece o Brasil como a palma da mão dele.

Copa do Mundo é diferente de Campeonato Brasileiro. É um torneio curto no qual é preciso se classificar ao longo dos três primeiros jogos, e depois ganhar quatro jogos seguidos. Brilhantismo conta, é claro, mas não é tudo. Dez ou quinze minutos de desorientação no meio de uma partida podem acabar com tudo. É uma corrida de 100 metros rasos uma corda bamba. Ganha não só o melhor, mas o que é melhor, mais consistente e mais sortudo.

2270) Trotsky fala de Maiakóvski (17.6.2010)




Uma antologia de Maiakóvski que comprei recentemente (Poemas 1913-1916, Ed. Visor, Madrid, 1993) traz, além da tradução espanhola de vários poemas (alguns dos quais nunca vi traduzidos em português) um prefácio de Leon Trotsky, que dá uma visão interessante e de época sobre o poeta da camisa amarela. 

O texto de Trotsky certamente não foi destinado a ser um prefácio; parece ser um trecho de uma obra maior, pelas referências que faz. Deve ser um capítulo numa análise mais longa da poesia russa daquele tempo. Suas opiniões são importantes porque Trotsky era o lado culto, cosmopolita, “artístico” da cúpula revolucionária soviética. O próprio Lênin não se comparava a ele em termos de cultura geral e literária. 

Lênin (a quem Maiakóvski dedicou numerosos elogios e pelo menos um grande poema) via com olhos atravessados o vanguardismo do poeta futurista; era um leitor dos poetas da velha guarda como Pushkin, e podemos imaginar que via Maiakóvski com os mesmos olhos com que a esquerda brasileira, nos anos 1960, via gente como Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Trotsky critica os poemas de Vladimir, mas o faz com conhecimento de causa e percepção. Diz ele: 

“Maiakóvski chegou [à Revolução] pelo caminho mais curto, o da boemia rebelde e perseguida. Para Maiakóvski, a revolução foi uma experiência verdadeira, real e profunda, porque caiu como raios e trovões cobre aquelas coisas que Maiakóvski odiava à sua maneira e com as quais não se reconciliou”. 

Mas ressalva: 

“Seus sentimentos subconscientes para com a cidade, a natureza, o mundo inteiro, não são os de um operário, mas os de um boêmio. (...) O tom cínico e impiedoso de muitas imagens, especialmente do seu primeiro período poético, denuncia as marcas visíveis do cabaré artístico, dos cafés literários e de tudo que isto significa”.

Trotsky procede a um desmonte completo do poema “150 Milhões”, uma glorificação da Revolução Soviética, no qual, entretanto, ele vê apenas equívocos e exageros, os exageros típicos de quem glorifica a Revolução num tom panfletário, caricatural, tão exagerado que acaba por denunciar a pouca identificação do autor para com ela. 

Diz Trotsky: ´

“Em Maiakóvski, cada frase, cada expressão, cada imagem trata de ser o clímax, o máximo: por isso o conjunto não tem clímax. (...) Apesar de suas hipérboles trovejantes, encontra-se nessas imagens gratuitas e primitivas uma espécie de afetação, parecida com a que os adultos adotam com as crianças”.

Os numerosos exemplos citados por Trotsky corroboram essa crítica, mostrando que, para ele, o individualismo exacerbado do poeta o fazia falar com brilhantismo de si próprio mas perder-se em imagens mirabolantes ao tentar assumir um ponto de vista coletivo. 

Ainda assim, Trotsky elogia poemas como “A Nuvem de Calças”, e diz do poeta: 

“Muitas de suas imagens, frases e expressões entraram para a Literatura e permanecerão nela durante muito tempo, se não para sempre”.





2269) Aruanda 50 anos (16.6.2010)



Nossos vizinhos pernambucanos, com sua conhecida modéstia, costumam dizer que em Recife os rios Capibaribe e Beberibe se juntam para formar o Oceano Atlântico. Nós não ficamos atrás, pois já vi paraibanos branquelos e de óculos afirmarem que Augusto dos Anjos inventou a poesia de ficção científica, e que Aruanda de Linduarte Noronha criou o Cinema Novo brasileiro. Já correu um Açude Velho de tinta comentando esse filme, e não sei se tenho algo de novo a dizer. Do que já foi dito, lembro as palavras de Jean-Claude Bernardet em Brasil em Tempo de Cinema, palavras que durante muitos anos foram repetidas como um mantra por todos os pretendentes a cineastas da minha geração, sem um centavo no bolso e com muitas idéias na cabeça:

“Vindo das lonjuras da Paraíba, Linduarte Noronha dava uma resposta das mais violentas às perguntas: Que deve dizer o cinema brasileiro? Como fazer cinema sem equipamento, sem dinheiro, sem circuitos de exibição? Tais eram as perguntas que surgiam de norte a sul do país. (...) O que fazer? “Aruanda” o dizia. Como fazer? Também o dizia.”

Jean-Claude recoloca essas questões em seguida. Ele diz, por exemplo, que as deficiências técnicas de Aruanda tiveram função dramática, mas que isso não vale para todos os filmes. Ou seja: não se pode criar uma cinematografia complexa, variada, onde caibam desde os blockbusters até os filmes-de-arte, desde os entretenimentos médios até os filmes B, baseando tudo na estética aruandense, ou na “estética da fome” glauberiana. Mas do nosso ponto de vista o cinema industrial era tão inacessível quanto a Praça dos Três Poderes. Era uma briga de cachorro grande. O que muita gente da nossa geração queria era uma fórmula que servisse para justificar o cinema que tínhamos condições de sonhar fazer. Um cinema forçosamente tosco, precário, assumindo com despudor a precariedade técnica. Um cinema zombando do cinema bem-feito, por sua pretensão, e mangando de si mesmo, por sua falta de poder. Visto por este ângulo, Aruanda prefigura, com sua estrutura de produção “não-tem-tu-vai-tu-mesmo” até mesmo o cinema “udigrudi” dos anos 1970, os filmes de Sganzerla, Bressane, Rosemberg, e tantos outros capazes de fazer um filme por cima de pau e pedra, com meia dúzia de amigos e de latas de negativo.

Aruanda não criou o Cinema Novo (afinal de contas, é posterior a Rio 40 Graus, O Grande Momento, etc.), mas influenciou todo o Cinema Novo que veio depois dele, influenciou o cinema marginal dos anos 1970 e influencia os jovens que hoje empunham uma câmara digital e vão em busca da “realidade rude”, como dizia Régis Frota. Digo que influencia porque sabemos que uma obra só influencia quem a vê. Uma obra só influencia quando existe, quando foi mesmo feita, quando se tornou um Fato Consumado. José Sanz dizia: “Cinema não se discute, faz-se”. Aruanda nos ensinou: criem um fato consumado, e o futuro nunca mais se verá livre dele.

2268) O Dia Dunga (15.6.2010)



Chegou, enfim! A Seleção vai estrear na Copa, sob as ordens de um técnico carrancudo, controlador, centralizador, secretista, militarista, e vai enfrentar uma seleção, a Coréia do Norte, de perfil carrancudo, controlador, centralizador, secretista, militarista... Pense numa sincronicidade grande! Não acho o time de Dunga o time ideal nem o time mais representativo do nosso futebol, mas acredito que pode ir mais longe do que a Seleção badaladíssima de 2006 foi. Tem condições de ir às semifinais, por exemplo. Mas não será campeã – não está no contrato.

Imagino que após a Copa de 2006 o técnico Parreira chamou a CBF e disse, “Chega, me dá o meu boné, vou embora, não sou palhaço”. A CBF chamou Dunga. “Olha, já foi tudo negociado. Eles garantiram que em 2014 seremos anfitriões, e campeões. O Brasil merece isso. Precisamos agora de alguém que perca em 2010 mas crie uma base forte para a seleção que será campeã na Copa seguinte. Com sorte, o técnico de uma será mantido até a outra, embora isto a gente não possa garantir. Mas o que precisamos agora é de alguém para ir pro sacrifício, o de perder uma Copa com o olho na próxima. As velhas raposas não toparam: Zagallo, Luxemburgo, Muricy, Felipão, Mano Menezes, os suspeitos habituais. Você, Dunga, não tem história como treinador. Quer correr o risco? Perder 2010 com a possibilidade de ganhar 2014?” O ídolo cinematográfico de Dunga (ele diz nas entrevistas) é Arnold Schwarzenegger. O que responderia Arnold, numa situação assim?

Claro que não posso provar, tudo isto é imaginação minha, mas minha imaginação de vez em quando acerta. Dunga tem feito um bem enorme à nossa Seleção, embora este bem fique eclipsado por suas atitudes antipáticas, principalmente contra a imprensa. (Ele não sabe, mas eu sei, que todo gesto para com a imprensa, tanto de simpatia quanto de antipatia, é multiplicado por dez. A imprensa funciona sempre como um zero à direita, em tudo.) Ele acabou com a tietagem, inclusive a dos repórteres (aqui pra nós, o nível intelectual e emocional da nossa reportagem esportiva numa Copa é comparável ao da imprensa inglesa ao tratar de adultérios de celebridades). E formou uma base de jogadores que, se mantiverem a integridade física, serão em 2014 um time tão experiente quanto o de 1970.

Ganharemos em 2014? Nunca se sabe. Em 1974 combinou-se que ganharia a Alemanha, dona da casa, mas a Holanda quase atrapalha, como quase atrapalhou a Argentina, dona da casa, em 78. As Copas de 1982 e 1986 foram Copas abertas, ganhava quem chegasse na frente. A de 1990 foi armada para a Itália, mas Argentina e Alemanha atropelaram na chegada. A de 1994 foi aberta de novo, e o Brasil ganhou por ser o menos ruim. A de 1998 era da França (lembram daquele domingo?). A de 2002, no Oriente, era de quem chegasse (fomos nós). A de 2006 era para a Alemanha, mas o time era tão fraco que não chegou lá. Esta aqui não sei de quem vai ser. Só sei que a de 2014 é nossa.

2267) Análise Semântica do “Tá Ligado?” (13.6.2010)



Por que motivo os jovens de hoje (e os malucos em geral) pontuam suas frases com um reiterante “tá ligado?”. Quando converso com alguns amigos meus, cada vez que eles me perguntam se eu tô ligado sinto o impulso de responder que tô. Nossos diálogos ficam com um perfil meio nonsense: “BT, preciso falar contigo uma coisa, tá ligado?” “Tô. O que é?” “Amanhã de noite vai uma galera lá em casa, tá ligado?” “Tô. Quem são?” “É um pessoal de fora, mas que é fã das tuas músicas, tá ligado?” “Tô. E daí?” “Eles queriam que tu aparecesse lá pra dar uma palhinha no violão, tá ligado?” “Tô. Que horas vai ser?” E assim por diante. Todas as vezes que faço assim, eles me perguntam por que eu estou falando de um jeito tão estranho.

Em busca das origens dessa expressão lembrei-me do “está lá?” que os portugueses usam ao telefone. São semanticamente equivalentes. Quem diz isso quer saber se o canal de comunicação está aberto e funcionando, se não houve nenhum corte. Maldo que a origem da expressão lusitana se deu numa época em que as conexões telefônicas eram precárias, e quando alguém falava mais longamente, sem ouvir nada do lado oposto da linha, tinha um certo receio de que a ligação tivesse caído. Era preciso perguntar se o outro ainda “estava lá”.

O “tá ligado” pode servir também como um sinal de pontuação, marcando o fim de uma mensagem. Mais ou menos como aquelas comunicações por “walkie-talkie” ou outros tipos de rádio em que (por alguma razão técnica que não entendo por completo) o fluxo da transmissão não permite que as duas partes falem e se ouçam ao mesmo tempo (como ocorre com o telefone normal, onde mesmo quando superpomos nossa voz para interromper o interlocutor continuamos a ouvir sua voz ao mesmo tempo que a nossa). No rádio, o fluxo é unívoco, ou seja, ou está todo indo numa direção ou todo na direção oposta. Cada um tem sua vez de falar, e por isso é necessário avisar que a fala terminou: “Alô, estamos sobrevoando o campo de pouso, precisamos de instruções, câmbio”. A palavra câmbio indica, no caso, troca , mudança de interlocutor; serve para dizer ao outro que é sua vez de falar.

Uma outra teoria vai mais longe, e talvez seja uma teoria espúria, mas vale o registro. Afirma-se que o uso regular (ainda que em doses pequenas) de plantas alucinógenas desenvolve nos indivíduos as faculdades telepáticas que o ser humano possui de nascença, mas que foram atrofiadas pelo estilo de civilização que criamos, em que a comunicação verbal e gestual rapidamente tornou obsoleta a telepatia. O uso dessas plantas possibilita ao indivíduo ficar “ligado” na mente do interlocutor, enviando-lhe o que pensa e recebendo a resposta que intuitivamente produzimos quando nos preparamos para falar. A comunicação verbal é mera formalidade, mero reforço. Na verdade nossas mentes estão em ligação direta quando falamos, por isso é sempre necessário checar se a ligação tá boa, tá ligado?

2266) Martin Gardner (12.6.2010)



Morreu no mês passado, aos 95 anos, um dos sujeitos mais inteligentes do mundo, o escritor e matemático Martin Gardner, autor de uma enorme quantidade de livros sobre filosofia e ciência, além de curiosidades e quebra-cabeças matemáticos, o que faz dele, neste sentido, uma espécie de Malba Tahan dos EUA. Além disso, assinou por 25 anos a coluna “Mathematical Games” da revista Scientific American.

Seu nome é conhecido dos leitores brasileiros pela recente reedição dos livros de “Alice” de Lewis Carroll, para os quais ele preparou uma edição cuidadosamente anotada; e pelo clássico Magias e Crendices em Nome da Ciência, um dos ataques mais arrasadores às pseudo-ciências, desde a Ufologia à crença na Terra Oca, desde a Dianética às teorias da Atlântida e da Lemúria. Também “passa o rodo” em teorias que pra mim têm um certo fundamento, como a psicologia de Wilhelm Reich e a Linguística Geral de Korzybsky, o que torna seu livro ainda mais interessante. Afinal, destruir crenças sem pé nem cabeça é como bater num bêbado. Danado é a gente acreditar numa ideia (mesmo que parcialmente) e ver um intelecto de primeira grandeza questionar aquela ideia. Seja qual for o resultado, a gente sai dessa batalha mais rico do que entrou.

Gardner escreveu sobre matemática, ciência, filosofia. Era adepto de limericks, poemas absurdos, anagramas e palíndromos. Gostava de mágicas de salão e de koans budistas. Era um sujeito de cabeça aberta, como todo cientista que se preza, sempre disposto a considerar uma premissa maluca pela simples curiosidade de ver até onde ela conduzia. Era, principalmente, um cético com empatia humana e com senso de humor. Seu ataque às “Manias e Crendices” lhe atraiu a fúria de todos aqueles criticados, embora (como ele mesmo observou com ironia) a maioria dos que o atacavam erguiam suas objeções apenas contra o capítulo dedicado a suas próprias crenças, e consideravam que todos os demais eram excelentes.

Um livro que venho lendo aos poucos é sua coletânea de ensaios The Whys of a Philosophical Scrinever (Oxford Press, 1985). Ele explica os diversos lados do seu ceticismo, em capítulos com títulos saborosos como “Ciência: Por que não sou um Paranormalista”, “Estado: Por que não sou um Anarquista”, “Liberdade: Por que não sou um Marxista”, “Fé: Por que não sou um Ateu”, “Provas: Por que não creio que a existência de Deus pode ser demonstrada”, “O Mal: Por que não sabemos o porquê”, “Imortalidade: Por que não a considero impossível”.

Gardner tinha a humildade de afirmar que ninguém pode ser convencido, por meio da lógica, de algo importante. São as nossas experiências humanas, envolvendo nossa racionalidade, nossas emoções, nossas relações com os outros e com o mundo, que mobilizam nossa mente e mudam nossa vida. O ser humano é uma Gestalt, um conjunto interligado. A Ciência é apenas um dos instrumentos de que ele se serve, mas sem tal instrumento (ele parece dizer) de nada adiantam os outros.

2265) A jabulani e a vuvuzela (11.6.2010)



Começa hoje a Copa do Mundo! O idioma português já sofre o enxerto de duas palavras turistas. Jabulani é a bola a ser utilizada na Copa, uma bola da qual pouca gente gostou. Robinho disse que quem a fabricou nunca jogou futebol e Luís Fabiano considerou-a “sobrenatural”, porque toma direções imprevisíveis, desconcertando tanto o atacante quanto o goleiro. Já a vuvuzela é nossa conhecida desde o ano passado, na Copa das Confederações: é a ensurdecedora corneta soprada pelos torcedores sul-africanos.

Antes da Copa, a televisão nos abarrota de informações sobre a África do Sul, o país de Mandela, do “apartheid”, do bispo Desmond Tutu, etc. Quero lembrar a presença do país sul-africano na biografia de dois dos meus escritores favoritos (até agora ninguém tocou no assunto).

Foi ali que nasceu em janeiro de 1892, na cidade de Bloemfontein (que será sede, entre outros jogos, do duelo entre África do Sul x França) o autor de “O Senhor dos Anéis”, J. R. R. Tolkien. Apesar de filho de duas famílias inglesas, Tolkien nasceu na África do Sul porque seu pai tinha sido nomeado gerente do Bank of Africa. Em Bloemfontein nasceram ele e seu irmão mais novo Hilary. Tolkien guardou poucas recordações dali, porque em abril de 1895, quando tinha apenas três anos, sua mãe (que nunca se adaptou ao clima africano) trouxe os meninos de volta para a Inglaterra. Das suas memórias, ficou um episódio em que foi picado por uma tarântula, o que pode ter ajudado na criação da terrível Shelob, a aranha gigante que Frodo e Sam Gamgee têm que enfrentar (em “O Retorno do Rei”) na sua entrada no reino de Mordor, para a destruição final do Anel.

Se o menino Tolkien voltou para a Inglaterra em 1895, por diferença de poucos meses seu navio não cruzou com o navio que trouxe para a África do Sul, em janeiro de 1896, um outro menino chamado Fernando António Nogueira Pessoa, cujo padrasto, João Miguel Rosa, havia no ano anterior sido nomeado cônsul interino de Portugal. Fernando Pessoa tinha sete anos quando sua mãe, para acompanhar o segundo marido, transferiu-se para a cidade de Durban (onde o Brasil enfrenta Portugal no dia 25). Ao contrário do que ocorreu com Tolkien, a permanência na África do Sul marcou Pessoa profundamente. Ele morou ali (com ocasionais visitas a Portugal) até os dezessete anos, quando, em agosto de 1905, voltou definitivamente a Lisboa, para seguir o curso de Letras.

Pessoa tornou-se poeta em Durban, e seus primeiros escritos literários, tanto em prosa quanto em poesia, dividiam-se entre o inglês e o português. O poeta permaneceu bilingue durante o resto da vida. Seus poemas ingleses são de alto nível: “Antinous” (1918), “35 Sonnets” (1918), “Inscriptions” (1921), “Epithalamium” (1921), mas têm ficado em segundo plano nas análises de sua obra, eclipsados (compreensivelmente) pela obra em português. E foi como tradutor de cartas comerciais que o poeta ganhou a vida, bem ou mal, até falecer aos 47 anos.