quarta-feira, 2 de março de 2016

4065) A vingança do careta (3.3.2016)





Existe um gênero de narrativa que poderíamos chamar “Bandidos Negligentes Ofendem Sem Querer Pai-de-Família Pacato Transformando-o Numa Verdadeira Máquina De Matar.” Acho que já vimos muita gente nesse tipo de papel: Charles Bronson, Lee Marvin, Mel Gibson, Walter Matthau, Sylvester Stallone, e por aí vai. É uma narrativa que sempre promete. A vingança é um prato que se come frio, e é o melhor exemplo de violência auto-justificada no universo da Literatura da Crueldade. Um malfeito grave, sofrido tempos atrás (principalmente em contexto de covardia, contra pessoas indefesas, etc.) justifica qualquer requinte sádico capaz de ocorrer ao Pai-de-Família Pacato para aplicação nos culpados. Opção que ele nunca descarta.

Uma faísca disso que me apresentaram recentemente foi o romance de Jean-Patrick Manchette, Le Petit Bleu de la Côte Ouest (1976). Nele, Georges Gerfaut é um francês de trinta e poucos anos, casado, duas filhas pequenas, caretão, executivo. Uma noite ele retorna de uma viagem de negócios e vê na estrada um acidente banal, com um dos automóveis fugindo às pressas e o outro se espatifando fora da estrada. Ele desce, traz para seu carro o passageiro único do carro acidentado, visivelmente ferido e em choque. Gerfaut deixa o homem na emergência de um hospital na vila mais próxima, mas só então percebe que ele tinha sido baleado. Era uma execução, na qual ele se meteu sem querer. O homem baleado acaba morrendo, mas nesse ponto a narrativa passa a acompanhar os dois pistoleiros que estavam no outro carro. Eles conseguem identificar quem ajudou a vítima (alguém havia anotado a placa de Gerfaut).

Começam aí dois movimentos contrários, como o ir e vir de um pêndulo ou da katana de um samurai. No primeiro, mais longo, os dois assassinos “fecham” sobre Gerfaut, para eliminá-lo, e quase o conseguem. Gravemente ferido, ele é dado por desaparecido pela família, mas vai se recuperando dos ferimentos num esconderijo remoto, com a mesma paciência de Augusto Matraga. Quando fica bom, é localizado, e aí começa o movimento inverso: ele passa a perseguir seus perseguidores.

Jean-Patrick Manchette (1942-1995) era um fã de jazz (como Gerfaut) e do “roman noir” norte-americano. Seus livros são chamados de polares (=romance policiais, na França) existencialistas. Este romance foi traduzido ao inglês, primeiro como 3 to Kill e depois como West Coast Blues; foi adaptado em novela gráfica por Jacques Tardis (2005), e no cinema por Jacques Deray (1980). É um daqueles enredos acidentados e cheios de solavancos de Bruno Fischer ou David Goodis, impregnados do absurdo de Albert Camus.