domingo, 1 de abril de 2018

4331) "Fake News" versus "Fake Art" (1.4.2018)



As ondas sucessivas de “fake news”, noticiários falsos, mentirosos, caluniosos etc. que se veem na imprensa e nas redes sociais são muitas vezes atribuídas à Internet. “Com a Internet ficou muito fácil falsificar coisas,” dizem os críticos. “Os jovens da era da Internet são ingênuos, acreditam em qualquer mentira,” dizem outros.

A Internet não inventou nada disso. Essas coisas, como se diz na Paraíba, são do tempo em que Adão era cadete.

Num contexto político acalorado, radicalizado, as pessoas querem ser as primeiras a ter conhecimento dos fatos. Quando os “fatos” correspondem aos seus interesses ideológicos (elas passam o dia procurando fatos assim) elas os encampam sem pesquisar, sem checar fontes, sem rastrear de onde veio aquela notícia tão chocante. “Nada mais crédulo do que quem quer acreditar”, como já disse o poeta.

O mais irônico das “fake news” é que nunca foi tão fácil pesquisar a autenticidade de uma informação; e nunca se o fez tão pouco.

A pior coisas dessas “fake news” são duas, na verdade. A primeira é disseminar mentiras, ódio e preconceitos. Esse é o cerne da questão.

A segunda é – e aqui eu chego por fim ao meu território de jurisdição, que é a criação artística --- produzir um discurso pouco nítido contra tudo que é invenção, contrafação, burla, metalinguagem. Existem muitos discursos desorientados contra “falsos contos”, “autores inventados”, “reportagens jornalísticas com excesso de liberdades”, “documentários fake” e assim por diante.

Tem gente que se irrita com Fernando Pessoa por ter inventado poetas que não existiam, com o Dicionário Kazar por contar a história de um povo imaginário, com pseudo documentários estilo This Is Spinal Tap, acompanhando uma banda de rock fictícia.

Há todo um universo de “arte artificial” que não tem nada a ver com mentiras destinadas a enganar alguém e aproveitar-se disto, seja politicamente, seja financeiramente.

Uma porta de entrada para essas práticas é o esclarecedor e bem-humorado filme de Orson Welles, Verdades e Mentiras de Orson Welles (“F for Fake”, 1975). (Foi onde vi pela primeira vez com destaque a palavra “fake”, e nunca mais esqueci.)

Falando de pintores que falsificam quadros, e do cara que falsificou um livro de memórias, Welles mostra que no mundo da criação artística, ao contrário do jornalismo, a invenção faz parte das regras, e nada pode ser considerado verdadeiro ou falso “a priori”. Numa obra de ficção não se aplica o critério de “é verdade ou é mentira”.

O mundo da arte está cheio de obras imitadas, inventadas ou inexistentes, que algumas pessoas bolaram com intenções estéticas – nunca com intenções de “ganhar dinheiro às custas de otários” ou de produzir ódio político.

Muitas dessas obras surgem como experiências estéticas, e o exemplo mais óbvio é o do próprio Orson Welles, quando adaptou A Guerra dos Mundos (1898) de H. G. Wells para uma transmissão em forma de noticiário de rádio, fazendo milhões de norte-americanos acreditarem que os EUA estavam sendo invadidos por marcianos.




Mais interessante do que isto, no entanto é inventar uma obra de arte que não existe, dando sua existência como certa, e administrar as consequências.

H. P. Lovecraft inventou o Necronomicon, o catastrófico manual de poderes ocultos escrito “pelo árabe louco Abdul Alhazred”. Por certo não imaginou que o livro acabaria existindo de verdade. É um livro que lido pode levar à loucura; seu poder é tão forte que os seguidores de Lovecraft já escreveram e publicaram talvez algumas dezenas de versões do “livro que não existe”.


Lovecraft talvez não tenha tido a intenção de “fazer uma pegadinha”. Mas Jorge Luis Borges, que era mais humorista do que ele, certamente a teve quando publicou em 1936, em sua coletânea Historia de la Eternidad, uma resenha detalhada e elogiosa a um livro intitulado A Aproximação a Almotásim, escrito por um indiano chamado Mir Bahadur Ali e prefaciado pela novelista britânica Dorothy Sayers.

O livro não existia, para decepção de alguns intelectuais argentinos que o encomendaram à editora Victor Gollancz, em Londres.


("capa" de George Kranitis)

Borges explicou depois, numerosas vezes, que para ele era muito mais interessante imaginar uma idéia originalíssima para um livro de 400 páginas e, em vez de perder tempo escrevendo-o, fazer de conta que tinha sido escrito por outra pessoa e comentá-lo. Com isso, a idéia central do livro passava a incorporar o banco-de-dados da literatura imaginativa, sem que ele tivesse que redigir 400 laboriosas páginas para isso.

Isto é uma fraude? De jeito nenhum: é ficção, artifício, termos que Borges trouxe para o centro de um debate literário portenho que até então se focava na missão de “reproduzir a realidade”.

No sentido que estou usando neste texto, “Fake Art” não se refere à cópia fraudulenta de uma obra famosa, como Elmyr De Hory, o falsário rico, mostra fazer no filme de Orson Welles.  “Fake Art” é o que faz Borges, dizendo que o livro tal-e-tal existe, comentando-o, levando-o a sério, e depois percebemos que o livro existe, sim, mas só sob a forma daquele comentário.

Para mim, são mais interessantes as obras (como o Necronomicon) que são inventadas e depois, por força de seu poder magnético e sugestivo, acabam sendo criadas por alguém. Como os hronir, os objetos conceituais de outro conto borgeano: mostra-se um terreno qualquer a alguns trabalhadores e se diz que ali há tais e tais objetos enterrados. Eles cavam e acabam encontrando os tais objetos – que na verdade não existiam antes, “foram produzidos pela própria expectativa de encontrá-los”. Em Tlön, quem procura, acha.

Uma divertida história no mundo do rock é a do super-grupo The Masked Marauders, cujo LP foi anunciado, coberto de elogios, numa resenha borgeana da revista Rolling Stone em 1969. A resenha (escrita por Greil Marcus, um dos meus críticos de rock preferidos, sob o pseudônimo de “T. M. Christian”) dizia que o nome da banda escondia super-astros como Mick Jagger, Bob Dylan, os Beatles e outros.



Era uma reunião bastante possível de acontecer, entre músicos amigos que resolvem tocar juntos, sob um pseudônimo. (Mais ou menos como Dylan, George Harrison e outros vieram a fazer anos depois com o grupo The Travelling Wilburys.)  A resenha foi escrita em tom de gracejo, mas começou a ser levada a sério, principalmente pelos fãs e pelos donos de lojas de discos.

Surgiu então a reviravolta genial. Uma banda californiana foi alugada para gravar o disco que não existia, mas cujas faixas haviam sido descritas na revista. A criação meramente conceitual foi concretizada no estúdio. O disco não existia – mas o sucesso da resenha fez com que ele acabasse sendo composto e gravado.

Aqui, uma matéria completa, inclusive entrevistando Greil Marcus e outros perpetradores:


Isto me lembrou um episódio meio obscuro da ficção científica, um dos momentos mais borgeanos que o gênero já vivenciou.

Quando John W. Campbell era editor da revista Astounding Science Fiction, publicou no número de novembro de 1948 uma carta de um leitor (Richard A. Hoen, de Buffalo, NY) elogiando o número de novembro de 1949 da revista, desde a capa de Hubert Rogers até alguns contos que ele citava nominalmente: “What Dead Men Tell” de Theodore Sturgeon, “...And Now You Don’t” de Isaac Asimov, “Gulf” de Robert Heinlein, “Over the Top” de Lester Del Rey e outros.

A carta, é claro, era uma brincadeira do leitor – fingindo que estava escrevendo “do futuro” e comentando contos, inventados, de uma revista que só deveria ser publicada doze meses depois.

Campbell “pegou na palavra” a previsão (ou o “cronoclasma”, paradoxo temporal, segundo John Wyndham) do leitor e teve doze meses para encomendar àqueles autores os contos cujos títulos Hoen havia imaginado. E a Astounding SF de novembro de 1949 saiu quase exatamente (foi impossível reproduzir 100%) como Richard Hoen havia imaginado.



Oscar Wilde dizia que é mais fácil a vida imitar a Arte do que a Arte conseguir imitar a vida. Episódios como estes últimos mostram que obras fictícias ou meramente conjeturais acabam às vezes adquirindo existência real porque impressionam algumas mentes criativas, as quais se dedicam, a partir daí, a trazê-las ao mundo.

Por isso contesto quem chama isso de de fraude, de picaretagem. Toda obra literária tem primeiro uma existência conjetural, imaginária, até que alguém se decida a encarar o trabalho braçal de escrevê-la. Os variados “Necronomicons” produzidos pelos fãs de Lovecraft não serão nunca a obra perfeita (ou a Abominação Absoluta) imaginada por seu criador. Mas são subprodutos dela. São filamentos da criação de Lovecraft.

Afinal de contas, todo livro escrito (de Dante a Shakespeare, de Machado a Guimarães Rosa) é um mero subproduto do livro imaginado pelo próprio autor; mas é de subprodutos assim que a arte e a literatura sempre foram feitas. Ser compararmos cada livro escrito com o livro imaginado pelo seu autor, reconheceremos que toda obra de arte é fake.