terça-feira, 30 de novembro de 2010

2414) Imprensa e liberdade (30.11.2010)




Toda vez que um governo anuncia qualquer medida de controle da imprensa, os jornais, rádios e TVs se assanham e se pintam para a guerra. E têm mais é que fazer isso mesmo. Se a imprensa não defender seus próprios interesses, quem vai fazê-lo? A Sociedade Protetora dos Animais? 

Alguns jornalistas, no entanto, como qualquer outra categoria, gostariam de ter liberdade ilimitada. Dizer o que bem entendessem, ficando tudo por isso mesmo; publicar qualquer coisa sem terem que prestar contas a nenhum tipo de controle externo. O que ocorre é que, como com qualquer cidadão, a liberdade do jornalista termina onde começa a liberdade alheia.

Na vida real, acabamos sempre chegando à situação expressa no velho clichê de “não devemos confundir liberdade com libertinagem”. A imprensa não tem liberdade para publicar injúrias, calúnias ou difamações – se um cidadão comum é punido pela lei, se o fizer, por que motivo uma empresa não o seria? 

A imprensa não pode pregar o ódio ou o racismo. O grande teste sobre liberdade de imprensa é sempre perguntar: Você defende a proliferação de jornais nazistas ou de estações de TV da Ku-Klux-Klan?

Durante o tempo da ditadura militar o antagonismo entre governo e imprensa era de tal ordem que se criou, principalmente em nós, jornalistas, a noção de que o governo está sempre errado (“porque todo governo é mal intencionado, é corrupto, e se pudesse calaria para sempre a boca da imprensa”) e a imprensa está sempre certa (“porque ela é a consciência crítica e o olho vigilante da população, e só trabalha movida pelos interesses mais altruístas, éticos e desinteressados”). 

Sejamos realistas – nem sempre é assim. Às vezes, os governos podem ser democráticos, e órgãos da imprensa podem ser golpistas. Às vezes, os governos podem estar pensando no bem da população, e alguns órgãos da imprensa podem estar pensando apenas em encher os cofres de dinheiro suspeito. E assim por diante. Ocorre em qualquer país, em qualquer época. É da natureza humana.

Já falei aqui que a maior liberdade de imprensa seria um jornalista poder publicar num jornal uma matéria de duas páginas, exaustivamente pesquisada, denunciando os trambiques do próprio dono do jornal. 

Sempre que digo isso, todo mundo ri: “Ora, isso seria impossível”. Por que é impossível? Ora, porque todo mundo sabe que dentro de uma empresa todos os interesses (dos empregados) estão subordinados aos interesses dos patrões. O jornal pertence ao patrão, e serve para defendê-lo. Qual o patrão que é doido de permitir esse tiro-pela-culatra, esse hara-kiri de voltar a arma contra si mesmo? 

Surge daí o corolário: é raro, raríssimo, um jornalista ter plena liberdade para escrever o que quiser. “Liberdade de imprensa” é uma expressão ideal, é como quando os professores de Física: “Em condições normais de temperatura e pressão...” ou então “Uma esfera ideal desliza sem atrito por um plano inclinado...” Não existe na vida real.





segunda-feira, 29 de novembro de 2010

2413) Um Morcego na Porta Principal (28.11.2010)




Vi na TV a cabo este documentário sobre Jards Macalé (direção de Marco Abujamra e João Pimentel), que vem, não sei se por coincidência ou colateralidade, na esteira de vários outros trabalhos sobre artistas ligados ao Tropicalismo, como é o caso de filmes sobre Tom Zé e Os Mutantes. 

Macalé foi ligado ao Tropicalismo – mas do mesmo jeito que Tom Zé, outro grande bloco-do-eu-sozinho, também foi. Macalé é um sujeito imprevisível, personalista no bom sentido, que dança conforme a própria música. 

Como se sabe, existe Artista Bumbo e Artista Tarol. 

Artista Tarol é aquele que chama uma atenção danada, fazendo solos e floreios, exibindo-se, arrancando aplausos. Artista Bumbo é o que quase não aparece, mas é ele quem dita o ritmo. 

O Artista Tarol é muito bom para fazer enfeites, mas se entregue a si próprio perde o rumo porque não tem uma idéia muito clara de quem é nem pra onde está indo. Em geral, produz melhor se tiver ao lado um Artista Bumbo, que fica meio fora dos holofotes, ajudando o outro a se exibir, e mandando recados telepáticos: “Agora acelera. Agora retarda. Agora um breque. Agora samba. Agora maracatu”.

E há os que são Bumbo e Tarol de si mesmos, como Jards Macalé, que já foi hippie tropicalista, sambista de breque à Morengueira, cirurgião de dor de cotovelo, semi-roqueiro pop com tempero da Zona Norte... faltam rótulos. Numa única vida já teve mais encarnações do que certas socialites tiveram em vidas passadas. 

O filme reúne um bom material de arquivo com áudios e vídeos raros, de uma época em que fazer audiovisual custava uma gruta de Aladim, e o edita com depoimento dos companheiros de geração do Morcego.

Vi ou revi imagens de palco em que Macalé, debruçado sobre o violão, ronca, se esguela, rasga um rugido lá das entranhas da garganta, soluça e balbucia: trinta anos atrás ele fazia o que tempos depois consagrou Tom Waits diante do microfone. 

O violão de Macalé parte de um refinamento harmônico quase erudito para uma vigorosa desconstrução quase punk, de batidas e pancadas, lapadas e rasqueios sem intenção caligráfica. O filme dá uma boa ideia dos muitos e surpreendentes lados do parceiro de Waly Salomão nas canções de “morbeza romântica”. Fico pensando que os garotos punk de hoje, que torcem o nariz para a caretice do samba e da MPB, se vissem Macalé por inteiro concederiam: “Esse aí não, esse aí é maneiro”.

Com as gravadoras, principalmente, a personalidade de Macalé sempre foi angulosa e cheia de arestas, arriscada de conviver muito de perto ou durante muito tempo. Como todos os grandes individualistas, veste o próprio personagem 24 horas por dia, e quem não gostar que se explôda. Diz na cara o que lhe dá na telha, não costuma abaixar o queixo nem diminuir a voz. 

Como tantos outros artistas chamados de maldito, na verdade é maldizente, nunca teve papas na língua nem cardeais no Vaticano. Bolerista elétrico? Bossa Nova trash? Trópico-dadaísta? Faltam rótulos.






2412) Passeio num Lugar Público (27.11.2010)




Foi graças a Lula & Chico Pereira que, em 1967, entrei em contato com a obra de José Agrippino de Paula, o escritor pop-existencial-tropicalista (minha Nossa Senhora, como esses rótulos são insuficientes) que é uma espécie de 29 de fevereiro na nossa literatura – tem horas que existe, tem horas que não. 

Agrippino é mais conhecido pelo seu livro Panamérica (1967), mas o que li naquela época foi seu primeiro romance, Lugar Público (1965), que num certo sentido é superior ao livro mais conhecido. 

Na época, a Revista Civilização Brasileira (uma espécie de bíblia mensal dos jovens intelectuais de esquerda, em cujas fileiras eu era doido para entrar) promoveu um debate sobre literatura com meia dúzia de escritores, enviando para todos as mesmas perguntas. 

Do que foi respondido só me lembro de uma frase de Agrippino: “Para mim tanto faz começar um livro pela primeira página quanto pela última”. Tipo isso.

Lendo Lugar Público fiquei sabendo por que. O livro é um romance fora-de-esquadro em que cada parágrafo é uma unidade solta, independente dos demais. Cada vez que ele faz ponto-parágrafo, saltamos para outro espaço e outro tempo. 

O que nos desnorteia é que graficamente os parágrafos se sucedem como os de um livro normal ou os deste artigo. Se estivessem separados por vinhetas, ou numerados, o desnorteamento seria diferente, e menor. O modo como ele corta de um parágrafo para o próximo lembra o jeito como Godard usava um corte brusco em pontos onde no cinema tradicional se usaria uma transição lenta (fusão, escurecimento e clareamento, etc.).

Há parágrafos de duas linhas e parágrafos de muitas páginas. Vários deles retornam ciclicamente, inclusive alguns com visões surrealistas tiradas de quadros de Hieronymus Bosch. 

Na maior parte do tempo, a história acontece numa cidade asfixiante, tenebrosa e opressiva, espécie de antologia das áreas mais boca-do-lixo e fuliginosas de São Paulo, e mostra as perambulações de um grupo de intelectuais com nomes como Pio XII, Péricles, Napoleão, Galileu, Bismarck... 

Os personagens são meio sem rosto e quase intercambiáveis, por trás desses nomes de gente famosa. Há um narrador na primeira pessoa que às vezes parece um personagem constante, às vezes parece um dos que são nomeados nos outros trechos.

A prosa de Agrippino (e em Panamérica isto é ainda mais intenso) é uma prosa meio autista, de quem contempla e descreve tudo sem envolvimento afetivo e sem ligar muito para o que ocorre. Uma linguagem gravador-e-câmara muito diferente da que o “nouveau roman” francês praticava. 

O que talvez mais impressione é percebermos que há pessoas que vivem assim, que veem as coisas assim, que pensam assim. Mais distanciados e estranhados do que qualquer brechtiano radical. 

Se o livro de Agrippino se intitulasse Relatório Coletivo de Alienígenas Amnésicos Naufragados no Planeta Terra, poderia ser lido e interpretado como um dos clássicos da FC brasileira.











2410) O Politicamente Correto (25.11.2010)




O quer significa ser “politicamente correto”, esta expressão tão em moda? É curioso como em poucos anos um rótulo passa de elogioso a ridículo. Existe alguém, hoje em dia, que afirme publicamente que age de tal ou tal maneira porque é politicamente correto? Deve existir, porque afinal o mundo é grande; mas o desgaste desta expressão, pelo menos na sociedade onde vivo, parece em certas horas ser maior do que o mundo.

A utilização consciente e sistemática do termo é uma coisa (me parece) do ambiente acadêmico, de esquerda, norte-americano. (Sim, o marxismo não morreu. Está vivinho da silva no interior da Tróia para onde se infiltrou na calada da noite. Fermenta nos cursos estruturalistas, nos programas de ação afirmativa, nas cadeiras que estudam o feminismo, a política do corpo, a semiótica de classe, a cyber-escravidão, a dialética do desejo, da submissão e do poder.) Surgiu como uma tentativa de resposta intelectual, argumentada, teorizada, às atitudes de menosprezo ou preconceito contra as mulheres, os negros, os gays, os índios, os imigrantes, os portadores de deficiência e outras minorias.

A teoria por trás disto é de que as estruturas de poder em nossa sociedade se exercem em função de uma ideologia produzida por e para uma minoria dona dos meios de produção, masculina, branca, heterossexual, patriarcal, de classe média para cima e (no caso específico dos EUA) de origem anglo-saxã e religião protestante. As minorias citadas antes são, no contexto dessa ideologia, grupos subalternos, que obedecem porque têm juízo. O mundo não foi feito para eles. Melhor ficarem caladinhos, sem reclamar, se não serão mandados embora do mundo.

O Politicamente Correto se revoltou contra esta situação e inverteu os estatutos de comportamento. Note-se que a expressão não é, p. ex., “moralmente, ou eticamente correto”. A inspiração dessa atitude é uma inspiração política, de trazer para perto de si os “partidos” pequenos de oposição, inexpressivos numericamente, mas, se agrupados numa aliança política, com poder-de-agito bastante para fazer uma diferença no jogo político. Foi isto que acabou por desgastar o rótulo. Porque muitos norte-americanos brancos que defendem os índios ou os negros na verdade não morrem de simpatia por eles nem pelo destino deles. Defendem-nos porque é politicamente correto, ou seja, é politicamente útil defendê-los.

Os membros de uma minoria desprestigiada (os “paraíbas”, p. ex.) sabem quando alguém sente uma simpatia natural e instintiva por eles, quando alguém não se julga superior a eles – por ter uma índole igualitária, ou por um princípio ético permanente. E sabe quando esse “alguém” se julga superior a eles mas não os ofende porque seria taticamente reprovável ofendê-los (ou seja, dizer o que realmente pensam); não seria politicamente correto, não seria politicamente útil. O membro da minoria ergue o rosto, cruza o olhar com ele e pensa consigo: “Esse aí, não”.



quinta-feira, 25 de novembro de 2010

2409) “O Grande Gatsby” (24.11.2010)



Não lembro muita coisa deste livro de Scott Fitzgerald, que li numa tradução da Civilização Brasileira quando tinha meus 18 anos. Gostei, mas o que acabou me ficando na memória foi a luxuosa adaptação dirigida por Jack Clayton em 1973. Um filme que saiu na capa da “Time” mas foi depois bombardeado pela crítica. Não o acho um mau filme, mas David Thomson (um crítico sempre capaz de descrições devastadoras) o considera “ um filme desastroso, feito com um cuidado vulgar e equivocado”. De fato, o filme parece em muitos momentos uma daquelas festas de casamento de milionários, em que vigoram duas leis: não há limite de gastos, e nada pode dar errado. Como se sabe, são leis incompatíveis.

Sempre imaginei que os “roaring twenties” fossem algo mais animado do que o cinema costuma mostrar, mas isto talvez se deva ao deslumbre de minhas fantasias de nordestino. O “Gatsby” de Clayton é limpinho demais, cenográfico demais, parece que antes do diretor gritar “Ação!” alguém passava um aspirador de pó no cenário e no elenco inteiro. Para efeito de contraste, a oficina de lanternagem de Wilson, cuja esposa o trai com Jay Buchanan, é uma ilha da futura Grande Depressão que escapuliu por uma fenda do espaço-tempo e desabou à beira da estrada. A vitória da magia do cinema é que dois climas cenográficos tão artificiais pareçam verdadeiros apenas quando justapostos.

Gatsby (Robert Redford) é, como o Cidadão Kane de Wells, o milionário que tem tudo, menos o que realmente queria. No caso dele, o amor de Daisy (Mia Farrow), uma melindrosa encantadoramente fútil, casada com um jogador de polo preocupado com a escalada da miscigenação racial (Bruce Dern, em mais um papel de marido truculento traído pela esposa). Daisy acaba sendo o grande personagem do filme, porque Mia Farrow, conscientemente ou não, a transforma numa personagem patética, aparentemente incapaz de inspirar uma paixão tão devastadora em quem quer que fosse. De certa forma, é ela quem encarna o espírito de sua época, um espírito de riqueza desperdiçada, de festas permanentes e sem alegria, de frivolidade inconsequente.

Os ricos de Fitzgerald em 1920 não são diferentes dos ricos de Fellini “A Doce Vida”) ou Antonioni (“A Noite”) em 1960. Gatsby dá gigantescas festas boca-livre como quem espalha mel para atrair nuvens de moscas. Tem a esperança de atrair a mulher amada – porque ele sabe que cedo ou tarde ela aparecerá. Daisy é fragílima e onipotente; aquele tipo de mulher a quem os homens chamavam de “cabecinha de vento”, qualidade que, por uma razão misteriosa, as torna mais irresistíveis do que uma mulher com o juízo no lugar. Gatsby e Buchanan a disputam às cegas; nenhum dos dois sente firmeza nos sentimentos dela, talvez porque percebam que ela mesma não tem a menor ideia do que está sentindo agora e do que pode vir a sentir daqui a cinco minutos. É um romance de mal-entendidos, e o crime que o encerra é o mal-entendido mais patético de todos.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

2408) O nosso século 19 (23.11.2010)




(Gustave Doré, Londres)

Fala-se muito hoje que o romance realista clássico não tem mais lugar em nossa sociedade tecnológica, informatizada, pós-moderna. A grosso modo, o romance realista é o romance que conta uma história com começo, meio e fim, descrevendo a vida de pessoas reconhecíveis num ambiente complexo, descrito com nitidez social e verossimilhança histórica. Esse romance seria mais ou menos, ressalvando a peculiaridade de cada autor, o romance praticado por Balzac e Flaubert (França), Charles Dickens (Inglaterra), Tolstoi e Dostoiévski (Rússia), etc. Esse tipo de literatura, para muitos críticos, teria sido posto em xeque, ou até mesmo inviabilizado, por uma literatura mais introspectiva e psicológica, além de estruturalmente descontínua e fragmentada: a de James Joyce (Irlanda), Virginia Woolf (Inglaterra) e Marcel Proust (França).

Curiosamente os nossos “balzacs” foram todos do século 20: Jorge Amado, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz. São os nossos grandes realistas, e, mesmo com a pressão das vanguardas, eles continuam a ser lidos e continuamos a considerar que sua literatura corresponde a uma necessidade do público leitor. O leitor tem necessidade de literatura mimética, de literatura que pareça contar uma história real com pessoas de verdade. Talvez esta necessidade tenha sido produzida artificialmente ao longo de dois séculos, mas que existe, existe.

Um artigo recente de George Packer (http://tinyurl.com/2c5652u), intitulado “Dickens in Lagos”, propõe uma ideia interessante. Ele relata um diálogo com um jovem leitor de Burma, que adotou o pseudônimo de Somerset em homenagem ao escritor inglês Somerset Maugham, um realista de boa cepa. O rapaz, fã também de Charles Dickens, afirmava, para surpresa do britânico: “Nenhum inglês ou americano vivendo no século 21 pode entender Dickens tão bem quanto eu. Eu vivo numa atmosfera dickensiana. Nosso país está atrasado em pelo menos dois séculos em relação ao mundo ocidental. Minha vizinhança – sombria, pobre, com pequenas manufaturas domésticas, crianças brincando na rua, casais brigando o tempo inteiro, gente endividada, gente suja. Isso é puro Dickens. Eu cresci nessa atmosfera tipo Dickens. Estou mais preparado para entender Dickens do que esses romances modernos. Eu não sei o que é ar condicionado, o que é metrô, o que é datiloscopia”.

O retrato feito pelo jovem Somerset é curioso porque reflete em grande medida uma realidade brasileira. É um retrato incompleto, é claro, e não invalida a literatura de vanguarda de hoje, mas explica parcialmente por que motivo os autores de 150 anos atrás continuam atuais: porque a realidade social e o repertório literário de grande parte de cada país está mais próximo de Dickens do que de Paul Auster, mais próximo de Dostoiévski do que de Robbe-Grillet. A literatura do século 19 continua viva nas periferias do século 21, e nada indica que não tenha, ela também, uma longa existência pela frente.




domingo, 21 de novembro de 2010

2407) Os Índios Tabajaras (21.11.2010)



Eu os escutava muito quando era pequeno, porque fizeram grande sucesso na Era do Rádio, quando a música era somente música, sem imagem, e não dependia da carinha bonita, do rosto varonil ou da roupa exótica de quem estivesse cantando. 

Não que os Índios Tabajaras dispensassem este último item. Nas revistas e jornais daquele tempo surgiam as fotos daquele “cadavre exquis” antropológico: dois índios cor de bronze, cheios de penachos e pinturas de urucum, empunhando violões iguais ao de Canhoto ou de Dilermando Reis. Eram anunciados pelo locutor com certo espanto. Era como se dissesse: “E agora com vocês, pelas ondas da Rádio Borborema, um quarup gravado in-loco diretamente da tribo dos Urubu-Kaapor na Amazônia!” Tipo isso. 

Ouvir uma música tocada pelos Índios Tabajaras gerava uma expectativa meio surrealista. Com dez anos, sentado no sofá da casa da Rua Miguel Couto, eu ouvia o rádio enchendo a sala, não com um quarup cheio de maracás e bate-pés, mas dois violões (ou guitarras com eco, tipo havaiana) de límpido timbre, solando: “Maria Helena és tu... a minha... inspiração...” 

É pena que esta coluna seja em mero papel, leitor, mas os Índios Tabajaras que mesmerizaram minha infância podem ser escutados hoje no YouTube. Por exemplo, seu lado romântico e melódico está em “Begin the Beguine” de Cole Porter (somente áudio: http://tinyurl.com/2ga3du3), no tema de “Johnny Guitar” (somente áudio: https://tinyurl.com/y38lqhn6). 

Mas imaginem o pasmo dos gringos vendo-os, paramentados de índio, tocando clássicos como a “Hora Staccato” de Grigoras Dinicu (http://tinyurl.com/2fdzf68). 

Nasceram na serra do Ibiapaba (CE), foram morar na cidade, aprenderam a tocar violão. Tocaram no Brasil inteiro nos anos 1950. Viajaram pelo mundo, e a partir dos anos 1960, com músicas estouradas nos EUA, mudaram-se para lá. No início dos anos 1970 tinham 48 LPs gravados com 8 milhões de cópias vendidas. 

Muita gente se pergunta por que motivo esses caras foram tão famosos fora do Brasil e hoje ninguém mais lembra deles. Eu diria que, por um lado, eles sofreram da Síndrome de Carmen Miranda, do exotismo que fascina lá fora mas aqui dentro provoca um muxoxo de desconfiança: “Pra que essa palhaçada?... Por que não se vestem como qualquer pessoa?...” 

O povo brasileiro tem uma relação estatisticamente contraditória coma exploração do próprio exotismo. Mas não há como um norte-americano ou um europeu não ficar embasbacado diante de dois índios tocando peças clássicas impecavelmente, ao violão. Parece cena de um filme de Glauber. 

Para terminar, vejam Nato, o solista, explicando com bom humor alguns aspectos de sua técnica: http://tinyurl.com/2bsenp6, e depois dando um arraso naquele número que é um teste tradicional de velocidade, o “Voo do Besouro” de Rimsky-Korsakoff. E um pequeno clip dos dois sendo saudados nos programas de Johnny Carson, Ed Sullivan, etc.


sábado, 20 de novembro de 2010

2406) O Ulisses britânico (20.11.2010)



Joshua Cohen elegeu, como o equivalente britânico do Ulisses de Joyce, o romance Mrs. Dalloway de Virginia Woolf. 

Alguém pode estranhar a enorme diferença de ponto de vista entre os dois livros. O Ulisses é na verdade o romance de uma cidade inteira, Dublin, com seus bairros, suas vielas, seus bares e bordéis, seus variados sotaques e dialetos (toda cidade grande os tem), ao passo que o livro de Woolf é uma história intimista, que ocorre toda dentro da mente da protagonista. 

Não li este livro por inteiro; tive-o há anos numa boa tradução de Mario Quintana. Cohen justifica assim sua escolha: 

“É a resposta britânica feminina à masculinidade irlandesa. A narrativa de Woolf acompanha um dia de junho na vida de Clarissa Dalloway, enquanto ela organiza uma festa que dará à noite. O que era externalizado em Joyce – detalhes físicos, ação – é internalizado em Woolf – detalhes mentais, psicologia. Seu livro é um triunfo da nossa voz mais íntima”. 

Os dois livros têm em comum a história de “um dia na vida de uma pessoa”, e um discurso que acompanha os ritmos e associações verbais da mente semi-consciente, ao invés de nos dar uma descrição pretensamente objetiva do mundo exterior. 

As diferenças entre um e outro também são grandes. Mrs. Dalloway é uma história intimista, mas Ulisses é aquilo que o pessoal chama de um grande painel social, com uma sucessão de ambientes e uma multiplicidade de personagens e de situações capaz de deixar tonto o leitor. Um é um livro pequeno voltado para dentro; o outro é um livro grande voltado para fora. 

A certa altura do livro, diz Woolf: 

“Ela tinha a sensação constante, enquanto olhava os táxis, de estar longe, muito longe, lá no alto mar e sozinha; sempre tivera a sensação de que era muito, muito perigoso viver por um dia que fosse”. 

É o tema guimarãesrosiano do “viver é muito perigoso” em Grande Sertão: Veredas, só que aqui não se fala do sertão de jagunços e tiroteios, mas da angústia de experimentar a intensidade de cada momento. Mrs. Dalloway, como grande parte de ficção de Virginia Woolf (e de autores como Clarice Lispector) fala do modo quase insuportável como o momento presente é experimentado por um tipo de pessoa excessivamente sensível, com acuidade fora do normal para todo o entrecruzamento de impressões sensoriais, lembranças e emoções que podem se concentrar num breve instante. 

A ficção de Virginia Woolf (junto com a de Proust e de Joyce) serviu para equacionar de forma diferente a questão do tempo literário, da possibilidade de se dilatar ilimitadamente um instante vivido por um personagem. 

Cabe aqui a frase famosa de Borges em “O Aleph”: “O que vi foi simultâneo; o que descreverei agora será sucessivo, porque a linguagem assim o é”. Essa possibilidade de infinita subdivisão desse instante psicológico em tempos simultâneos foi uma das grandes conquistas da literatura praticada por esses autores.






sexta-feira, 19 de novembro de 2010

2405) Os Viajantes no Tempo (19.11.2010)



(foto do Viajante no Tempo)

Um dos meus passatempos preferidos (hoje nem tanto, sou um homem ocupado, mas na juventude, quando eu tinha 700 anos de vida pela frente, dediquei-me muito a isto) é examinar pinturas ou fotografias antigas em busca de detalhes estranhos, curiosos ou enigmáticos. Se você passar bastante tempo com uma lupa examinando a Batalha de Avaí ou as Bodas de Caná vai acabar encontrando ali um professor de matemática que teve no Ginásio ou a sua vizinha do 402. É impressionante. Já vi palestras de ufólogos mostrando um disco voador pintado com riqueza de detalhes no céu de um quadro Renascentista. Já passei tardes examinando fotos de inocentes turistas que, reveladas, exibem fantasmas e aparições ao lado dos fotografados. E assim por diante. Perda de tempo? Pode ser, mas não mais do que assistir jogos de futebol.

Tropecei com dois exemplos interessantes, que dão o que pensar. Parece que existe agora, graças à Internet, uma geração de desocupados à procura de Viajantes no Tempo, pessoas que aparecem em fotografias ou filmes antigos e que, observadas com atenção, estão com roupas, objetos ou atitudes que não pertencem à época. Um deles é a imagem (já famosa) da mulher falando ao celular em 1928. No YouTube, o descobridor, George Clarke, explica que estava vendo os “extras” do DVD de O Circo de Chaplin, que incluem fotagem da estreia do filme. De repente, na calçada, passa uma mulher idosa, de preto, de chapéu, andando... e falando ao celular. (Vejam aqui: http://tinyurl.com/366fjy7). Ele repete a imagem, amplia, dá close, faz quadro-a-quadro... Claro, a imagem é antiga e pouco nítida. O que vemos é uma mulher segurando um objeto de forma retangular junto ao ouvido esquerdo, e falando, enquanto caminha sozinha pela rua. Muito comum hoje em dia. Mas, em 1928?

Outra imagem intrigante é a foto da inauguração de uma ponte nos EUA, por volta de 1941. Vemos um grupo de 20 ou 30 pessoas. Os homens, quase todos, vestem paletó e gravata, e usam chapéu. No meio deles, se sobressai um homem jovem, cabelo cortado curto, óculos escuros de formato moderno, casaco, camiseta escura com uma enorme letra impressa no peito, e segurando uma máquina fotográfica bem pequena. Cada um desses detalhes pode ser explicado com exemplos de 1941 – é o que faz o dono do saite que investiga a foto: (http://tinyurl.com/y249bem), mas todos juntos numa pessoa só, dão o que pensar. Basta ver a foto e perceber como aquele indivíduo destoa de todo o restante. Não parece ser truque, nem imagem colada sobre outra.

Viajantes no Tempo? Acho que não, mas ainda assim me pergunto: Por que não? Não é mais absurdo pensar em visitantes do futuro do que em visitantes interplanetários. Não sabemos como escapar ao fluxo do tempo, ainda, mas é este o único obstáculo. Se conseguirmos isso, acho muito mais provável que pessoas de 2040 queiram visitar 1940 do que homenzinhos verdes de outra galáxia queiram visitar a Terra.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

2404) O Fla-Flu literário (18.11.2010)



Um Fla-Flu literário (Ed. Bertrand Brasil/Difel, Rio), de Mauro Rosso, é um desses livros que eram necessários mas ninguém sabia, só ficou sabendo depois que ele apareceu. Seu conceito é simples. Nos primeiros anos do século 20, quando o futebol estava começando a se consagrar como esporte no Brasil (embora um esporte de elite, não o esporte popular de hoje), havia gente a favor e gente contra, principalmente na imprensa. Mauro Rosso escolheu o grande Coelho Neto como exemplo dos a-favor, e o grande Lima Barreto como exemplo dos contra. E reproduz, com fartos comentários e análises, textos dos dois escritores, numa polêmica divertida e esclarecedora.

Uma das ironias do passar do tempo é que Coelho Neto, na época considerado por alguns o maior escritor brasileiro, está hoje completamente esquecido, acho que só quem lembra dele somos eu e Mauro Rosso. E Lima Barreto, o bebum, o maluco, o marginal, é reeditado sem parar, adotado nos vestibulares e estudado nas academias. Para ver o que era a literatura brasileira de 1910 ou 1920, é muito educativo ver lado a lado os textos dos dois. Coelho Neto é gongórico e multíloquo (estranhou? pois era assim que ele escrevia), enquanto os textos de Lima Barreto parecem ter sido escritos semana passada. O que dá a todos nós, redatores profissionais, um recado sobre temas como o futuro da língua e as chances de permanência estilística.

Lima criou em 1919 uma “Liga Contra o Futebol”, o qual denomina “o esporte dos pontapés”. Entre outras coisas, porque o via (corretamente, na época) como um esporte das elites, dos estudantes ricos, dos filhinhos de papai, um meio social de onde negros e pobres eram excluídos. Tinha seguidores, como Carlos Sussekind de Mendonça, que publicou em 1921 o livro O sport está deseducando a mocidade brasileira. Coelho Neto amava o futebol por estas mesmas razões, ou melhor, por razões mais compreensíveis, mas indissociáveis destas. Seus filhos “Prego” e “Mano” foram jogadores famosos, e foi a morte deste último por problemas cardíacos que desgostou o pai e acabou por afastá-lo dos campos.

O livro transcreve dezenas de artigos de ambos, mostrando o ambiente social e político que cercou a prática amadorística do futebol nas primeiras décadas do século, no Rio de Janeiro. No final, há um curto mais informativo apêndice intitulado “Futebol e os intelectuais em São Paulo”, no qual ficamos sabendo, entre muitas outras coisas, que uma polêmica semelhante a esta foi travada entre Oswald de Andrade (antifutebol) e José Lins do Rego (pró).

Digno de nota também é o fato de que Lima Barreto a toda hora cita Coelho Neto, direta ou indiretamente. Neto era famoso, rico, paparicado; atacá-lo era receita certa para obter atenção. Mas Coelho Neto recebe isso com olímpica indiferença, e, ironicamente, cita Lima Barreto pelo nome apenas num dos últimos textos transcritos no livro, para elogiá-lo após a morte, chamando-o de “escritor pujante” e “boêmio de gênio”.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

2403) Paul McCartney (17.11.2010)



Dizem que quando a mãe morreu Paul perguntou chorando ao pai: “E agora? Como vamos fazer, sem o dinheiro dela?”. A mentalidade prática nunca abandonou esse rapaz de rostinho bonito e um talento musical como poucos da sua geração e do seu país. Adolescente, costumava dormir com a guitarra na cama; trocou-a pela atriz Jane Asher, que era uma gracinha, além de ser inteligente, culta, e de ter colocado o namorado em contato com a vanguarda londrina do teatro e das artes plásticas. Deu a Paul, a partir de 1963, a mesma abertura de horizontes que Yoko Ono deu a John a partir de 1967. Paul passou a se interessar por literatura, por música erudita e de vanguarda, um tipo de conhecimento que iria emergir nos discos criados em estúdio pelos Beatles poucos anos depois.

Ainda assim, ele não perdeu a irreverência e a molecagem que tornava os Beatles tão encantadores para os sisudos londrinos. Quando uma jornalista meio intelectual lhe disse que estava lendo The Naked Lunch de William Burroughs, Paul replicou que estava lendo “The Packed Lunch”, de “Greedy Blighter”. Era o típico humor liverpudliano, uma mistura de nonsense, menosprezo à pomposidade, trocadilho na ponta da língua.

Os oito anos dos Beatles foram a história de uma lenta transição de poder entre a liderança de Lennon numa primeira fase e a de MacCartney (mais musical, mais perfeccionista, mais ralador) depois que o grupo trocou os palcos pelo estúdio. Sgt. Pepper’s é, de acordo com todos os depoimentos, um trabalho em que ele tomou a dianteira e os outros aderiram. Ele não era infalível. A catástrofe de produção que foi Magical Mystery Tour surgiu de uma idéia sua (“Vamos encher um ônibus com anões, mulheres gordas e gente excêntrica, sair viajando e filmar o que acontece!”) que não contou com Brian Epstein, a essa altura falecido, na produção executiva.

Paul era, de longe, o Beatle musicalmente mais dotado. A influência de seu pai, Jim, lhe trouxe uma formação em ritmos dos anos 1920-30, que iriam emergir em canções como “When I’m sixty-four”, “Honey Pie”, “Lady Madonna”, “Your mother should know”, etc.. Era também fascinado pelas “canções que contam historinhas com personagens”, o que resultou em músicas como “Lovely Rita”, “Eleanor Rigby”, “She’s leaving home”, “Rocky Raccoon”, além de outras mais bobinhas, que Lennon detestava (“Ob-La-Di, Ob-La-Da”, “Maxwell’s Silver Hammer”).

Na fase pós-Beatles, foi o que teve carreira comercial mais sólida, enquanto Lennon produzia uma obra mais pessoal e mais inquietante. Paul foi o primeiro Beatle a fazer trilha sonora para um filme (Lua de Mel ao Meio-Dia, 1966), e o primeiro a compor uma peça erudita de grandes dimensões, o Liverpool Oratorio (1991), em oito movimentos, em parceria com Carl Davis. Ele e Ringo, os Beatles que sobrevivem, continuam parecidos com os garotos que eram em 1966, e que, com sorte, continuarão ser para sempre, amém.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

2402) Liberdade de imprensa (16.11.2010)



(Ilustração: J. I. I. Grandville)

Liberdade de imprensa é liberdade de empresa. É uma coisa importantíssima e necessária, uma coisa que afeta a vida de todos nós. Mas não é um valor absoluto. Nós, jornalistas, temos o hábito de dizer (por fé democrática e por instinto de sobrevivência) que a liberdade de imprensa é um valor absoluto, mas não é, valores absolutos não existem. A vida, o amor, a liberdade... nada disso é valor absoluto, tudo precisa estar em contexto. Nada existe fora de contexto. Se a vida, por exemplo, fosse um valor absoluto, um sujeito não seria absolvido por tirar uma vida em legítima defesa. Se a liberdade fosse um valor absoluto, ninguém poderia ser preso. Se o amor fosse um valor absoluto, não se poderia condenar um homem que por amor matasse uma mulher. E assim por diante.

Liberdade de imprensa é a liberdade que têm os donos de um jornal (ou de uma empresa de telecomunicações, no sentido mais amplo) de defender os interesses que eles julgam corretos. Se julgam correta a democratização do país, eles usam seu jornal para lutar por isso. Se julgam correta a abolição da pena de morte, o protecionismo alfandegário ou as cotas raciais nas escolas, têm o direito de instruir seus empregados (os jornalistas) para defenderem essas ideias. Da mesma forma (visto que vivemos numa democracia) um dono de jornal ou de TV que julga correta a busca da maximização dos próprios lucros, dentro da lei, tem todo o direito de lutar por isso. Se ele é a favor da pena de morte, se é contra o protecionismo ou contra as cotas, também pode mobilizar seus redatores para, sempre agindo dentro da lei – que é, ou deve ser, o limite de ação para todos, não é mesmo? - defender essas ideias.

A liberdade de imprensa ideal seria aquela em que um redator pudesse publicar uma enorme matéria de capa contradizendo o interesse do dono do jornal. Pense numa liberdade grande! Mas isso deve ocorrer muito raramente, e em pequena escala. Colunistas como eu, por exemplo, geralmente contam com a benevolência das empresas, mesmo quando discordam delas. Uma coluna é uma matéria assinada, que exprime a visão do autor, não a da empresa. E a empresa pode aproveitar isso para dizer: “Olha aí como nós somos democráticos. O cara é nosso empregado, defende um interesse contrário ao nosso, mas a gente não só não o expulsa, como ainda publica o texto dele, e lhe paga por isso.”

Informação, interpretação e opinião são as três moedas da imprensa, cujo valor oscila mas nunca se deteriora. Em qualquer época e em qualquer circunstância haverá multidões precisando das três, sempre que as acreditarem legítimas. E o mais importante é que em qualquer país coexistem moedas contraditórias, porque cada jornal enxerga e defenda uma verdade diferente. A primeira liberdade de imprensa é permitir que as imprensas sejam muitas; depois, que os interesses sejam claros, o debate seja aberto. E que os valores sejam nobres, se não for pedir demais.

domingo, 14 de novembro de 2010

2401) A receita da felicidade (14.11.2010)




O inesquecível Odair José gravou, em tempos passados, uma canção que tinha este refrão docemente existencialista: “Felicidade / não existe; / o que existe na vida / são momentos felizes”.

Antoine Roquentin, o melancólico protagonista de A Náusea, não teria verbalizado melhor a sofrida epifania que o mantém vivo ao final do romance, escutando uma negra americana cantar: “Some of these days / you’ll miss me, honey”.

O que é a felicidade? Uma alegria sem sobressaltos, sem alterações, sem modulações? Uma euforia momentânea cujo disco engancha e ficamos a senti-la forever? Um estado sorridente, álacre, de-bem-com-a-vida, esfuziante de adjetivos, como a dos personagens de propagandas de refrigerantes e de creme dental? Mistério.

Num texto no New York Times (http://tinyurl.com/2eqhzqa), David Sosa propõe, citando um livro de Robert Nozick, a seguinte experiência (não, não é inspirada em Matrix; o livro precede o filme, pois é de 1974).

 Digamos que é construída uma máquina onde você pode se plugar e ter (virtualmente) qualquer sensação ou situação que desejar. Estímulos neuropsicológicos podem lhe dar uma impressão 100% real de estar escrevendo um livro, fazendo sexo, conversando com amigos, fazendo coisas interessantes. Só que você estaria de fato, o tempo inteiro, flutuando num tanque, com eletrodos afixados ao seu cérebro. A pergunta é: Você acha que isso é a felicidade? Você gostaria de viver assim?

Suponho (agora sou eu quem fala) que metade das pessoas diria: Sim, por que não? Melhor viver assim, numa Felicidade Virtual, do que viver pegando trânsito, pagando contas, ralando no dia-a-dia. Beleza; entendo perfeitamente que prefiram essa tranquilidade, essa utopia cibernética, esse paraíso artificial. Mas outra metade diria: “Não, prefiro viver como vivo, e me arriscar a não ser feliz nunca, ou ser apenas de vez em quando, como Odair José”.

Estas pessoas talvez se identifiquem com o que David Sosa examina em seu artigo. Ele diz, em suma, que a felicidade não é individual, é coletiva, ou pelo menos é socialmente interligada. Ser feliz não é apenas sentir-se bem consigo mesmo, é sentir-se bem de uma maneira que dependa das consciências alheias. Não basta ser feliz, é preciso que nossa felicidade seja testemunhada e de certa forma compartilhada pelos outros.

Diz ele:

“Quando nos recusamos a nos plugar nessa máquina, que nos proporciona tais experiências artificiais, exprimimos nossa crença profunda de que o que obtemos de uma máquina não é a coisa mais valiosa que podemos obter; não é o que queremos de um modo mais profundo, não importa o que possamos pensar quando estamos plugados nela. A vida nessa máquina não é a obtenção do que buscamos quando falamos numa vida feliz. Existe uma diferença crucial entre ter um amigo e ter a experiência artificial de ter um amigo. Existe uma importância entre escrever um romance e ter a experiência artificial de escrever um romance”.




sábado, 13 de novembro de 2010

2400) A palavra forma (13.11.2010)



(foto: Irving Penn)

Alguém duvida que seja esta uma das palavras mais importantes do idioma? É um dos conceitos abstratos mais pervasivos e onipresentes, porque tudo tem forma, tudo que existe existe através de algum tipo de manifestação física ou mental, e essa manifestação tem forma sob algum aspecto. Deus, por exemplo, este amplíssimo conceito que engole todos os demais. A forma de Deus é a totalidade, daí a “boutade” do surrealista Naville, que o chamou “O Grande Imóvel” (pois se Deus é tudo não pode mover-se para outro espaço, pois isto subentenderia que é um espaço além dele próprio). A forma de Deus coincide com a forma do Todo que somos capazes de imaginar, seja ele espiritual, seja ele físico (o Universo, ou o cacho-de-bolhas de todos os Universos físicos possíveis).

Não devemos confundir forma com a palavra fôrma, mesmo que o acento diferencial tenha caído. Uma fôrma é um molde que produz uma forma mas é criado por ela – só se constrói uma fôrma para perpetuar uma forma que, com o uso, se consagrou, e precisa ser mantida e multiplicada. A fôrma é consequência da forma. O mesmo pode se dizer da fórmula, que não passa de uma “fôrma” abstrata, um conjunto de sinais matemáticos ou químicos, que em princípio tem como função produzir o mesmo resultado quando aplicada.

O interessante é que o mesmo conceito se usa em latim como “form-” e em grego como “morph-”, numa inversão sonora cuja nomenclatura e razão de ser deixo aos gramáticos. Mas a consequência desse fato é que a ciência das formas é a morfologia, e a mudança de forma é uma metamorfose.

A palavra ocorre também no uso dos termos formal/informal quando nos referimos ao modo de se comportar ou de se vestir. Quando um jantar ou um traje são formais, isto significa uma expectativa de que correspondam a uma determinada forma, ou maneira de ser. Quando não, tornam-se aquilo que na linguagem informal chamamos de “alavontê”, não há forma prevista, cada um faz como lhe der na telha. Outra derivação muito popular é “formosa”: que tem belas formas.

Uma expressão interessante e muito em uso é “na forma da lei”, ou seja, “exatamente como a lei determina”. Todos sabemos que a lei tem forma (também chamada de “a letra da lei”) e tem espírito, tanto é assim que muitas vezes dizemos que determinado juiz agiu mais de acordo com o espírito da lei do que com a sua forma. Ou seja, o juiz foi capaz de entender em profundidade a intenção de quem criou aquela lei, e de perceber que a formulação por escrito dessa intenção apresentava uma falha, ou uma ambiguidade, ou uma incompletude; e que para ser fiel à ideia seria preciso ir além do texto escrito, mesmo que aparentemente contradizendo-o. Num caso assim, talvez fosse linguisticamente correto dizer que o juiz agiu de acordo com a “forma” da lei (sua intenção original, o pensamento que lhe deu origem) e não com sua “fôrma” (o instrumento concebido para aplicar aquela intenção).

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

2399) Novas formas de arte (12.11.2010)




(Buster Keaton, em Film)

Muitos admiradores das artes plásticas se escandalizaram quando, no fim do século 19, alguns artistas pararam de pintar, empunharam tesouras e potes de cola, e passaram a recortar e pregar pedaços de imagens em cima de uma tela. 

A colagem se impôs como método artístico graças, em grande parte, a gente como Picasso, Braque, Max Ernst. 

De certa forma, isso incutiu na cabeça do público uma coisa: para você criar uma obra de arte, você não precisa criar do zero tudo de que ela é feita. Os pedaços podem ser pedaços de algo que já existia. Se eles forem bem escolhidos, bem recortados e bem combinados, o resultado pode ser uma obra nova, original.

O método migrou para outras linguagens. No cinema, uma experiência curiosa é juntar um áudio e um conjunto de imagens que, em princípio, não têm a menor relação. Alguns cineastas começaram a pegar músicas e recriá-las na tela, com certa liberdade. 

Quando Walt Disney fez Fantasia, muitos críticos ficaram horrorizados com seus dinossauros ilustrando a Sagração da Primavera de Stravinsky ou com Mickey Mouse ilustrando o Aprendiz de Feiticeiro de Paul Dukas. 

Depois, vieram cineastas como Ken Russell, que fez verdadeiras viagens psicodélicas para ilustrar a música de Tchaikovsky (Delírio de Amor, 1970), The Who (Tommy, 1975), Franz Lizst (Lizstomania, 1975) e outros. 

A influência de Russell sobre a estética dos videoclips na década seguinte não pode ser subestimada. Ele provou, com uma insistência algo incômoda, que com uma boa edição qualquer imagem parece ter sido feita para aquela música, por mais surrealista ou aleatória que seja.

Mas isso ainda era uma imagem feita a partir da música, sincronizada à música. Com a facilidade da edição e reprodução digital, a coisa está ficando mais divertida. O pessoal está juntando imagem e som que já existem independentemente, e não feitos um em função do outro. 

Vi um filminho que consiste na junção de duas obras disparatadas. A primeira é um curta escrito por Samuel Beckett e dirigido por Alan Schneider, em preto e branco, intitulado Film. É um filme mudo em que Buster Keaton caminha por lugares estranhos e participa de cenas ainda mais estranhas; o clima lembra um pouco o Eraserhead de David Lynch. 

Pois bem, no YouTube foi postada uma versão do filme (que é mudo) acompanhada pela canção do Massive Attack, “Man next door”. São duas obras totalmente independentes; imagino que a música (que é de 1998) não tenha sido inspirada em Beckett. 

A união desse filme mudo e dessa canção “trip hop”, no entanto, resulta numa obra híbrida e perturbadora. (Ver aqui: http://tinyurl.com/24ttla6). Toda imagem pode ser qualitativamente modificada pela presença de diferentes trilhas sonoras, gerando diferentes resultados. O YouTube e outros saites fervilham de experiências desse tipo. A junção de clássicos do som e clássicos da imagem é uma área em que as possibilidades, como sempre, são infinitas.








quinta-feira, 11 de novembro de 2010

2398) Drummond: Rio e Bahia (11.11.2010)



A “Lanterna Mágica” que Carlos Drummond inseriu no seu primeiro livro, Alguma Poesia, que está completando 80 anos, mostra pequenos flashes de cidades por onde o poeta passou, a maioria delas em Minas. Os dois últimos fragmentos, no entanto, são sobre o Rio e a Bahia. No fragmento VII, “Rio de Janeiro”, vemos algo das primeiras impressões do poeta sobre a então Capital Federal. Desde 1922 Drummond já publicava em periódicos cariocas, através de Álvaro Moreyra, mas não tenho ideia de quando viajou ao Rio pela primeira vez. (Ele só se transferiria para lá em definitivo em 1934, para ser chefe de gabinete de Gustavo Capanema, nomeado Ministro da Educação e Saúde Pública).

No poema, existe algo do “Noturno” que Mário de Andrade dedicou a BH, e que começava com “Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos...” Drummond abre com “Fios nervos riscos faíscas”, também uma aliteração de sons reproduzindo uma multiplicação de impressões sensoriais. O linguajar com que ele entrou em contato em terras cariocas parece estar sendo registrado em “Passou a boa! Peço a palavra!”. Drummond, ao seu modo ensimesmado e reticente, registra em voz baixa as impressões sobre a capital: “Fútil nas sorveterias. / Pedante nas livrarias / Nas praias nu nu nu nu nu. / Tu tu tu tu tu no meu coração.” Este último verso é o elástico sentimental puxando o poeta de volta, não se sabe se o “tu” se refere à esposa (Drummond casou com Dolores em 1925) ou à terra natal.

“Mas tantos assassinatos, meu Deus. / E tantos adultérios também. / E tantos, tantíssimos contos-do-vigário... / (Este povo quer me passar a perna)”. Não devemos esquecer que Drummond é contemporâneo da lenda urbana sobre o mineiro que, chegando ao Rio, ficou tão deslumbrado com os bondes que acabou comprando um deles a um sujeito que estava encostado num poste, palitando os dentes. A estranheza dos recém-chegados ao Rio quanto aos assassinatos, adultérios e contos-do-vigário (para não falar na onipresente nudez) não é menor hoje do que oitenta anos atrás. A rigor, mesmo tornando-se intensamente integrado à vida carioca no meio século que se seguiu, Drummond nunca deixou de ser o rapaz que escreveu estes versos.

O último fragmento da “Lanterna Mágica”, o de número VIII, intitula-se “Bahia”, e diz, singelamente, modernistamente: “É preciso fazer um poema sobre a Bahia... / Mas eu nunca fui lá.” Drummond era meio eremita, e convictamente sedentário. Viajou pouquíssimo. Sou tentado a ver nessa Bahia mitológica (pensem no que seria a imagem nacional da Bahia em 1930) uma espécie de Pasárgada de Manuel Bandeira, ou o país de “luxo, calma e volúpia” de Baudelaire. Uma Bahia tropical, de praias cheias de morenas sensuais? Também poderia ser o oposto: uma Bahia colonial e barroca, parecida com Minas, uma Bahia de catedrais, santos e claustros, de ruas antigas, estreitas e tortas, uma nova Minas austera e litúrgica, em que o poeta se sentisse em casa. Nunca saberemos.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

2397) “A Volta dos Mortos Vivos” (10.11.2010)



Assistindo tarde da noite, na TV a cabo, A Volta dos Mortos Vivos de Dan O’Bannon (1985), pensei na fascinação que os filmes de zumbis exercem sobre o público jovem. Rapazes e moças adolescentes gostam de quaisquer filmes de terror; veja-se o sucesso serial de Freddy Kruger, Jason, “Serra Elétrica” “Jogos Mortais”, etc. Mas os pútridos zumbis têm um encanto mórbido especial. Lembro ainda hoje minha fascinação, aos dez anos, diante dos zumbis de filmes como Invasores Invisíveis e outros, que comparados aos de hoje são de uma inocência a toda prova, mas na época despertavam calafrios.

Os zumbis são diferentes de Drácula ou de Frankenstein porque são um monstro quantitativo, não personalizado. Não se sabe o que é mais terrível, se a dificuldade em matar um único monstro ou a facilidade em matar bilhões de monstros que não param de surgir em fila indiana, cópias equivalentes ao que acaba de ser exterminado. O zumbi é o morto típico da era da cópia digital, da infinita reprodutibilidade técnica tanto da obra de arte quanto do pesadelo. No século 20 tínhamos o monstro único, indivisível, o monstro tão ímpar quanto o ser humano, quanto o Indivíduo criado pelo Iluminismo. Hoje, temos o monstro inesgotável, inextinguível, cópia da cópia da cópia da cópia, e que não para de brotar.

Para o cinema norte-americano, deve haver ali um pouco do horror de enfrentar povos anônimos, depauperados, sujos, lumpen-proletários: os vietcongs, os talibãs, os habitantes de Canudos, os pobres e esfarrapados em geral. Os zumbis são sub-humanos que, no seu existir incontrolável ameaçam submergir o “humano”. E há também, superposta a esta, uma ameaça mais terrível ainda: o fato de que as pessoas normais (nós, nossos amigos, nossa família) estão sujeitas a se transformar de uma hora para outra num desses monstros. Seu filho pode virar punk. Sua namorada pode virar terrorista. Sua irmã pode virar comunista. Seu marido pode virar um drogado.

Os mortos-vivos são também um pesadelo em torno do tema da recusa à morte, do apego irracional à vida, que deixa de ser vista como valor absoluto. O zumbi é o morto que se recusa a morrer, ou que não consegue morrer. Uma morta-viva no filme de O’Bannon responde por que motivo devoram os humanos: “Porque isso reduz a dor... a dor de estar morto”. É uma explicação de roteirista de filme B, que coça a cabeça por 10 minutos e resolve com uma frase a questão da “motivação dramatúrgica”. Mas é uma angústia metafísica semelhante à do Mr. Valdemar do conto de Edgar Allan Poe, que, hipnotizado, fica com a alma presa ao corpo morto, mantendo-o em funcionamento. No momento em que o transe hipnótico é cortado, a alma se liberta e o corpo se desfaz numa massa liquefeita.

E por último vem o simbolismo do ato de comer cérebros. Um filme é uma projeção luminosa de pessoas sem vida que andam pra lá e para cá absorvendo os cérebros da platéia para continuar existindo.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

2396) O racismo e Monteiro Lobato (9.11.2010)



Comentei aqui nesta coluna a recente polêmica envolvendo o livro de Monteiro Lobato, Caçadas de Pedrinho. Leitores se queixaram do modo desrespeitoso como a personagem negra, Tia Nastácia, é tratada em certos momentos. Quem leu Lobato sabe que a toda hora a boneca Emília chama a cozinheira do Sítio do Picapau Amarelo de “negra beiçuda”, “negra burra”, etc. É a única que a trata assim: a avó Dona Benta, os netos Pedrinho e Narizinho, todos tratam Tia Nastácia de modo mais respeitoso. Em todo caso, é compreensível que o MEC decida “exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura.”

Pipocaram comentários na Internet dizendo que o livro tinha sido censurado e proibido pelo Governo. Não foi o caso. (Quem quiser mais detalhes pode consultar este blog, que transcreve longos textos do parecer do MEC: http://tinyurl.com/3a3gg9c). Mas esse episódio mostra um grave problema existencial de entidades como o Governo, a Igreja, a Academia, as Escolas, etc. São entidades abstratas organizadas em função de um tipo ideal de comportamento.

Um escritor pode ter personagens racistas, machistas, drogados, criminosos, porque um escritor trabalha com o mundo real e não tem remédio senão descrevê-lo como ele é. As escolas e os governos, contudo, trabalham há séculos com um conceito de mundo real que na verdade é um mundo ideal, o “mundo como deveria ser”, o mundo que tentamos ensinar aos nossos filhos, cheio de valores éticos, regras de comportamento, etc. e tal. São entidades normativas, que pregam uma maneira de ser. A arte (ou pelo menos a maior parte dela) é contraditória, não prega maneira de ser; alardeia suas próprias dúvidas, tentações, descreve o ser humano com todos os seus defeitos.

Nos EUA, todo mês aparece uma biblioteca pública tirando de catálogo os livros de Harry Potter porque a família de uma criança, evangélica, denuncia que a biblioteca está pregando o culto à feitiçaria. E quando algum funcionário tenta conciliar, eles perguntam: “Vocês estão com quem – com Jesus Cristo, ou com Satã?”. Agora imagine se um leitor assim encontrasse na biblioteca livros de Henry Miller, Nelson Rodrigues, Chuck Palahniuk ou Dalton Trevisan!

Voltando a Lobato: seus livros podem trazer para uma criança uma tal quantidade e variedade de coisas positivas que nada perderão com um prefácio ou posfácio que coloque seus momentos racistas num contexto. Inclusive para mostrar que até mesmo pessoas progressistas, como ele foi em vários sentidos, também podem ser preconceituosas. Como diria o Conselheiro Acácio, “ninguém está isento de seus próprios defeitos”. Admiramos tanto os escritores que criamos para eles uma imagem meio “chapa branca”, de um Fulano sem defeitos. É bom poder enxergar a pessoa por trás dos livros.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

2395) O Táxi de Caronte (7.11.2010)




Chegada a hora, peguei o elevador, desci, dei boa-noite ao porteiro que cochilava. O enorme carro negro estava em frente ao prédio, com o pisca-alerta ligado. As únicas pessoas visíveis eram uns meninos sem-teto enrodilhados sob a marquise da farmácia. 

Caronte desceu, entreguei-lhe a valise. Os quiosques da praia estavam fechados e silenciosos. Se não fosse pelo marulho distante dir-se-ia que o próprio mar estava imóvel; mas soprava uma brisa vigorosa, que arrastava um copo de plástico pelo asfalto, com um ruído seco, fragmentado. 

Caronte bateu com força a tampa da mala. Abri a porta traseira, acomodei-me, e partimos. “Onde quer passar primeiro?”, perguntou. 

Eu não tinha pensado ainda, mas de improviso falei que queria ver a fazenda onde passei a infância. 

O carro avançou ao longo da praia. Em questão de segundos o céu clareou, azulou, e um sol atenuado mas veraz iluminou a campina, a caatinga no lugar do oceano, o casarão de cumeeira baixa. Circulamos em torno dele. Era um meio-de-tarde, e lá estavam todos, nos seus afazeres de sempre. Abaixei o vidro, escutei-lhes a voz e o cheiro do curral me envolveu. Nenhum deles viu o carro, com exceção do menino branco e pensativo, cujos olhos se ergueram do livro, e cruzaram com os meus. 

Seguimos, e pedi para rever um carnaval. A trilha poeirenta da caatinga começou a elevar-se, o carro passou primeira, os pneus deslizaram nas pedras do calçamento, os casarões do Pelourinho começaram a passar de ambos os lados, e já era noite novamente. 

Cruzamos ladeiras estreitas, atravessamos o alarido de um bloco sem tocar em ninguém; avistei a calçada na esquina da praça, o casal abraçado. Curiosamente, não lhe dei muita atenção; foi a música (que eu não ouvia desde então) que me produziu o efeito esperado. Achei melhor afastar-me dali, e pedi Londres. 

Cruzamos a ponte, percorremos o Tâmisa, diminuímos o ritmo em Baker Street, depois em Abbey Road. Perdemo-nos no labirinto até chegar ao pub. Pelo vidro pude ver a turma de jovens cabeludos; bebiam erguendo os canecos. Não se ouvia nenhum som, mas pelo movimento dos corpos, pelo erguer dos braços, lembrei a canção que cantáramos a plenos pulmões, pela eternidade e mais um dia. 

A escala seguinte foi Marrocos, novamente naquela tarde poeirenta, de sol escaldante, em que dois hóspedes da pousada se compadeceram de mim e me levaram para um hospital próximo, desidratado pela disenteria, quase em estado de choque. 

Parei diante do prédio de tijolos, enfeitado de azulejos, por entre o tráfego de camelos e bicicletas. A certa altura vi sair dali, fatigado mas impassível, o médico de longos bigodes tristes que me deu alta sorrindo, num francês claudicante: “Vous ne mourirais jamais non plus, monsieur!...” Voltamos. 

Desci diante do prédio, onde o copo de plástico ainda quicava no asfalto, levado pela brisa. Apertei a mão de Caronte. “É uma longa viagem”, disse ele, “mas estamos perto”.


(Este conto foi republicado na coletânea Histórias Para Lembrar Dormindo, Rio, Casa da Palavra, 2013)




sábado, 6 de novembro de 2010

2394) “Waking Life” (6.11.2010)



Este filme de Richard Linklater, de 2001, passou meio despercebido nos cinemas, mas vem adquirindo um perfil “cult” de lá para cá. Caso o leitor não esteja ligando o nome à imagem, trata-se daquele desenho animado que mostra o tempo todo pessoas envolvidas em discussões filosóficas sobre a existência, o ser, o nada, os sonhos e a consciência humana. Vários amigos meus o acham chatíssimo. Eu não acho. Já tinha visto várias partes dele na TV a cabo, e esta semana vi-o inteiro por duas vezes. Cada vez gosto mais. Por que? Bem, em primeiro lugar porque uma parte considerável da minha vida foi e é dedicada a pensar e discutir a respeito da existência, do ser, do nada, etc. e tal. Não o faço por intelectualismo ou esnobismo, faço porque me parecem questões mais interessantes do que saber se vai chover amanhã ou quem vai ganhar o Oscar.

Linklater também não pode ser rotulado como o típico intelectual chato. Ele dirigiu o divertido Escola de Rock com Jack Black e o romântico Antes do Amanhecer com Ethan Hawke e Julie Delpy. Sua filmografia é variada e interessante, e Waking Life tem uma porção de sacadas que deram certo, fazendo dele um filme que merece atenção. A primeira sacada foi transformá-lo num filme de animação. Se ele tivesse a mesmíssima história que tem, com as mesmas cenas e os mesmos diálogos, mas fosse um filme comum, encenado com atores, aí sim, talvez virasse um filme chato. O realismo fotográfico de atores e ambientes daria uma certa aridez às discussões, que ficariam parecidas demais com papos-de-mesa-de-bar. Linklater filmou tudo com atores. Depois do material editado, contratou equipes de animadores e entregou a cada uma delas uma sequência do filme, para que eles cobrissem as imagens com desenhos. Isso deu ao filme uma aura onírica, adequada ao enredo (um rapaz perdido num sonho, do qual desperta no interior de outro sonho, e assim sucessivamente). A colagem de estilos e de traços, além de evitar a monotonia, nos dá exatamente a sensação de estar saltando de um sonho para dentro de outro.

Linklater é um fã de Philip K. Dick (depois ele viria a utilizar esta mesma técnica de animação superposta para filmar O Homem Duplo, de Dick), e é ele próprio quem aparece numa das últimas sequências, jogando pinball e contando um episódio (real) da vida do escritor. A dificuldade em distinguir entre a realidade e o sonho é um tema constante na obra de Dick. O diretor o transforma num tema entre outros, já que as discussões são bem variadas. Há também umas sequências musicais bem interessantes. Não sei por que, tenho uma sensação inexplicavelmente onírica quando chego sozinho num lugar e vejo pessoas desconhecidas dançando, sem que ninguém perceba minha presença, e sem que eu saiba o que estou fazendo ali. Nessas horas, penso que estou sonhando, e mais, penso que estou retornando a um sonho conhecido, que eu já havia sonhado muitos anos atrás. Por que? Não sei. Por isso vejo esses filmes.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

2393) Monteiro Lobato e a negra velha (5.11.2010)



O livro de Monteiro Lobato Caçadas de Pedrinho está tendo sua utilização nas escolas questionada, sob acusação de racismo. (Não, não foi proibido: o Conselho Nacional de Educação apenas recomendou que as edições do livro tragam uma ressalva explicando o contexto cultural em que o livro surgiu.) A personagem de Tia Nastácia, a cozinheira do Sítio do Picapau Amarelo, é frequentemente xingada pela boneca Emília de “negra burra, negra beiçuda” e outras coisas nesse tom. O próprio narrador onisciente do livro, volta e meia, diverte-se ridicularizando esta ou aquela ação da negra, como quando diz que ao ver uma onça ela subiu pelo mastro da bandeira feito “uma macaca de carvão”. Bastou isso para que um leitor indignado protestasse, dando início à polêmica pública.

Existe um livro tristemente famoso que se intitula, se bem me lembro, Comunismo para Crianças, cujo autor defende a tese de que a obra infantil de Lobato fazia parte de uma campanha para disseminar o Comunismo dentro da nossa juventude. Espero que não apareça um dia “Racismo para Crianças” dizendo que ele é um perseguidor da raça negra. Lobato tratava os negros de acordo com o diapasão de sua época, assim como Mark Twain, cujo Huckleberry Finn sofre esse mesmo tipo de acusação. Daí a achar que esses livros são ativamente racistas é uma coisa completamente diferente.

Tia Nastácia, aliás, é descrita na maior parte do tempo como uma personagem cheia de aspectos positivos. É carinhosa, dedicada às crianças, e amada por elas. No Picapau Amarelo ela é raptada pelo Minotauro e levada para o labirinto de Creta; em O Minotauro Dona Benta e seus netos vão à Grécia para salvá-la, e ali descobrem que ela amansou o “monstro de guampas” dando-lhe bolinhos para comer. Em A Reforma da Natureza, após o fim da II Guerra Mundial os líderes e reis da Europa querem reconstruir o mundo de acordo com bases civilizadas e humanistas. Quem é que eles chamam para dar-lhes conselhos? Dona Benta e Tia Nastácia, que fazem as malas e rumam para o Velho Continente para ensinar à Europa a arte de bem viver.

Tia Nastácia e Dona Benta exprimem o lado popular e o lado erudito de uma mentalidade matriarcal, compassiva, humanista, que Monteiro Lobato via como alternativa para um mundo de líderes belicosos e cheios de ambição. O sucesso do “Picapau Amarelo” deve muito a ambas. Um livro como Caçadas de Pedrinho inclui uma dúzia de epítetos zombeteiros contra os negros, mas se fosse proibido isso privaria todos os leitores – inclusive os leitores negros – de conhecer uma bela personagem negra de nossa literatura. Eu li esse livro com 8 anos e nunca achei Tia Nastácia uma personagem inferior ou ridícula. Talvez seja porque cresci numa casa onde havia negras velhas ajudando a cuidar de mim, e aprendi desde cedo a considerá-las gente, apenas gente, iguais a qualquer outra pessoa.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

2392) In the Land of the Dreams (4.11.2010)



(foto: Timm Suess)

Na estação do metrô, vou andando pelo corredor, seguindo o fluxo da multidão apressada, Numa parede estão encostados três homens idênticos, com óculos escuros idênticos, segurando a coleira de três cachorros idênticos. Um deles fuma um cigarro, o outro fala ao celular, o outro acena para alguém. Paro na frente deste último, que agora está segurando um jornal aberto; mas ele não olha para o jornal, e sim para o teto. Fico com medo de olhar o teto e me apresso a sair do metrô. Lá fora não vejo estação nenhuma. A escada me faz emergir num terreno baldio, e as pessoas que estavam saindo do metrô desapareceram. O terreno tem ruínas de muros, barris, tonéis enferrujados. De um lado e do outro, velhos conjuntos habitacionais de paredes manchadas pela chuva. Flores com meio metro de diâmetro, redondas, amarelas, cujas hastes brotam direto do chão.

Caminho pelo terreno, olhando em volta. A uns cem metros de distância ergue-se uma torre, tipo torre de observação, feita de tijolos quadrados. O sol é muito quente, não há uma só pessoa à vista, mas ouço ao longe ruído de trânsito, barulho de pássaros. Vou andando por entre as flores e vejo uma corda saindo de um buraco estreito no chão. Sinto uma vontade de puxá-la para fora. Pego-a com firmeza e começo a puxar; a princípio ela sai com facilidade, mas depois começo a encontrar resistência, como se ela estivesse presa a algo lá no fundo. Puxo com mais força e sinto que aquilo vai cedendo aos pouco, embora o esforço seja cada vez maior. Já puxei para fora uns dois ou três metros de corda, o suor escorre pelo meu rosto. Vou vencendo aquela resistência e de súbito ergo os olhos e vejo a tal torre, à distância, e percebo que ela está se encarquilhando, se amassando como se fosse de papel, encolhendo; e cada puxão que eu dou na corda a faz amassar-se ainda mais, e percebo que a outra ponta da corda está de alguma maneira presa à torre, e sou eu que a estou amassando e puxando para baixo. Nesse instante eu solto a corda, e a torre volta rapidamente a se endireitar, os metros de corda que puxei somem de novo no interior do buraco, e a torre está novamente intacta, e parecendo feita de tijolo.

Logo estou num lugar diferente, uma loja de animais empalhados que, não obstante, se mexem. Estou tentando comprar um pássaro preto que parece um falcão, mas esqueci ou perdi minha carteira. O dono diz que não me vende mais nada fiado, chega, já basta. Saio chateado. Entro no café da esquina. Os vizinhos de sempre, bebericando um capuccino, escrevendo concentradamente em seus laptops, conversando em voz baixa. Sento na única mesa vazia, peço um suco de laranja. Na mesa ao lado uma moça alta, jeito de modelo, cabelos sedosos e cor de mel. Olhos bem azuis, vestido decotado. Tem um livro na mão. Olho: é uma edição antiga de Heidegger, com a foto dele na capa. A moça percebe meu olhar, sorri para mim. Não tem um só dente na boca.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

2391) Verso livre obrigatório (3.11.2010)




(Glauco Mattoso)

O poeta Glauco Mattoso publicou há pouco na revista eletrônica Cronópios (http://tinyurl.com/27ll855) um artigo cujo mero título já sugere volumes de texto: “Verso livre obrigatório versus forma fixa voluntária”.

Nesta cadeia verbal encravam-se inúmeras polêmicas travadas entre os poetas contemporâneos nas últimas décadas.

Polêmicas desnecessárias, porque baseadas em equívocos, falácias, mal-entendidos; mas importantes, pois revelam a espantosa variedade de usos que a poesia tem para esses indivíduos.

Essa poesia aparentemente tão imprestável, chamada por Paulo Leminski, com ironia e carinho, de “inutensílio”.

Tudo começou quando o Parnasianismo era um governo comodamente refestelado nas poltronas do poder literário. Entre os parnasianos, vigorava a rima, a métrica, a estrofe regular, o poema como um conjunto de formas fixas que era preciso preencher com palavras, tendo cuidado para que não houvesse sequer uma sílaba tônica fora do lugar, sob pena de fazer desmoronar a estrutura inteira.

O Modernismo irrompeu janela adentro e jogou na lareira o regimento interno. Agora podia tudo. Verso sem rima, verso de qualquer tamanho, linguagem errada das ruas, regionalismos, barbarismos, poema de qualquer jeito, poema falando de qualquer coisa.

Isto acendeu uma luz de esperança nos olhos de inúmeros sujeitos doidos para ser poetas, mas sem muito traquejo para manejar as formas. Era um pouco como o que ocorreu depois no punk rock.

Os rapazes não conheciam as notas, nem as cordas, nem os acordes; mas morriam de vontade de subir no palco, dar aqueles pulos, aqueles gritos. A estética punk bradou: Pode tudo agora! E abriu-se uma cadabra que até hoje não voltou a se fechar.

Glauco Mattoso questiona o fato de muitos poetas de hoje rejeitarem as regras de versificação, e não apenas as rejeitarem para si próprios (um direito de qualquer um), mas afirmarem categoricamente que essas regras devem ser extintas e que não se aplicam mais à produção da poesia. Diz Glauco, em sua peculiar ortografia:

"As ultimas gerações litterarias se accommodaram na desculpa de que, tendo as modernas tendencias ‘abolido’ as formas fixas, todos os poetas estariam automaticamente desobrigados de dominar e até de conhecer regras de versificação. Sempre admirei auctores iconoclastas que ousaram transgredir valores vigentes, como Mario e Oswald no modernismo ou Augusto e Haroldo no concretismo, para não fallar na constante inquietação creativa de Bandeira e Drummond. Mas, quando reaffirmo que lhes applaudo a coragem e a irreverencia, é justamente por saber a que poncto conhecem, elles todos, cada norma que se propuzeram a contestar. Quando quizeram, tanto Mario como Augusto compuzeram impeccaveis sonetos, e só não os fizeram em quantidade porque estavam interessados em outras alternativas estheticas.” 

Não se deve, diz ele, romper com a monotonia da regra para inaugurar a monotonia da quebra.








terça-feira, 2 de novembro de 2010

2390) O Ulisses argentino (2.11.2010)



Na sua enumeração dos equivalentes ao Ulisses de Joyce em diferentes países, Joshua Cohen elegeu como representante argentino Adán Buenosayres de Leopoldo Marechal (1948). Ao que eu saiba, este livro nunca foi traduzido no Brasil. 

Cohen justifica assim sua escolha: 

“O romance de Marechal, cujo título de grafia peculiar só pode ser mesmo traduzido como ‘Adão Buenosaires’, acompanha uma irmandade de aventureiros baseada nos amigos do autor, entre eles Jorge Luís Borges. Em sete seções, focalizadas sobre a formação estética de Adán, um pretendente a poeta, a homenagem cede lugar a uma reescritura de Dante, enquanto o espanhol falado na Argentina serve de brinquedo, é pervertido, é reinventado”. 

Ora, o meio literário argentino é tão cheio de fofocas e de intrigas quanto qualquer outro. No diário que manteve durante décadas de convivência com Borges, Adolfo Bioy Casares conta que ele e o autor do “Aleph” se referem de maneira depreciativa a Marechal, chamado por Bioy, citando uma expressão de Samuel Johnson, de “a barren rascal” (“um canalha estéril”). 

O menosprezo de ambos por Marechal deve-se sem dúvida ao fato de este último ter sido peronista, algo que Borges não perdoava a ninguém. Sobre o livro, Borges lembra: 

“O nome de Adán Buenosayres, quando estava ainda no manuscrito, ou quem sabe quando era apenas o projeto de outro romance, era ‘Fulano (que tem o mesmo número de sílabas que Leopoldo) Varangot’. Ele o abandonou porque todos faziam gozação com ele chamando-o de Leopoldo Varangot”. 

Ninguém comenta os clássicos com mais inteligência do que Borges, mas seu julgamento dos contemporâneos é frequentemente desdenhoso, ranheta. 

Julio Cortázar foi um avaliador mais generoso do livro de Marechal, que comentou em 1949 num longo artigo em que lhe aponta qualidades e defeitos; ainda assim acabou sendo acusado de “aderir ao peronismo”. Assim ele descreve a obra de Marechal: 

“São sete livros, dos quais os cinco primeiros constituem o romance e os dois restantes amplificação, apêndice, notas e glossário. No prólogo se diz exatamente o contrário, ou seja, que os primeiros livros valem antes de tudo como introdução aos dois últimos, ‘O Caderno de Capa Azul’ e ‘Viagem à Obscura Cidade de Cacodelfia’. (...) Os livros VI e VII podem ser desprendidos de Adán Buenosayres com sensível benefício para a arquitetura da obra”. 

 Talvez se possa ver aí uma influência futura sobre O Jogo da Amarelinha, em que tais capítulos de comentários vêm apostos ao romance como “Capítulos Prescindíveis”. 

Cortázar elogia o uso de variadas vozes pelo autor e conclui: 

“Estamos criando um idioma, por mais que incomode aos necrófagos e aos professores normais de letras que creem em seus títulos. É um idioma turvo e quente, torpe e sutil, porém cada vez mais próprio à nossa necessidade de expressão.” 

Ignorado em sua época, o romance de Marechal parece emergir aos poucos, com o passar do tempo.