sexta-feira, 18 de novembro de 2022

4884) A vergonha de Annie Ernaux (18.11.2022)

 


O Prêmio Nobel é bom quando celebra um autor que a gente gosta. Me lembro de que comemorei os nomes de José Saramago, William Golding, Mario Vargas Llosa. 

Também é útil quando nos revela nomes que a gente desconhecia. Quando a francesa Annie Ernaux ganhou o prêmio semanas atrás, houve muita troca de comentários nas redes sociais, e em função disso acabei tendo acesso a livros dela, cuja obra eu nunca tinha lido.
 
O que me chamou a atenção foram os comentários de que ela escreve parecido com Georges Perec, uma ficção meio autobiográfica mas narrada com distanciamento, sem nostalgia ou sentimentalismo. Perec tem alguns livros assim, e o seu W, ou a Memória da Infância é uma complexa experiência em que se misturam ficção especulativa e memória.
 
Peguei para ler La Honte (1997), já traduzido no Brasil (A Vergonha, Fósforo Editora, trad. Marília Garcia). É um relato curto onde ela aborda um fato crucial de sua juventude: o dia em que seu pai tentou matar sua mãe, em 15 de junho de 1952. (Annie Ernaux nasceu em 1940.)
 
Depois de um almoço do domingo, o casal discute sem parar. O marido está alterado, tremendo convulsivamente, e começa a bater na mulher. A filha sobe correndo para seu quarto, apavorada. A mãe grita por socorro, a menina desce e vê os dois ainda brigando, na adega, enquanto o pai ergue uma foice.
 
“Foi tudo muito rápido”, como se diz, e Annie lembra apenas que depois estão os três distanciados, ela chorando, o pai sentado à janela, a mãe perto do fogão. Trocam frases ásperas, mas parece que tudo se dilui, como em tantas brigas domésticas; e os três saem para passear de bicicleta, como fazem todos os domingos. Diz ela: “E nunca mais se tocou naquele assunto”.
 
Como é de esperar, esse episódio (até moderado, se a gente pensar no que acontece por aí) fica incrustado na memória da menina e logo nas primeiras páginas a autora, agora adulta, confessa que está escrevendo sobre aquilo pela primeira vez.


(Annie Ernaux)
 
A prosa de Annie Ernaux, neste livro pelo menos, é uma prosa cristalina; tem do cristal tanto a clareza quanto a rigidez, tanto a luminosidade quanto a crispação íntima. Não se desmancha em queixas nem em melodrama. Os franceses, tão emotivos! – conseguiram desenvolver um tipo de prosa distanciada para analisar os próprios sentimentos, traumas, emoções turbulentas. Será o resultado de quatro séculos de cartesianismo e cem anos de psicanálise?
 
La Honte se anuncia como o relato de um evento traumático, “vergonhoso”. Uma briga de casal como milhões de outras, uma violência da parte mais forte sobre a mais fraca. Annie Ernaux descreve com objetividade cinematográfica o ambiente, o local, o momento, os detalhes que a memória conseguiu salvar. Uma cena, apenas – e desta cena o livro inteiro se desdobra, como um pop-up.
 
Porque a partir daí ela recua, vai se afastando desse nódulo problemático, deixa-o meio que para trás. Vai mostrando a pessoa que era o pai, a pessoa que era a mãe. Comenta fotografias de infância – que na literatura são sempre um excelente pretexto para a produção de fantasias afetivas. Descreve o lar, uma típica combinação de vida privada e trabalho público, pois a família administra um pequeno café-mercearia, e mora no restante da casa; ali, misturam-se o espaço de atendimento aos fregueses e a residência privada.
 
Descreve a cidadezinha de “Y”, seu espaço físico, seu espaço social – ali moram os ricos, aqui os remediados, ali os pobres. Comenta a mentalidade local, as fofocas, a vigilância recíproca, as maledicências a meia voz, o medo de “cair na boca do povo”. Impossível não ver o que há de profundamente nordestino (brasileiro?) nesse vilarejo da Normandia, que surge no livro como se eu já o conhecesse. Junto com a mãe, a menina Annie lê romances de M. Delly e de Max du Veuzit, os mesmos que eu, adolescente, via às dezenas nos sebos de Campina Grande e do Recife.


Começa uma longa descrição da vida escolar da garota, que parece ao leitor, num primeiro momento, uma mudança de assunto, uma virada de página, deixando para trás o episódio violento. À medida que ela avança no relato, no entanto, começa a revelar um contexto social que remete o tempo inteiro à infelicidade do pai e da mãe.
 
Annie foi matriculada (sabe-se lá a que custo) numa escola particular de freiras católicas, e não na modesta escola pública que caberia à filha de um pequeno comerciante, ex-camponês, ex-operário. É a única da família que teve a chance desse upgrade social, sem dúvida por esforço de sua mãe, que tem devaneios de ascensão (o pai é rústico e ressentido). 
 
Nessa escola católica e emproada a menina tem acesso às incontáveis pequenas humilhações de quem percebe o tempo inteiro o quanto é mal vestida, inadequada. E brota nela um sentido mais amplo de vergonha, que não é apenas a vergonha do que o pai tentou fazer à mãe, mas a vergonha de serem todos três aquilo que inevitavelmente são.
 
O ponto alto desse pesadelo gelado é a excursão de ônibus ao santuário de Lourdes, quando ela e o pai são repetidamente humilhados pela desatenção dos garçons, o esnobismo dos companheiros de viagem, e a constatação de que são “pobres”, não pertencem àquele mundo.



(No destaque, o País de Caux)
 
Logo nas primeiras páginas vi que a autora chamava apenas de “Y.” a cidadezinha onde morava com os pais. Achei normal, e segui adiante. De repente, ela diz:
 
Em junho de 52, eu nunca havia saído daquele território a que se dá o nome, de maneira bem vaga, mas compreendida por todos “aqui entre a gente”, como o país de Caux, à margem direita do Sena, entre Le Havre e Rouen. (trad. BT)
 
Caiu uma ficha do tamanho do Louvre. “Y” era então Yvetôt!... Porque essa região que ela descreve é a região de Arsène Lupin, na costa da Normandia: Rouen, Dieppe, Le Havre, Étretat... É ali que se passam algumas das aventuras mais célebres do “ladrão de casaca”: A Agulha Oca... A Condessa de Cagliostro... O Mistério do Rio do Ouro... 

É o território que Lupin conhece como a palma da mão, onde travou suas maiores batalhas contra inimigos poderosos, onde decifrou enigmas seculares da história da França, onde esconde os seus tesouros.
 
E assim, por uma dessas magias da literatura, toda a pequena e dolorosa aventura de Annie Ernaux tornou-se mais real para mim. Mais real ainda do que me havia sido revelado pelo bisturi de sua prosa. Eu conheço (de minha infância também, de meus doze anos também) aquelas cidades antigas encarapitadas entre morros e vales, aquelas igrejas em ruínas, aqueles camponeses surrados pelo tempo, de cenho franzido, de queixo duro. Aqueles rochedos místicos e sangrentos. Aquela Normandia sisuda, arraigada em si mesma, suspeitosa do mundo lá de fora. Um povo de segredos enterrados. Um povo que presenciou crimes e que poderia contá-los, mas só à força de bisturi.



(As falésias de Étretat; o país de Lupin)