segunda-feira, 30 de novembro de 2015

3984) Os enganos da memória (29.11.2015)



Há uma história sobre um rapaz distraído que quando foi à Alemanha lhe pediram que levasse uma encomenda para uma tal de Dona Erda. Um mês depois, ele bateu à porta do chalé e perguntou por Dona Osta. 

Nossa memória é vulnerável a esses pequenos atos falhos, que segundo algumas teorias são todos propositais. Embora não sejam propriamente nossos. São das criaturas trancafiadas que existem em nós, invisíveis para nós, e que somos nós. Toda vez que a gente erra, um desses avatares está querendo nos dizer alguma coisa.

O Padre Massote, diretor e professor da escola de cinema da UCMG, era jesuíta, muito falador, discorria muito bem sobre tudo, porque lia muito e adorava cinema. Pertencia, a certa distância, àquela corrente mista de cineclubismo e igreja católica que no Nordeste teve também um papel tão importante. 

Massote exibiu para nós, seus alunos, Un Chien Andalou e L’Âge d’Or, dizendo: “Vocês têm que ver isso, porque Buñuel é um dos maiores do mundo, apesar do infantilismo ateu dele. Mas não amarra a chuteira de Antonioni”.

Uma vez ele estava falando, provavelmente sobre economia de linguagem, sobre sintetizar uma cena inteira numa imagem, e disse: “Você pode dizer tudo em uma simples frase. Drummond fez um poema para a cidade de Nova Friburgo que diz apenas: ‘Um cravo na lapela’”. 

Anos depois me caiu sob os olhos esse poema. O poema diz, na verdade: “Esqueci um ramo de flores no sobretudo”. É Nova Friburgo também. A memória emotiva de Massote não lhe faltou, nem a visual, porque ele apenas reduziu o que lembrava; e o que disse está essencialmente certo, poeticamente certo.

Quantas vezes já me pediram para contar a história de um filme que eu vi dez anos atrás e eu contei, mas pintando um filme novo por cima do que eu não lembrava? Era uma mentira? Talvez, mas não pelo prazer de mentir, e sim pela vertigem de inventar, e nem quem dela é capaz pode definir o mistério que tem.

O pensamento abomina o esquecimento, tal como se diz que a Natureza “tem horror ao vácuo”. É preciso preencher aquele não-espaço. E cada vez que a gente pensa num verso, numa melodia, num diálogo, numa lembrança da vida real, a gente está na verdade abrindo um arquivo, mexendo nele, e salvando, com alterações. Nossa memória pode até ter o Ur-documento de tudo, a memória-prima de cada recordação, um filminho total para cada momento “x, y, z” guardado até hoje num Fort Knox de segurança máxima nos subterrâneos da mente. Mas está soterrado por décadas de reedições dele mesmo, revistas e melhoradas. Toda lembrança é uma história de ficção baseada numa história real da qual se perdeu o registro.