domingo, 27 de fevereiro de 2011

2491) A moral da fábula (27.2.2011)




No final das fábulas de Esopo ou de La Fontaine, vem sempre aquela frasezinha curta que nos acostumamos a chamar de “a moral da história”. 

O lobo bebe água no rio junto ao cordeiro, faz-lhe um monte de acusações e por fim o devora. Após o desfecho, vem uma “moral” tipo: “Quando um poderoso decide castigar um fraco, qualquer pretexto serve, e às vezes pretexto nenhum”. 

Essas fábulas têm um propósito didático e moralizante, tanto que continuam a fazer parte da nossa literatura infantil. O lado moralizante não precisa de explicações – trata-se de implantar na mente dos pimpolhos princípios morais, éticos, etc. O lado didático é mais sutil e mais interessante. Trata-se de dizer, por um lado: “Qualquer episódio concreto pode ser interpretado sob a forma de conceitos abstratos”. E por outro: “Qualquer conceito abstrato pode ser ilustrado através de pequenas historietas aparentemente ambientadas num mundo parecido com o nosso”.

A História é uma ciência em que somos o tempo inteiro induzidos a passar do concreto para o abstrato. 

Se nos deparamos com os registros de tráfico de escravos africanos durante 150 anos, podemos traçar um gráfico que ilustra as idas e vindas desse comércio e afirmar, por exemplo, que “do ano X ao ano Y o tráfico cresceu, mas do ano Y ao ano Z ele diminuiu”. 

Mesmo conceitos tão óbvios quanto crescer e diminuir só podem ser formulados se tivermos registros confiáveis sobre as quantidades, ao longo de um período de tempo aceitável.

A passagem do abstrato para o concreto tem mais a ver com a literatura. Uma coisa é a professora perguntar ao pirralho: “Zezinho, quanto é 15 dividido por 3?”. Ou o guri estudou tabuada ou não vai saber responder. Mas ela pode criar uma pequena obra de ficção. “Zezinho, uma mulher foi ao mercado e comprou quinze chocolates. Ela tem três filhos, e, para que eles não brigassem, teve que dar a mesma quantidade a cada um. Quantos chocolates cada um deles recebeu?”. 

Motivado por essa pequena tensão dramatúrgica, o guri é capaz de entender não só a possibilidade como também a importância de se dividir quinze por três; e faz a conta.

Grande parte da literatura nasce assim, de uma idéia abstrata que ocorre ao escritor enquanto ele fuma cachimbo (“A sociedade de consumo despersonifica os seres humanos, e faz com que eles vejam uns aos outros como meras mercadorias...”) e a partir disso ele começa a escolher personagens-função: este aqui vai ser o Capitalista Inescrupuloso, aquele outro vai ser o Trabalhador Ingênuo, esta vai ser a Companheira Solidária, aquela outra a Intelectual Egocêntrica... 

O problemas das idéias abstratas é que não produzem narrativas que pareçam com a vida humana. Produzem alegorias, histórias em que os personagens são tão programados e previsíveis quando um zumbi de videogame. 

(Os videogames, aliás, estão padecendo desse mesmo mecanicismo, que estraga as Utopias Proletárias, as Fábulas Cristãs e outras narrativas que nunca saem do abstrato).