segunda-feira, 27 de novembro de 2023

5006) Minhas canções: "Tuareg e Nagô" (27.11.2023)



Na literatura de ficção científica e de fantasia existe um conceito chamado de worldbuilding, ou “criação de um mundo”. O autor imagina um mundo diferente do nosso, e ali ambienta suas histórias. Esse “mundo” pode ser outro planeta, no caso da FC, ou pode ser um mundo imaginário como o da série de “Narnia” (de C. S. Lewis) ou dos continentes descritos na série “Game of Thrones” de George R. R. Martin.

Um ponto crucial desses “mundos construídos” é que sejam coerentes, sejam surpreendentes, e sejam plausíveis. O leitor quer surpresas, que descobrir mistérios e novidades, quer se deparar com rasgos de imaginação que aumentem o prazer da leitura. Por outro lado, ele geralmente preza uma certa lógica no que está sendo mostrado; aquilo não deve ser gratuito ou desordenado. Se o autor mostra uma história de navios piratas e a certa altura introduz uma bomba atômica, a história fica parecendo uma bagunça de anacronismos. O que não impede um bom escritor de muitas vezes tornar verossímil alguma incongruência desse tipo.

“Tuareg e Nagô” é uma canção gravada por Lenine no CD Olho de Peixe (1993), seu disco de estréia solo, produzido com Marcos Suzano e Denilson Campos. Essa faixa nasceu da confluência de várias idéias.

A primeira delas remonta ao disco Baque Solto (1983), de Lenine e Lula Queiroga. Esse disco é hoje o que se chama de “um clássico cult”. Eu tinha chegado ao Rio há cerca de um ano, e a turma que encontrei aqui era um grupo de parceiros de outras aventuras musicais no Nordeste: Lenine, Lula Queiroga, Tadeu Mathias, Mestre Fuba, Ivan Santos, Alex Madureira, Zeh Rocha... Todos morando no Rio, cantando no “Bar do Violeiro”, tentando gravar.

Quando o Baque Solto foi gravado, tinha composições e participação instrumental dessa turma toda – menos eu, que era um dos mais recentes. Sugeriram então que eu fizesse um texto poético falando da força da música nordestina, etc. e tal. E no dia em que fomos fazer a foto da “Gente de Baque Solto”, registrada no estúdio por Hélio Viana, levei o texto “Mapa do Tesouro”, que saiu no encarte do LP e é substancialmente a letra da futura “Tuareg e Nagô”:


É a festa dos negros coroados
no batuque que abala o firmamento...

Passou-se. Os meses e os anos fiaram seu fio de areia. Comecei a compor junto com Lenine, e uma das primeiras coisas que nos aproximou foi o gosto pela ficção científica, fantasia, fenômenos bizarros (de Charles Fort até Operação Cavalo de Tróia). E um dos nossos passatempos era imaginar, em sessões de devaneio e de “world building”, cenários para narrativas fantásticas.

Um desses cenários foi o que fiquei chamando de “A Ilha”, partindo de uma premissa simples. Todo mundo imagina a Atlântida como uma ilha futurista no meio do Oceano Atlântico – uma espécie de “Metrópolis” de Fritz Lang, mas com túnicas gregas e templos de mármore. Nossa idéia partiu da premissa contrária: e se essa ilha no meio do mar fosse na verdade uma ilha tropical, caribenha, ensolarada, fértil, super-populosa, tecnologicamente um tanto precária mas com uma vida cultural intensa?

Essa ilha seria uma confluência de todas as civilizações navegantes que cruzaram o Atlântico, cada uma deixando ali suas marcas. E assim surgiu o verso que depois tornou-se o refrão da música:


Quando o grego cruzou Gibraltar

onde o negro também navegou,

beduíno saiu de Dacar

e o viking no mar se atirou...

Uma ilha no meio do mar

era a rota do navegador:

fortaleza, taberna e pomar,

num país tuareg e nagô...

Estavam presentes na mistura uma série de povos que, teoricamente, teriam se encontrado e miscigenado nessa Ilha imaginária no meio do Atlântico. A Ilha servia de ponto de parada, descanso, reabastecimento, trocas comerciais... Algo bastante plausível, em termos de ficção. E de lá os navegadores seguiriam na direção Sul, cruzando a linha do Equador e chegando finalmente à América do Sul e o Brasil.

É o destino dos navegadores que partiam rumo ao oeste, à região onde o sol vai se pôr – “to sail beyond the sunset”, no verso famoso de Lord Tennyson.


E coube a Lenine pegar os versos antigos do “Mapa do Tesouro”, organizar tudo em estrofes, e mudar várias coisas para dar coerência ao “mundo construído”. Ali temos canaviais, estradas de ferro, plantações, frevo, religiões africanas... É de certo modo a Zona da Mata nordestina, mas, colocada nesse contexto imaginário, acho que ela ganha outras cores.

Cores caribenhas, na verdade, porque a Ilha, a nossa “atlântida”, ficava a meio caminho entre o oeste da África e o Golfo do México. Uma latitude e longitude que a deixavam praticamente ao lado do Mar do Caribe – ou seja, uma Ilha que parecia pouco com a Atlântida dos livros, e parecia muito com Cuba, Jamaica, Porto Rico...

Lembrei de uma frase de Gabriel Garcia Márquez numa entrevista, quando ele disse que o Recife era a cidade mais caribenha que ele conheceu fora do Mar do Caribe. Na época, fizemos os versos iniciais de uma canção glosando esse mote, explorando a assonância entre Caribe e Capibaribe:


Lá, onde o mar bebe o Capibaribe...

Coroado leão, caribenha nação

longe do Caribe.

 

“Coroado leão” é uma referência futebolística que nos era inevitável, mas esse fragmento, que tinha ficado como um começo apenas, encontrou seu complemento com a canção da Ilha.

Lenine pensava em termos de canções, eu pensava em termos de histórias. Cheguei a rabiscar resumos de contos que eu poderia ambientar nessa Ilha, contos focados apenas nos personagens e deixando essa questão histórico-geográfica como um pano-de-fundo remoto, mero ambiente, sem obrigação de explicar muita coisa.

Não avancei nessa direção porque nessa mesma época eu estava empenhado noutro projeto de “worldbuilding”: a criação da cidade imaginária de Campinoigandres, uma cidade árabe-ibérica no Portugal do século 14, onde ambientei vários contos e o meu romance A Máquina Voadora  (1994). Mas aí já é outra história.

“Tuareg e Nagô” foi lançada no Olho de Peixe em 1993 e teve várias regravações; minha preferida entre elas é a de Mônica Salmaso, em Trampolim:


https://www.youtube.com/watch?v=kirM7tkAvD4&ab_channel=M%C3%B4nicaSalmaso-Topic

 

Tuareg e Nagô

(Lenine/BT)


É a festa dos negros coroados

no batuque que abala o firmamento,

é a sombra dos séculos guardados,

é o rosto do girassol dos ventos...

É a chuva, o roncar de cachoeiras

na floresta onde o tempo toma impulso,

é a força que doma a terra inteira

as bandeiras de fogo do crepúsculo...

 

Quando o grego cruzou Gibraltar

onde o negro também navegou

beduíno saiu de Dacar

e o Viking no mar se atirou...

Uma ilha no meio do mar

era a rota do navegador

fortaleza, taberna e pomar

num país Tuareg e Nagô.

 

É o brilho dos trilhos que suportam

o gemido de mil canaviais,

estandarte em veludo e pedrarias

batuqueiro, coração dos carnavais...

É o frevo a jogar pernas e braços

no alarido de um povo a se inventar,

é o conjuro de ritos e mistérios,

é um vulto ancestral de além-mar.

 

Quando o grego cruzou Gibraltar

onde o negro também navegou

beduíno saiu de Dacar

e o Viking no mar se atirou.

Era o porto pra quem procurava

o país onde o sol vai se pôr

e o seu povo no céu batizava

as estrelas ao sul do Equador.