quarta-feira, 7 de julho de 2010

2242) McGuffin (15.5.2010)



(foto: Jeanloup Sieff)

“McGuffin” é o nome genérico de um objeto qualquer que dá origem às peripécias de um enredo, geralmente um objeto que é ferozmente disputado por várias pessoas. Não importa muito o que seja, contanto que sua mera existência possa gerar conflitos, situações e reviravoltas. Alfred Hitchcock, que introduziu o termo, contava a seguinte piada. Dois sujeito se encontram num trem, e um deles está levando consigo um objeto extravagante. O primeiro pergunta: “O que diabo é isso”. O segundo: “Um McGuffin”. O primeiro: “E que diabo é um McGuffin?” O segundo: “É um instrumento que serve para caçar leões nas Montanhas Adirondacks”. O primeiro: “Mas não existem leões nas Montanhas Adirondacks!” O primeiro: “Bem, então isto aqui não é um McGuffin”.

Esta historieta, que foi divulgada no livro de François Truffaut sobre o cineasta inglês, é apenas um pequeno paradoxo, que parece as brincadeiras de lógica intuitiva de Lewis Carroll nos livros de Alice. O que Hitchcock parece sugerir é que uma coisa só é ela mesma se cumprir sua função, por mais absurda que possa ser esta. E o McGuffin que ele coloca em seus filmes é um mero detalhe; como ele mesmo disse, “não importa o que é o objeto, importa o que as pessoas são capazes de fazer para ficar com ele”. Hitchcock lembra as histórias de espionagem de Rudyard Kipling, passadas no Oriente, em que alguém estava sempre roubando “a planta baixa da fortaleza” ou um segredo militar qualquer. Não é preciso explicá-lo: basta ser algo que tenha a aparência de ser importante e justificar toda aquela perseguição toda aquela sucessão de crimes.

Ele se orgulhava de dizer que o McGuffin mais perfeito de seus filmes era o de Intriga Internacional, quando na cena do aeroporto, já na segunda metade do filme, Cary Grant, que está sendo perseguido por assassinos, consegue perguntar ao homem da CIA o que é afinal que o personagem interpretado por James Mason faz. O outro responde: “Digamos que ele trabalha no ramo de importação e exportação”. “Sim, mas de quê?” “De segredos do Governo”. Isto é tudo: e Hitchcock afirmava, com orgulho: “E neste caso reduzimos o McGuffin a sua expressão mais pura, ou seja, o nada”.

Kurt Vonnegut Jr. inventou em Cat’s Cradle um termo que exprime uma idéia parecida: “wampeter”. Segundo ele, é “um wampeter é um objeto em torno do qual giram as vidas de numerosas pessoas que, com exceção disto, não têm nenhuma relação entre si”. Ele dá como exemplo o Santo Graal, objeto mágico procurado por inúmeros indivíduos que nem sequer se conhecem. A diferença entre os dois deve ser o fato de que o McGuffin de Hitchcock não precisa, e na verdade não deve, ter um significado que chame a atenção. Basta ser importante para aquelas pessoas. Sua única função é desencadear situações, e as situações desencadeadas por ele é que são o objeto do filme. Para um espectador calejado e cético, todo Santo Graal é um mero McGuffin.

2241) A lista de Dunga (14.5.2010)



Não creio que tenha algo a acrescentar a tudo que o Brasil já falou sobre a convocação da nossa Seleção para a Copa do Mundo. É o problema do colunista quando esbarra num “assunto obrigatório”. Por ser obrigatório (por atrair a atenção da grande maioria dos leitores), ele não pode perder a chance, sob pena de parecer incompetente ou omisso. E pela mesma razão são ralas, rarefeitas, as suas chances de dizer algo que os outros não já tenham dito.

Malhei aqui a seleção de Dunga durante os três anos em que ela entrou em campo, mas tive a sensatez de elogiá-la quando ganhou a Copa América, a Copa das Confederações e as Eliminatórias. Quando se acertou, a Seleção satisfez. É a cara do treinador: um sistema compacto e aguerrido do meio para trás, perseguindo o adversário, roubando bolas, não dando descanso, e ao dominar a bola escapando com velocidade para dar a punhalada certeira. Uma seleção no modelo italiano, portanto, e que encontrou em Robinho e Luís Fabiano os atacantes mais adaptados para esse estilo.

A lista de Dunga desagradou quem torcia por jogadores como Neymar, Paulo Henrique Ganso, Ronaldinho Gaúcho. Apostei que nenhum seria convocado. Neymar e Ronaldinho são moleques demais para nosso treinador. Ganso é um bom rapaz, comportado, firme e ao que tudo indica é craque mesmo, mas segundo Dunga ele não teve uma boa passagem pela seleção sub-20, e parece que nos pesos e medidas do técnico isso conta mais do que o que o jogador faz no clube. Pode não ser um valor absoluto, mas pelo menos faz sentido.

Dunga e Mauro Silva foram dois dos melhores jogadores da nossa Seleção campeão em 1994. Criaram uma barreira ali na frente da área onde nada passava. Toda vez que o ataque inimigo se aproximava dali eu pensava, “lá vai”, e um dos dois ia, dava o bote, e partir com a bola para o contra-ataque. O defeito daquele time seria mais ou menos o do time de agora: pouca criatividade no transporte da bola de trás até os dois atacantes.

O time de Dunga vai longe na Copa? Para mim, tem mais chance de ir do que o anterior, o de Parreira. Não pelo técnico, mas pelo ambiente criado. Aquela seleção de 2006 era um grupo de pândegos fazendo turismo e amealhando recordes geriátricos. Os times de Dunga podem ter qualquer outro defeito mas são competitivos. A imprensa carioca e paulista (irritada com as não-convocações de Adriano, Neymar, Ganso & companhia) ironizou ferozmente o discurso patriótico do treinador e suas limitações teóricas. Não importa. Direi agora algo que não li ainda: o time brasileiro é basicamente muito bom (quando tivemos uma defesa tão sólida?) e pode enfrentar qualquer um de igual para igual: Espanha, Inglaterra, Portugal, Itália, Argentina, nenhum desses (pelo que tenho visto na TV) tem um time melhor que o nosso. Não há favoritos. São apenas sete jogos, onde podem ocorrer surpresas consagradoras e desastres inexplicáveis. Se não fosse assim não era Copa do Mundo, e não tinha graça nenhuma.

2240) Welles e Wells (13.5.2010)



Os nomes de H. G. Wells e Orson Welles estão ligados para sempre, em nossa memória cultural, pela adaptação radiofônica feita por Orson em 1938, com base no romance The War of the Worlds, publicado por H. G. em 1898. Como se sabe, a transmissão da invasão dos marcianos, em forma de noticiário, levou o pânico aos Estados Unidos e tornou Orson famoso da noite para o dia. As pessoas ligavam o rádio e ouviam alguns números musicais que eram bruscamente interrompidos para que locutores nervosos anunciassem o desembarque de naves alienígenas, a mortandade causada pelos seus “raios de calor” e as multidões em pânico pelo país afora. Somente esta última parte era verdadeira: houve pânico, acidentes, tentativas de suicídio, e a CBS, dona da emissora, teve que cortar um dobrado nos meses seguintes para enfrentar as dezenas de processos judiciais que sofreu. Orson ficou famoso e foi contratado por Hollywood, onde realizou Cidadão Kane.

Em 1940, os dois autores dessa transmissão memorável se encontraram pessoalmente, durante uma turnê de conferências que H. G. Wells realizou na América do Norte. Em San Antonio (Texas), ele falou para a United States Brewers Association; por coincidência Orson estava na cidade para uma palestra, os dois foram apresentados, e no dia seguinte foram para a rádio local. No YouTube (em: http://www.youtube.com/watch?v=nUdghSMTXsU) pode-se escutar um áudio de 7 minutos e meio do único encontro entre os dois. A voz grave e profunda de Orson, então com 25 anos, contrasta com a voz mais débil, fatigada (mas sempre bem-humorada) de H. G., então aos 74 anos. Os dois trocam amabilidades, fazem brincadeiras com o fato de terem quase o mesmo sobrenome, comentam a política mundial (estava-se em pleno começo da II Guerra, é inevitável que se refiram a Hitler), e discutem o pânico causado pela transmissão do programa.

Orson parece referir-se a um discurso de Hitler segundo o qual o pânico provocado por A Guerra dos Mundos mostrava a condições corruptas e o estado decadente das democracias ocidentais. Wells comenta que isso só pode ser dito por quem desconhece a tradição do Halloween na América, quando todo mundo faz de conta estar vendo fantasmas (a transmissão ocorreu, propositalmente, numa véspera de Halloween). Orson refere-se às profecias do inglês, cita seu livro The shape of things to come (1933) e diz que “hoje estamos vivendo num futuro de H. G. Wells, num daqueles mundos sobre os quais ele falava”.

No fim da conversa, Wells pede que Orson fale sobre o filme que está dirigindo, e pergunta se o nome é Citizen Cain (“Cidadão Caim”). Orson ri e diz que não, é “Kane”, mas que é muito gentil da parte de Wells dizer isto abertamente. E explica: “É um novo tipo de filme, como um novo método de apresentação, e alguns novos tipos de experiências técnicas e novas maneiras de narrar um filme”. Em matéria de eufemismo, de “understatement”, é de botar qualquer britânico no chinelo.

2239) O jogo de 180 minutos (12.5.2010)



O futebol tem adotado cada vez mais o sistema classificatório chamado de “mata-mata”. São dois jogos, um no campo do primeiro clube, o outro no campo do segundo. Antes, esse sistema levava em conta apenas a vitória de cada um. Se o time A ganhasse o primeiro jogo por 1x0 e o time B ganhasse o segundo por 5x0, havia uma vitória para cada um, e era preciso um novo critério de desempate, que variava de acordo com o regulamento: prorrogação, disputa em pênaltis, etc. Ou então calculava-se desde antes qual dos dois tinha melhor campanha (maior número de pontos ao longo do campeonato, ou maior número de vitórias, ou maior saldo de gols, ou melhor resultado no confronto direto entre os dois times, etc.), e decidia-se que esse time seria vencedor no caso de resultados iguais (uma vitória para cada um, ou dois empates).

Mas sempre tinha alguém (eu, muitas vezes) que ficava injuriado quando acontecia uma disparidade qualquer. Afinal, uma vitória de 1x0 não pode se comparar a uma derrota por 5x0. Mesmo no caso de uma diferença menor, havia uma impressão de injustiça: então meu time ganha por 3x1, perde o outro jogo por 2x1, e ainda vai ter que decidir nos pênaltis?! Surgiu então o modelo atual, em que não apenas se consideram as vitórias, mas se somam os placares, formando o tal “resultado agregado”. Se o Treze perde o primeiro jogo por 3x2 mas ganha o segundo por 2x0, considera-se como resultado final a soma dos dois: o Treze vence 4x3. É o chamado “jogo de 180 minutos”.

Todo esporte tem essas sutilezas mas no caso do futebol surgem situações contraditórias. Dias atrás, pela Libertadores, o Flamengo perdeu de 2x1 para o Corinthians mas conseguiu se classificar e fez a festa; na mesma noite, pela Copa do Brasil, o Vasco venceu o Vitória por 3x1 e saiu derrotado (porque perdeu o primeiro jogo por 3x0). No caso do Flamengo, a classificação veio por mais uma sutileza recente: o gol marcado fora de casa vale por dois. Como o Fla ganhou no Rio por 1x0 e perdeu em São Paulo por 2x1, o placar dos 180 minutos ficou em 2x2 – mas o Fla fez um gol no campo do adversário, e o Corinthians não.

A questão é que muitas pessoas se queixam disso. Que coisa absurda, comemorar uma derrota! Que coisa irracional, vencer o jogo e sair de campo chorando! Para mim, essas regras recentes (ou seja, de uns 10 ou 15 anos pra cá) significam (digamos) a vitória do resultado a longo prazo sobre o resultado imediato. O que, no mundo de hoje, é uma influência saudável. O mundo está muito imediatista. As pessoas só enxergam o que podem tocar com a ponta do nariz. Ninguém pensa nas consequências, ninguém imagina que vai pagar a conta. Só vale a satisfação imediata. É bom que o esporte nos acostume a pensar na semana que vem, no jogo que vem, como parte do jogo que estamos disputando agora. Na vida só contam os resultados agregados. Cada gol que a gente sofre hoje, fica para sempre. Cada gol que a gente marca, fica também.