sexta-feira, 31 de agosto de 2012

2964) Fantasmas (31.8.2012)


“The Private Life”, de Henry James, é um conto de fantasmas pouco comum. Conta a história de dois indivíduos que se encontram num hotel dos Alpes, durante as férias. 

O primeiro é um dramaturgo que se divide em duas cópias de si mesmo. Uma das cópias conversa abobrinhas com as damas da sociedade, enquanto a outra fica no quarto do hotel, escrevendo. 

O segundo personagem é um general vaidoso e autoritário que, quando não está sendo visto por ninguém, some no ar. Não tem essência própria, tudo nele é pompa e circunstância, tudo nele é “a liturgia do cargo”. 

Este último personagem me lembrou de imediato o alferes do conto “O espelho” de Machado de Assis, que quando tira a farda deixa de existir e até mesmo de se ver no espelho, mas basta-lhe vestir de novo o uniforme e todos voltam a perceber sua existência e a tratá-lo com cortesia. (Para os rastreadores de plágios e de influências: o conto de James é de 1892; o conto de Machado é de Papéis Avulsos, 1882.)

Encontrei por aí este comentário, cujo autor infelizmente não guardei: 

“Os fantasmas de Henry James estão sujeitos a brotar tanto de dentro quanto de fora; embora sejam percebidos de forma vívida, muitas vezes são tanto emanações da psiquê quanto visitantes de ‘outro mundo’. Sem dúvida, é precisamente a indefinição entre essas duas condições que lhes confere poder imaginativo”.  

O comentário é pertinente porque o conceito de fantasma parece a alguns ser (e não é) ligado ao conceito religioso de alma. Um fantasma seria apenas um espírito que sobrevive à morte do corpo e consegue comunicar-se com os vivos, ou pelo menos ser percebido por eles.

Podemos fazer, a toque de caixa, uma pequena lista de hipóteses fantásticas, mas não-espirituais (no sentido religioso) para a existência de fantasmas. 

Um: emanações perceptíveis, produzidas pela mente de uma pessoa viva sob forte tensão (as aparições e desdobramentos, como a do dramaturgo descrito por James). 

Dois: a existência de frestas no espaço-tempo que captam uma “fotografia animada” de alguém que as atravessa, e as reproduz depois, quando tais ou tais condições forem preenchidas.  

Três: a existência em nossa mente de um “gatilho” alucinatório, espécie de esquizofrenia controlada, que é deflagrado em momentos de tensão fazendo nosso inconsciente projetar uma imagem aparentemente exterior a nós (o espectro) que interfere em nossa conduta. 

Quatro: a existência de redemoinhos localizados do espaço-tempo, onde visões do passado ou do futuro podem ser percebidas de modo aleatório por um observador externo.  

Só nestas sugestões já temos quatro pontos de partida para histórias de fantasmas sem fundo animista ou religioso.






quinta-feira, 30 de agosto de 2012

2963) Ser frila (30.8.2012)




(Stefan Karpiniec)



Ser frila é ser livre, leve e solto como um náufrago à sombra do coqueiro solitário de uma ilha deserta de cartum. 

Ser frila é estar sem trabalho e sem dinheiro e passar o dia vendo TV ao lado do telefone, porque é por lá que geralmente vêm as boas notícias, mas com o computador aberto na caixa de emails, que também proporciona aleluias.

“Free-lancer” é (para os despeitados) um simples eufemismo para “desemprego reiterativo”. 

Ser frila é viver ligando para colegas, não-colegas, ex-colegas, semi-desafetos,  ex-namoradas, quase-namoradas e completos desconhecidos com a pergunta “E aí, tá rolando algum lance, algum trabalho novo?... Qualquer coisa me dá um toque!”. 

Ser frila é pisar no abstrato, nadar no sólido, respirar no vácuo, acreditar no improvável e se alimentar do possível. 

Ser frila é ter uma vida regida pelo Acaso e por decisões alheias, e se dar por satisfeito, porque tem gente que nem isso tem a seu favor.

Ser frila é pegar um trabalho em janeiro, terminá-lo em fevereiro (só receber em julho), passar março roendo as unhas e reduzindo a feira, pegar outro serviço em abril com perspectivas de um semestre, receber em junho a má notícia do cancelamento, mas meia dúzia de trampos de pouca monta já zeraram o déficit do orçamento, e ainda bem que em julho surgem dois ao mesmo tempo, aos quais é prometida dedicação exclusiva e tempo integral (porque sem essas bigamias trabalhistas ninguém escapa!), e daí até agosto é o malabarismo de cumprir prazos e pedir compreensão; em setembro caem do céu duas propostas irrecusáveis e incompatíveis, e o frila tem vontade de morrer por ser obrigado a recusar uma das duas; mas em outubro o orçamento retorna ao azul, os juros do cheque especial se evaporam, a grana vem polpuda, novembro é um mês de orgias e esbórnias (nas livrarias e sebos, bem entendido), e quando chega em dezembro é preciso raspar o fundo do tacho para a catástrofe das Festas.  

Ser frila é abrir uma cerveja diante das girândolas do reveion e pensar consigo: “No fim das contas, foi um ano produtivo!”.

Ser frila é ser amigo de funcionários que têm contracheque pingando na conta no último dia útil do mês, têm estabilidade (são concursados, o governo só pode demiti-los em caso de infração grave), vão todos os dias pelo mesmo trajeto ao mesmo edifício, sobem para o mesmo andar, sentam à mesma mesa e manuseiam os papéis da véspera; trabalham de olho na aposentadoria, quando daquela rotina sobreviverá apenas o contracheque, enquanto fazem a contagem regressiva para o dia em que se aposentarão: “Faltam 3.518 dias... faltam 3.517... faltam 3.516...”  

Ser frila (para o bem e para o mal) é o contrário disto.










quarta-feira, 29 de agosto de 2012

2962) Gotham City (29.8.2012)





(Metropolis, de Fritz Lang)


A escolha do nome Gotham City para batizar a cidade onde atua o Batman tem implicações interessantes. Este apelido foi dado à cidade de Nova York desde muito tempo atrás. Em 1807, Washington Irving (o autor de clássicos do fantástico como “Sleepy Hollow” e “Rip Van Winkle”, ambos de 1820) usou este nome para se referir a Nova York em seu jornal satírico Salmagundi.  O nome pegou, e quando foi criada a série de quadrinhos do Batman escrita por Bob Kane, em 1939, já era um apelido popular entre os habitantes da cidade. 

O nome original vem de um vilarejo na Inglaterra cujos habitantes tinham a fama de ser um pouco malucos.  Conta-se que o Rei da Inglaterra quis certa vez atravessar o povoado durante uma caçada e a população quis botar terra nesse projeto.  Na tradição da época, qualquer lugar por onde passasse o Rei tornava-se uma estrada pública, e o pessoal queria evitar um aumento de trânsito.  A solução deles foi fazerem-se de doidos. Quando os emissários do rei chegaram lá, viram um deles tentando afogar uma enguia num balde de água e outro tentando construir uma cerca em torno de um pássaro para que ele não fugisse. O Rei achou mais prudente desviar o trajeto.

A lenda prosperou e já no século 16 existia um folheto de cordel (“chapbook”) intitulado Merry Tales of the Mad Men of Gotham, “histórias divertidas do povo maluco de Gotham”, com versinhos tipo: “Three wise men of Gotham / went to sea in a bowl / and if the bowl had been stronger / my song would have been longer” (“Três sábios de Gotham / puseram-se ao mar num barco / e se o barco fosse mais resistente / minha canção seria mais longa”). Esse folheto ajudou a propagar a lenda sobre o desequilíbrio mental e a excentricidade dos habitantes de Gotham.

A palavra original vem de “goat” (cabra), pois se refere a um aprisco; mas a pronúncia cultivada pelos criadores de Batman  para Gotham City aproxima a palavra de “Gothic”, o que traz uma conotação nova ao termo.  Gótica é toda a atmosfera dos melhores quadrinhos e dos melhores filmes de Batman.  Uma tensão constante entre o céu e a terra, o bem e o mal, a honestidade e o crime.  O romance gótico acabou virando sinônimo de romance de terror devido à intensidade dos sentimentos que evoca, e da ameaça constante de intervenção do sobrenatural sobre a Terra.  Na Gotham City do Batman, o povo é ausente, e só surge como vítima das catástrofes criadas pelos vilões. Na tela só se veem com destaque os convidados dos coquetéis de Bruce Wayne e a platéia dos discursos do Comissário Gordon.  O povo de Gotham é normal, anônimo, remoto; excêntricas e carnavalizadas são as suas elites e os seus vilões.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

2961) Augusto das Letras (28.8.2012)

Na sexta-feira passada participei, junto com Ângela Bezerra de Castro e Rinaldo Gama, de uma palestra-debate que abriu o “Augusto das Letras”, evento promovido em João Pessoa pela Funjope. A Paraíba está comemorando os 100 anos de publicação da primeira edição do Eu de Augusto dos Anjos, um livrinho de poemas que teve uma tiragem de mil exemplares financiados pelo irmão do poeta. Eu vejo tantos poetas jovens hoje em dia reclamando que as grandes editoras recusam seus livrinhos de versos.  Publiquem por conta própria, amigos. A obrigação de publicar por conta própria é última garantia de independência poética.  Se Augusto escrevesse sonetos imitando os de Olavo Bilac, teria sido publicado pela Garnier.

Existe na Paraíba uma idéia de trazer os restos mortais de Augusto que estão em Leopoldina (MG), onde ele morreu. Há um sentimento de culpa envolvido nisso, porque com seu livro Augusto fez mais pela Paraíba do que a Paraíba fez por ele em seus 30 anos de vida. Desiludido com as oportunidades de trabalho em seu Estado, ele migrou para o Rio de Janeiro, onde viveu numa pindaíba ainda maior. O emprego de professor em Leopoldina, em 1914, deve tê-lo feito pensar: “Agora vai!”. Não sabia que tinha apenas alguns meses de vida. Hoje, a cidade mineira o homenageia como a um dos seus. Por que tirá-lo de lá? Nós o celebramos como um grande poeta paraibano; Leopoldina o ama porque vê nele um grande poeta brasileiro, e existe nisso alguma lição.

Muitos talentos só são aceitos depois da morte, porque a pessoa é um atrapalho, um empecilho, um ruído que não permite aquela época despreparada enxergar a obra. Van Gogh, Edgar Poe, Lima Barreto, François Villon, Beethoven... nenhum desses gênios era flor que se cheirasse, e a obra só prosperou quando ficou sem eles. Augusto não era beberrão nem agressivo; os testemunhos dos contemporâneos mostram que era cordial, afetuoso, dedicado aos alunos. Mas era neurastênico, introvertido, cheio de excentricidades e cacoetes. Era pouco dado às finezas sociais de uma época arrebitada e metida a chique. Não era um poeta próprio para a Rua do Ouvidor, e entre aqueles bardos da “belle époque” carioca estaria tão deslocado quanto Nick Cave na Ilha de “Caras”.

Poeta de um livro só, mas livro definitivo, como foi Walt Whitman. E de um visionarismo como poucos em nossa língua. Quantos poetas de hoje, inclusive os grandes, os consagrados, ainda serão lidos em 2112? Se nessa época ainda houver algo como uma civilização e os homens futuros lerem algo equivalente a livros de poesia, provavelmente lerão o Eu, e talvez sejam os primeiros a entendê-lo por completo.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

2960) Uma frase (26.8.2012)



(manuscrito de Charles Dickens)


Uma frase que abre um livro e passa a escorrer como um rio, não se detém diante de obstáculos, antes os rodeia, fingindo ignorar sua presença, cosendo tudo com seu fio de água, ou quem sabe cortando tudo com sua lâmina prateada que fende a paisagem, pois uma frase que se alonga parece possuir também essa qualidade de gume quente penetrando o requeijão passivo da página em branco, sem ceder à tentação de descansar num ponto, numa aconchegante lagoa, mas pressionando a si própria para que siga além, não canse, procure se assemelhar à façanha praticada por Jonathan Coe em 2001 com uma frase de 13.955 palavras em seu romance The Rotter’s Club, no qual ele presta inclusive uma homenagem ao famoso monólogo de Molly Bloom no Ulisses de Joyce, se bem que ele poderia do mesmo modo ter homenageado o tcheco Bohumil Hrabal, que em Dancing Lessons for the Advanced in Age (1964) produziu uma frase ininterrupta de 117 páginas, uma notável façanha que pode inclusive ter sido uma tentativa de suplantar o seu vizinho polonês Jerzy Andrejewski em The Gates of Paradise (1960), romance de 158 páginas com apenas duas frases, sendo que a segunda delas consta de apenas cinco palavras; não devemos perder de vista, contudo, que estes cálculos baseados em páginas dependem de fatores como tamanho da página, da letra, da mancha gráfica, etc; e que no caso de uma comparação de nível acadêmico e científico o mecanismo “contar palavras” embutido em qualquer processador de texto que se preza teria que ser acionado, e uma tal providência bem que poderia, sem dúvida, ser aplicada retroativamente a outros exemplos citados no artigo de Ed Park no New York Times (aqui: http://nyti.ms/gzKa3q) de onde estou recolhendo estas informações, sendo tais exemplos a novela sem pontuação How it is de Samuel Beckett, composta de 147 páginas cobertas de blocos sem qualquer tipo de pontuação, o que num certo aspecto descaracteriza sua condição de frase, sendo o mesmo questionamento aplicável (segundo Park) ao romance Zone de Mathias Énard (2008), que se estende por 517 páginas mas é subdividido em 23 capítulos que mais uma vez colocam sob dúvida sua condição de uma só frase – e olha que Ed Park é um conhecedor do assunto, sendo ele próprio o autor de Personal Days, um romance que se encerra com uma frase de mais de 16 mil palavras, o que é mais do que suficiente para nos provar mais uma vez o incessante fascínio dos escritores pela Frase Sem Fim, por essa sentença de vida que se quer eterna, sempre indo à frente, sempre se alongando como a própria respiração do autor que se pendura à própria fala e recusa a bala-na-testa de um ponto final.









sábado, 25 de agosto de 2012

2959) O primeiro uísque (25.8.2012)


O primeiro uísque desceu queimando e desceu bem, labareda, vida boa garganta adentro, vertigem e turbilhão de desafio, vontade de dizer na cara de tudo, “pode vir quente que eu estou fervendo, sou imortal, não tenho medo de nada”, pé dentro no acelerador pra não chegar atrasado, para já estar lá, soltando uma gargalhada com a piada que Vivi Catanduva acabara de dizer, por entre o ruído das vozes e da música do coquetel, uma piada maldosa e compassiva, se é que isto pode haver, piada que ela torceu pelo canto da boca sem tirar os olhos do autor que, suado, autografava e sorria, posava para as fotos e os olhares. Foi a vez de Lucio Manhães balançar seu próprio drinque e comentar qualquer coisa inesquecível, enquanto os garçons passavam erguendo as bandejas por sobre as cabeças da multidão que se espremia. Eu vivia ali um pequeno momento de glória, os quinze microssegundos de fama das Edições Marco Franchesi, porque naquela noite tudo estava dando certo, meu autor estava vendendo espantosamente bem e me fazendo um homem rico, era a oitava noite de autógrafos em um mês, em oito capitais, a imprensa não largava o nome dele, como um cão não larga um osso. Na passagem do próximo garçon pesquei o segundo uísque, enquanto a voz de mulher ao meu lado murmurava, “Marco, vai devagar, você está correndo muito”, mas um uísque é pouco, dois é bom, dois dão o fogo ideal para dissolver na boa o turbilhão feérico de vozes e suores e perfumes, de multidão comprimida numa livraria da moda, a sensação de que meu modesto ombro está fazendo avançar o carro-de-boi da História.  Este segundo uísque é aquela bênção, aquela chancela de invulnerabilidade e deleite, aquela licença de entrar sambando no Paraíso. Segundo uísque é como segundo soco, pega o vitimado com 50% de si mesmo. E rápido.  Frase vai, frase vem. Quando vejo estou com o terceiro na mão. Olho o copo, um círculo com cubos de gelo translucentes, entrechocantes. Fico hipnotizado. Sinto algo fremir de encontro à minha perna, e uma melodia espalhafatosa que nunca escolhi emerge do meu celular. Ao meu toque, a tela revela uma estrada, à noite, imagem nítida que eu seguro, como um espelho. A traseira de um caminhão. Ele dá sinal de lanterna à direita. A guinada, a ultrapassagem, a aceleração, a constatação súbita dos dois gigantescos faróis à frente. O copo de uísque se espatifa no piso. Exclamações. Lucio Manhães faz gestos pedindo serviçais e esfregões. Vivi Catanduva ainda agarra convulsa o celular, numa crise de choro: “Me ligaram agora, meu Deus, uma tragédia com Marco Franchesi, ele e a esposa, vindo para cá, meu Deus, que coisa... Ele me disse que não perderia de jeito nenhum essa festa.”

2958) O Cavaleiro das Trevas (24.8.2012)



O terceiro filme da série Batman dirigido por Christopher Nolan tem competência e tem pequenas frustrações. É um diretor criativo querendo injetar novidade numa fórmula da cultura de massas. Ele não pode injetar tanta novidade que cause um estranhamento nas platéias.  Nolan e seus produtores sabem muito bem que o que a maioria dos fãs de Batman querem é “um pouco mais daquilo mesmo”, mas não são todos.  Se hoje em dia os fãs aceitam que Batman leve uma surra do vilão e tenha que passar um tempo se recuperando isto já é prova suficiente do amadurecimento mental (seja isto o que for) dessa platéia.

Nolan fez na sua trilogia uma espécie de compressão temática de tudo que compõe a mitologia Batman, utilizando um bom elenco fixo, e atraindo participações memoráveis. Um bilionário recluso, cercado por uma equipe high-tech de fazer inveja à de James Bond, decide combater o crime em sua cidade, em parte por motivos freudianos (a morte dos pais, o medo de morcegos).  As contradições e os desvãos escusos dessa decisão arrogantemente individual são explorados nestes três filmes, em que Batman deixa de ser um “cruzado de capuz” acima do Bem e do Mal. Ele se torna um livre atirador numa briga pesada que envolve a polícia, os gênios-do-mal e os pequenos transtornos (como a Mulher Gato) que se atravessam na sua frente.  E isto deixa mais visíveis as suas contradições como agente da lei. Bandido rico, bandido bem armado, mas bandido.

Batman é rico, é impaciente com a incompetência do Estado, e resolve criar um Estado-de-um-homem-só para salvar seus conterrâneos. O vigilantismo dessa atitude o deixou permanentemente em xeque. Ele não é um cruzado. É um bilionário que quer fazer administrar o mundo pelos seus próprios critérios.

O sucesso dos filmes mais recentes de Super-Heróis reflete dois processos.  Por um lado, o mundo real está ficando mais carnavalizado, mais decorativo, mais quadrinhesco; pessoas de 50 anos ficariam perplexas com o modo como nos vestimos, nos adornamos. Por outro lado, esse comércio forçado entre os dois mundos faz com que alguns heróis comecem a perder a invulnerabilidade infantil de sua fase “gibi” e passem a se contaminar de mundo real. Foi a novela gráfica de Frank Miller, “The Dark Knight Returns” (1986), que iniciou este processo. Agora, com os blockbusters do cinema, ele chega a um público maior. É uma lenta pororoca entre as mitologias e fantasias que criamos a respeito de nós mesmos, e o modo como elas deixam de ser fantasias consolatórias para serem fantasias neuróticas em que toda a energia do problema original ressurge intacta e resiste até à bomba atômica.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

2957) Um suicídio por dia (23.8.2012)




A revista Time deu matéria de capa sobre este assunto, com o ominoso título de “One a day”, um por dia.  É o número de suicídios entre os militares norte-americanos envolvidos na guerra do Afeganistão e do Iraque.  Em meses recentes, essa impressionante estatística atingiu uma marca cruel e irônica: o número de soldados norte-americanos que se mataram superou o número dos que foram mortos pelas tropas inimigas.  Não há como não pensar na famosa frase dos quadrinhos de Pogo, desenhados por Walt Kelly: “Encontramos o inimigo, e ele é nós”.

A vontade de morrer é uma companheira perigosa da vontade de matar, e na guerra muitas vezes não se sabe qual das duas pesou mais num suicídio assim. Não falta quem faça uma leitura moral, aludindo ao remorso, ao complexo de culpa, à auto-punição por estar combatendo um combate com o qual não concorda.  Isso pode pesar em alguns casos, mas há outros em que visivelmente o soldado sentia-se justificado por estar cumprindo seu dever, não tinha problema algum quanto às razões da guerra, seu problema era simplesmente não saber o que fazer durante a paz.

Famílias recebem apoio de psicólogos e elaboram cartilhas (http://healthland.time.com/2012/07/12/military-suicide-help-for-families-worried-about-their-service-member/) para acompanhar e interpretar as atitudes do ex-soldado. Durante a readaptação à vida civil, eles são analisados em busca de sintomas de depressão, ansiedade, agressividade, uso de bebida, pessimismo, etc.  Eles foram à guerra, conheceram meses ou anos de inferno, e voltaram.  Muitos são rapazes simples, caipiras bem intencionados, ou sujeitos num beco sem saída; viveram intensamente aquele pesadelo, mas não são capazes de criar uma moldura confortável de conceitos que justifique tudo que experimentaram.  Não adianta falar somente na honra do país ou na defesa da democracia.  Seria preciso encontrar um conceito de país ou de democracia que incorporasse os fatos que ele testemunhou; mas ele não consegue produzir essa concatenação, e sua cabeça entra em parafuso.

E não devemos esquecer que Iraque e Afeganistão são dois dos lugares habitados há mais tempo pelo ser humano. Países cuja história ainda é contada pelo seu passado. O que existe ali de lendas, feitiços, criaturas mitológicas, pragas e maldições, encantamentos, lugares ominosos... Mais do que a guerra de armas de fogo trava-se ali uma guerra psíquica contra entidades que presidem aquela parte do mundo, os enormes deuses com cabeça de fera que reduziram à animalidade o orgulho de Nabucodonosor.  Não é preciso ser Stephen King ou Lovecraft para imaginar o verdadeiro combate que se trava ali.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

2956) Imperativo tecnológico (22.8.2012)




Quando falamos na possibilidade de surgimento de uma Inteligência Artificial (e este “nós” implícito inclui escritores de ficção científica, jornalistas, cientistas, diletantes da ciência) temos a tendência de personalizar essas inteligências numa figura reconhecível: o robô que raciocina como ser humano e chega até a se emocionar ou ter problemas éticos; o computador capaz de dialogar conosco, dar conselhos, tomar decisões; o software capaz de psicanalisar um paciente de carne e osso; etc.  No entanto, pode ser que essa inteligência não tenha como modelo o cérebro humano, e sim a colmeia de insetos, o formigueiro de funções especializadas. Máquinas diferentes exercerão funções diferentes numa Gestalt que para elas é um ponto pacífico, algo cuja existência ou necessidade nem sequer se discute; e que nós, humanos, só perceberemos de maneira indireta, caótica, desesperada.  Ela estará administrando, invisível e não-localizada, a nossa vida; e não saberemos qual a tomada que deve ser puxada para desligar essa força.

Marc Andreessen é o criador do Mosaic e do Netscape, os primeiros browsers de viajar na Web. Falando sobre seus projetos atuais com a “Nuvem” (o conjunto de processos e aplicativos na Web, uma espécie de banco-de-dados e CPU de todo mundo), à revista Wired, ele comentou: “Nossa idéia era deixar o processo de computação fora da máquina do usuário, sendo realizada na rede. É algo inerente à tecnologia, é o que alguns pensadores chamam de ‘imperativo tecnológico’. É como se a tecnologia quisesse que aquilo acontecesse”.

Qualquer pessoa que trabalhe num processo de criação experimenta esse tipo de coisa. “Acho que essa música tá pedindo um refrão”. “O filme está precisando de um pouco mais de velocidade no final”. “Essa peça está implorando por uns números musicais pra quebrar a tensão”.  E assim por diante.  Quando estamos trabalhando na criação de um processo complexo como uma obra de arte ou uma nova tecnologia, chega sempre um estágio em que nos sentimos como que atendendo aos pedidos ou às exigências de uma inteligência que se serve da nossa, localizada fora da nossa.  Ela reside num domínio a que temos acesso (a obra) mas que está fora de nós, está sujeita a interferências de outras pessoas, e, meio misteriosamente, parece ser capaz de querer coisas por conta própria. “Nem tudo já está na Nuvem”, diz Andreessen, “mas eventualmente a tecnologia vai querer que esteja tudo lá”.  As novas tecnologias pedem a criação de novíssimas tecnologias, numa bola de neve em que nos limitamos a aperfeiçoar essa inteligência coletiva, impessoal, insetóide.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

2955) A Vida e os Tempos de Lizzie Reptoid (21.8.2012)






Cap. 1 – De como o ovo-criogênico com o embrião de Lizzie Reptoid foi encontrado a cem metros do local em que sua espaçonave se espatifou, no município de Castanheira (PB). 

Cap. 2 – De como Seu Perácio e Dona Lia, mesmo sem entender nada, levaram aquela trapizonga eletrônica para casa, onde ela se abriu e expeliu, segundo eles, “um putufú de algodão molhado com uma menina dentro”. 

Cap. 3 – De como nos meses seguintes a menina ora parecia uma coisa, ora outra, mas a poder de leite de jumenta, laranja mimo-do-céu e maizena acabou virando menina mesmo. 

Cap. 4 -  De como Castanheira nunca mais foi a mesma durante os cinco anos seguintes, pelas romarias e procissões infindáveis de desavisados que viram em Lizzie Reptoid um sinal dos céus e vieram rezar aos seus pés, pedindo graças, bênçãos, favores, votos, dentaduras e cadeiras de rodas.

Cap. 5 – De como Seu Perácio e Dona Lia, nada bestas, amealharam dinheiro e informações suficientes para transferir-se durante um ano para o Instituto Herpetológico de São Paulo, onde venderam (o termo no contrato era outro) Lizzie Reptoid para a God-Z, uma multinacional suíço-alemã que investigava mutações genéticas, e voltaram ricos para seu primeiro mandato como prefeito e vice-prefeita de Castanheira.

Cap. 6 - De como fotos e filmagens de celular vazaram do Instituto paulistano, e em poucos anos sua proliferação viral deu início às lendas urbanas sobre uma menina que era uma mistura de alienígena e lagartixa, se bem que a credibilidade dessas narrativas fosse diminuída pela presença maciça de fanfics e fanfilms a respeito. 

Cap. 7 – De como vários governos, iludidos pelas lendas, acionaram seus espiões na tentativa de sequestrar Lizzie e conduzi-la a bunkers subterrâneos onde a aguardava um destino pior do que a morte.

Cap. 8 – De como, enquanto isto, Lizzie, agora com 14 anos, era investigada, examinada, analisada e sampleada, num bunker da própria God-Z, pelos geneticistas da God-Z, que abriram seu código e começaram a fazer experiências. 

Cap. 9 – Da natureza críptica e classificada dessas experiências, o que impede recontá-las. 

Cap. 10 – De como uma potência oriental enviou uma força-relâmpago de mercenários ninja high-tech que varreu as defesas do bunker, dinamitou  e invadiu um túnel, apossou-se da ala de laboratórios, mas acabou detonando uma armadilha eletrônica que mandou o bunker inteiro com mais de seiscentas pessoas pelos ares, e quando o fogaréu amainou, dias depois, Lizzie Reptoid estava parada no meio da desolação, com seus cabelos desgrenhados, sua boca impudente, suja de fumaça, de sangue e de poeira, e com dois dragõezinhos pousados nos seus ombros.  

domingo, 19 de agosto de 2012

2954) A arte de ver (19.8.2012)



(foto: Roberto Kusterle)


Estar virado na direção certa no momento certo. A visão é limitada, é uma escolha.  Se tivéssemos visão em 360 graus à nossa volta, como talvez alguma medusa aquática jupiteriana seja capaz de ter, então os pontos de referência seriam outros. Não sendo assim, como provavelmente não será, é preciso optar a cada segundo de uma história, como uma galinha nervosa que quer fotografar tudo primeiro com um olho, depois com o outro. O que fazer? Olhar a rua pela janela, ou olhar para o número que alguém disca no telefone? Olhar pelo retrovisor para saber afinal de contas o que diabo esse maluco está tentando fazer, ou olhar para o ônibus colado meio metro à frente, prontinho para ser ultrapassado?  “Antes mesmo de ver, preciso decidir em que direção quero ver”.  Saber o que ver em seguida. 

O enquadramento, a maneira automatizada, invisível, de escolher o que olhar.  Comparar a trêmula imagem na câmara escura da mente e a elusiva imagem na chapa de vidro. Onde foi que não vi direito?  Onde foi que vi, mas não notei?  O que vi agora confere com o que eu, ou alguém, tinha visto antes?  Esse detalhe que parece tão típico não será igual a este outro, cultivado por aquele outro grupo?  A mente registrando e fatiando tudo como uma guilhotina horizontal e velocíssima, tomografia instantânea.  Quem está enxergando a curva, pensou ele, percebe claramente quando um ponto qualquer destoa dela.

Quem sabe o Mal que se oculta no coração humano, além do Mal?  O Sombra, o grande herói pulp de Maxwell Grant, também sabe, mas o Século da Psicologia (certamente o século 20 foi o melhor de todos para essa ciência) abriu esse interessante território para a literatura sobre crime. O baú de Psiquê. Tudo ver significa tudo pressentir, tudo deduzir, tudo percorrer, tudo investigar, duvidar de tudo e em quase tudo meio que acreditar. Tentar ver tudo por todos os ângulos, mas não se deixar enganar quando tiver que de fato ver e decidir.

Também não é ver apenas o que está presente e diante.  É ver no sentido de ter visto tudo, ter registrado tudo, fotografado e indexado tudo.  Ver é registrar.  Ver é guardar o visto na memória, ou, com a ajuda de alguma engenhoca técnica, no imprevisível futuro. Imagine-se uma mente capaz de ver – de colocar lado a lado e comparar – todas as imagens do monte Kilimanjaro. Com um programa de busca adequado e processamento bastante, seria possível criar uma nova imagem, inédita, mas que a todos pareceria “a que tinham visto no cinema há ‘x’ anos”. Não perceberiam jamais uma manipulação, mesmo simples como a que foi feita. Meia dúzia de jornalistas percebe isso, e estranha, mas fica tudo por isso mesmo.



sexta-feira, 17 de agosto de 2012

2953) A Casa da Colina (18.8.2012)





Onde os escritores vão buscar suas idéias? Às vezes, com perdão do clichê, são as idéias que os procuram. 

Shirley Jackson (1916-1965) conta, num ensaio de 1958,  que decidiu escrever um romance sobre fenômenos parapsicológicos, e, “como tantas vezes ocorre, assim que eu comecei a pensar em fantasmas e casas assombradas todo tipo de coisa começou a chamar minha atenção, ou talvez eu estivesse tão concentrada no livro que tudo que eu via adquiria relação com ele”. 

Ela conta que viajou com o marido a Nova York e numa parada de superfície do metrô avistou um prédio, “escuro e horrível no crepúsculo”, e de aparência tão desagradável que não conseguiu tirar os olhos dele. Isso estragou seu passeio, porque toda noite ela tinha um pesadelo com o prédio. 

Quando voltou para casa, ela escreveu a um amigo de NY e pediu-lhe que se informasse a respeito dele. O amigo respondeu que teve dificuldade em localizar o prédio, porque ele só podia ser visto da parada do metrô. Tinha sido destruído por um incêndio, no qual morreram nove pessoas, e seus três outros lados eram meras “cascas” arruinadas. E era considerado assombrado, na vizinhança.

Jackson continuou a ler e pesquisar sobre fantasmas, e encontrou numa revista a foto de uma casa que lhe pareceu equivalente ao prédio de Nova York. Tinha o mesmo ar doentio e decadente. A única informação sobre a casa era o nome da cidade onde ficava, na Califórnia. 

Ela escreveu à mãe, que vivia naquele Estado, para que procurasse alguma pista da casa. A mãe lhe respondeu, surpresa. Sim, ela conhecia aquela casa; tinha sido construída pelo próprio bisavô de Shirley Jackson. Depois de ficar abandonada durante anos, tinha sido destruída por um incêndio, e a crença geral é que tinha sido propositalmente incendiada pelos moradores da cidade.

Dias depois, Jackson achou em sua escrivaninha um papel, com sua caligrafia, onde estava escrito: “Dead Dead” (morto, morto). Não se lembrava de ter escrito aquilo, mas achou que era mais um sinal. 

O livro dela foi publicado no ano seguinte, com o título de  The Haunting of Hill House (1959). É um clássico do romance de terror, que foi filmado por Robert Wise como Desafio ao além (1963; é o filme de terror preferido de Martin Scorsese) e por Jan de Bont como A Casa Amaldiçoada (1999, com Liam Neeson e Catherine Zeta-Jones). 

E dá uma resposta (parcial) à pergunta sobre de onde vêm as idéias. Às vezes o escritor está casualmente na “linha de fogo” entre alguma coisa que existe em sua memória inconsciente e alguma coisa com que ele se depara no mundo exterior. Acontece um relâmpago ligando essas duas coisas, e o livro é a foto desse relâmpago.






2952) Literaturas leves (17.8.2012)




Existem formas pesadas e formas leves de literatura. Entre as formas pesadas estão o romance e, talvez surpreendentemente, o conto, que à primeira vista pareceria ser leve, pelo mero fator do tamanho.  Mas ambas são igualmente pesadas pelo grau de intensidade que requerem: criação de ambientes, de personagens, de trama, etc.  Um romance pode ser mais “pesado” do que um conto, mas uma página de um e uma página de outro devem ter o mesmo peso.

Existem formas leves que não necessitam de tanta imaginação e elaboração, pedem apenas cultura, estilo, sensibilidade.  Muita gente pode não achar que uma carta, uma mera carta pessoal dirigida a um amigo, possa ser uma obra literária.  As cartas publicadas de muitos grandes escritores contradizem de certo modo essa expectativa.  As cartas de H. P. Lovecraft e de Raymond Chandler são, em alguns aspectos, superiores à obra de ficção que produziram. Cartas são literatura de não-ficção, tal como os Diários, outra forma de literatura leve que foi brilhantemente cultivada por muitos romancistas.  Há mesmo autores que se celebrizaram pelos Diários que escreveram, e que em alguns casos foi tudo que publicaram.  Diários como os de Anne Frank, Anaïs Nin e outros são obras que acabam tendo um alcance muito superior ao de muitas obras de ficção.

As memórias e autobiografias são uma extensão disso. São gêneros leves, porque dispensam a criação de enredos e de personagens, e têm valor apenas pelo poder de observação do autor, pelo interesse que possa ter o seu estilo, e pelas que suas digressões e reflexões possam ter de enriquecedor.  Nunca li um romance inteiro de Simone de Beauvoir, mas a considero uma grande escritora apenas pela sua meia dúzia de volumes de memórias.

Ainda mais leve do que estes parece ser a crônica, e eu diria que a diferença entre escrever um conto e escrever uma crônica é da mesma natureza que a diferença entre cantar e cantarolar.  O conto requer mais esforço imaginativo e mais intensidade de expressão, mais intenção criadora; a crônica é mais superficial (no bom sentido), informal, descontraída. Claro que existem mil gradações entre uma coisa e a outra, e são essas mínimas diferenças de ênfase que nos fazem tantas vezes ficar sem saber se um texto pertence a um ou ao outro grupo. A crônica tanto pode ser um conto onde não há história, somente reflexões e digressões, como também pode ser um conto onde há somente a história reduzida ao meramente narrativo, sem maior elaboração, sem reflexão alguma.  O conto é como uma canção cantada num palco num show que cobra ingresso; uma crônica é como uma canção cantarolada entre amigos.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

2951) "Sem Limites" (16.8.2012)





Este filme de Neil Burger (“Limitless”, 2011) é considerado um filme de ação e aventura, mas nada nos custa considerá-lo ficção científica, uma vez que ele traz uma nova versão de um tema antigo no gênero: a droga miraculosa que aumenta a inteligência das pessoas que a tomam, e encurta sua vida drasticamente. Edward Morra é um escritor boêmio, cabeludo, que vive no apartamentozinho infecto de todos os escritores, e está há meses sem conseguir escrever uma linha sequer do romance pelo qual a editora lhe deu um bom adiantamento (que ele já gastou por inteiro). Num encontro casual, um amigo lhe dá para experimentar uma droga “em período de testes, ainda fora do mercado” que acelera incrivelmente a inteligência. O amigo é assassinado e o acaso deixa nas mãos de Edward um frasco inteiro de comprimidos, dos quais ele se vale para tornar-se em poucas semanas um operador milionário da Bolsa e meter-se com gangsters e plutocratas de todo tipo. 

Segue-se uma previsível história de chantagens, ameaças, perseguições e assassinatos, sem os quais o cinema norte-americano não consegue preencher a hora-e-meia necessária a um filme.  As cenas em que o protagonista está sob o efeito da droga são as mais envolventes, porque parece que a equipe inteira tomou uma pílula e o que vemos é um uso acelerado e instável de efeitos especiais, acompanhando a rapidez mental e a desorientação características de quem está sob efeito de uma substância aceleradora.  O roteiro tem boas sacadas mas vê-se obrigado a cumprir certos rituais obrigatórios no cinema de hoje (o escape no último segundo, a luta desigual vencida pelo “artista”, etc.). 

O melhor filme de Neil Burger é O Ilusionista, com Edward Norton no papel de um mágico de palco no século 19. Ali, a narrativa e a ambientação criavam um clima fantasmagórico onde nada parecia real. Em Sem Limites (e no romance que lhe deu origem, The Dark Fields, de Alan Glynn) temos de volta dois dos principais temas da FC dos últimos 30 anos: 1) drogas aumentadoras de inteligência; 2) indivíduos com a capacidade quase sobrenatural de absorver quantidades gigantescas de dados e discernir padrões que os outros não percebem. A literatura cyberpunk se fundamenta nessa inteligência tecnologicamente otimizada. Ao que parece, o homem do século 20 será definido por essas duas características, tal a obsessividade com que a literatura e o cinema vêm inculcando no público a consciência desse fenômeno. Quando a massa de informações disponíveis torna-se absurdamente grande, quem não for capaz de ver as coisas como Edward Morra sob o efeito do NZT-48 será equivalente a um cego, ou um analfabeto, no mundo de hoje. 

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

2950) O mundo às avessas (15.8.2012)




O quadro O Encontro dos Sábios (The Rendez-vous of the Scholars) de Davis Hart, o misterioso pintor britânico falecido precocemente aos 38 anos, está exposto desde 1921 no palácio de Hartford, no Surrey, o próprio local onde foi pintado a pedido do Duque de Hartford, amigo pessoal do artista. 

O quadro ocupa a parede dos fundos de um salão retangular que mede 20 metros de comprimento por 6 de largura; o quadro em si mede 4,80 de largura por 2 de altura. 

O visitante cruza uma porta na extremidade oposta e caminha para o quadro, passando por paredes onde se veem apenas discretas tapeçarias e um ou outro espelho. 

Visto à distância, o quadro mostra um salão semelhante àquele, mas cheio de mesas, estantes, escrivaninhas, onde nove homens, divididos em grupos de três, conversam. Vestem-se à maneira do final do séc. 19.  Ao chegar à metade do salão, o espectador começa a perceber detalhes. 

A cena do quadro é um fim da tarde, ao crepúsculo. No céu, através da janela,vê-se uma lua em quarto minguante, mas a banda iluminada da lua aparece voltada para o lado oposto àquele em que o sol está se pondo.  

Um dos sábios está parado junto a uma retorta, mas de perto vê-se que um dos seus pés está totalmente virado para trás.  Outras minúcias tornam-se visíveis quanto mais perto estiver o espectador. Os pés de uma escrivaninha não tocam o chão. Um compasso aberto sobre a mesa tem como uma de suas pernas uma pequena luneta.  

Há contradições de vestuário que os especialistas apontam de imediato; um jarro reúne flores que só brotam em épocas distintas do ano; os reflexos nas superfícies polidas do cenário não correspondem às pessoas em volta. O que a dez metros parece uma esfera armilar torna-se um astrolábio a cinco. O que a cinco metros parece uma lareira torna-se a três metros uma tapeçaria representando um arco do triunfo. Rostos sérios viram máscaras de arlequim quando se dá um passo à frente (e desviram, com um passo atrás).  

Quando se atinge a distância crucial de um metro da tela, há um limiar óptico que faz tudo aquilo entrar em torvelinho, mover-se a cada movimento das pupilas; como num quadro de Arcimboldo, fervilham na composição das formas maiores uma multitude de formas menores e insuspeitas. 

O tecido de uma capa é um jardim, a pele de um rosto é uma página manuscrita, o mostrador do relógio é uma constelação, uma taça de vinho é um corcel rampante, um chapéu coco é um observatório astronômico, e na caligrafia florida em que há pouco líamos no canto inferior o nome de David Hart surge a misteriosa assinatura, “Tiago Henrique, Campina Grande, 2012”.




terça-feira, 14 de agosto de 2012

2949) O futebol olímpico (14.8.2012)




E mais uma vez a medalha de ouro olímpica passou quicando entre as pernas dos nossos craques do futebol e caiu no ralo do esgoto.  Esta, aliás, é uma metáfora de muito mau gosto, e muito mal educada. Na verdade, a medalha de ouro foi para um destino muito melhor: como acontece com as medalhas de ouro, foi para quem soube merecê-la e lutar por ela.  O Brasil, mais uma vez não soube. A derrota para o México no jogo final surpreendeu muita gente, menos eu. Nunca botei fé nessa seleção, a mais fraca que vi nas Olimpíadas mais recentes. Vi quatro dos jogos anteriores à decisão, e em momento algum senti firmeza. Um time que tem que se desdobrar para ganhar de 3x2 de uma Honduras com dez jogadores? Fala sério. Esse jogo tinha sido um alerta, mas o injusto e desproporcional 3x0 na Coréia deve ter tranquilizado a Comissão Técnica, a CBF e a imprensa ôba-ôba. Eu mesmo não.

Nosso time tem três jogadores de Seleção: Thiago Silva, Marcelo e Neymar. (Todos têm defeitos, mas paciência, estamos em entressafra.) Tem quatro promessas: Leandro Damião, Oscar, Lucas e Paulo Henrique Ganso (a dúvida quanto a este é mais pela fragilidade física atual.)  Um jogador badalado como Alexandre Pato nunca me convenceu.  Hulk é uma promessa, mas vi-o jogar poucas vezes, e como é meu conterrâneo tenho a tendência de valorizar tudo que faz, sou suspeito. Mas as apresentações coletivas do time foram sempre atabalhoadas, misturando estrelismo, imaturidade emocional, e em muitos momentos uma deficiência técnica assustadora. Não gostei. Medalha pro México, que soube jogar e mereceu ganhar. Para nossos meninos, prata está até sobrando.

Os times de vôlei ganharam todo tipo de medalhas, e mesmo quando a gente fica chorando resultados específicos (como as decisões em que estávamos com o jogo na mão e deixamos virar), paciência, o jogo é assim, e quando somos nós que viramos achamos tudo muito normal. O vôlei olímpico está sempre nivelado pelo alto em meia dúzia de equipes, e é apenas a nossa carência afetiva que nos faz pensar que temos a obrigação de ser sempre os melhores.  Nos últimos vinte anos, estamos no lucro, e não temos o que reclamar dos atletas.

Ainda não sabemos administrar o nosso esporte. Quando dá resultado, o esporte vira um cabide de emprego e de negócios escusos, e quando conseguimos investimentos da iniciativa privada é sob a forma de contratos de propaganda cuja contrapartida é uma maratona de coquetéis, eventos, filmagens, badalações e negociatas que acaba virando a cabeça dos nossos atletas jovens que de uma hora para outra pensam que são craques (e não são) e que estão milionários (e não estão).

domingo, 12 de agosto de 2012

2948) Arte e entretenimento (12.8.2012)


Em seu livro Popular Fiction 100 Years Ago (1957), Margaret Dalziel chama de literatura popular “os livros e revistas que são lidos puramente por prazer por pessoas para as quais este prazer é incompatível com o dispêndio de esforço intelectual ou emocional.”  É o tipo de leitura praticado, p. ex., pelas mocinhas que leem revistas Bianca ou Sabrina.  

O livro de Dalziel é um estudo sociológico, de modo que existe um viés para dar um caráter de classe a essa definição, mas todo mundo lê assim em algum momento. Até intelectuais como Antonio Cândido ou Harold Bloom pegam de vez em quando um livrinho bobo para ler sem analisar, ler pelo prazer de ler, como aqueles craques internacionais que nas férias vão jogar futevôlei na praia. 

A mesma pessoa pode ler Proust ou Beckett com esforço intelectual durante o dia, e de noite, após o jantar, ler uma aventura de Tarzan. Não há uma divisão tão nítida entre quem só lê isto e quem só lê aquilo.

O entretenimento, nestes termos, é uma atividade mental (ler, ouvir música, assistir um filme ou espetáculo) praticada por quem passou o dia numa concentração mental intensa, ou executando tarefas repetitivas, e quer continuar pensando, quer uma experiência mental variada, movimentada, mas sem compromisso. 

“Sem compromisso” significa que não é necessário conduzir nenhum processo até o final caso ele exija muito esforço. A leitura por entretenimento raramente requer que um trecho seja lido duas vezes para ser compreendido. O entretenimento se dá na esfera do já conhecido, e mesmo quando o leitor (erudito ou não) está buscando o novo, isto em geral acaba sendo com “um pouco mais daquilo mesmo”.  Sua expectativa é por uma combinação nova de elementos já familiares, ou pela presença de elementos novos numa estrutura que ele sabe prever (como no romance detetivesco).

Há outro tipo de entretenimento, no entanto: o das pessoas que não estão mentalmente cansadas, não precisam relaxar do trabalho. Na verdade, são pessoas desacostumadas a esse tipo de esforço. São pessoas que têm boa educação, bom poder aquisitivo, mas têm a vida voltada apenas para o lazer e a diversão. Fazer esforço mental diante de um livro ou um filme, para elas, é tão incômodo quanto trabalhar – uma atividade plebéia que nunca precisaram nem precisarão exercer, uma atividade que eles deixam “para os criados”. 

Esse grupo de gente abastada gosta muito, por exemplo, de ironizar os eruditos e de ridicularizar os artistas de vanguarda. Para esse grupo, a arte não deve servir para nada além da diversão e do lazer dos que já têm dinheiro e por isso não querem ser induzidos a qualquer atividade intelectual.