sábado, 23 de março de 2019

4449) A arte da glosa (23.3.2019)



Glosava-se à vontade nos salões do tempo de Machado de Assis, como ele próprio registrou. Pode não ter sido uma moda tão avassaladora quanto a do soneto, ou tão cortesã quanto o álbum de autógrafos literários. Não importa: foi moda, praticou-se, havia naqueles salões e naqueles saraus provavelmente muita gente capaz de saber o que era um mote, gente capaz de perceber se os versos estavam na ordem correta ou não.

Grande parte do “barato” produzido pelo ato de glosar só ocorre quando se está diante de uma platéia que sabe a ordem (obrigatória, com poucas variantes) em que as rimas devem aparecer.

Glosar para uma platéia de leigos é como tocar piano para uma platéia de surdos.

No meu livro Cantoria: Regras e Estilos (Ed. Bagaço, Recife, 2016) dou exemplos de personagens de Machado de Assis glosando motes como qualquer poeta de hoje, nos bares de São José do Egito ou de Campina Grande.

Um exemplo está no conto “Um erradio” (Páginas Recolhidas, 1899).

Nesse conto, um grupo de jovens estudantes está em casa quando chega Elisiário, um amigo mais velho da turma, que traja uma enorme “opa”, ou capote. Surge o diálogo:

-- Aí vem a opa do Elisiário.

-- Entre a opa só.

-- Não, a opa não pode; entre só o Elisiário, mas primeiro há de glosar um mote.  Quem dá o mote?

Ninguém dava o mote.  (...) 

-- Lá vai mote, disse afinal um dos rapazes, e recitou:

Podia embrulhar o mundo
a opa do Elisiário.

Parado à porta, o homem cerrou os olhos por alguns instantes, abriu-os, passou pela testa o lenço que trazia fechado na mão, em forma de bolo, e recitou uma glosa de improviso.  Rimo-nos muito; eu, que não tinha idéia do que era improviso, cuidei a princípio que a composição era velha.

Machado tirou o corpo de banda e não glosou o mote que ele mesmo havia proposto. Decidi preencher essa lacuna imperdoável na literatura brasileira, e produzi estas três, comentando o episódio:

Musa, permite que eu cante
o porte de um brasileiro
boêmio cum cavalheiro
maltrapilho e elegante!
Ei-lo que chega, galante,
com traje extraordinário:
opa de milionário
e terno de vagabundo.
Podia embrulhar o mundo
a opa do Elisiário.

É um poeta erradio
que faz sonetos à Lua,
quando pára em cada rua
dos velhos bairros do Rio.
Sua opa (eu desconfio)
recobre todo o cenário:
prédio, igreja, campanário,
terra vasta e mar profundo...
Podia embrulhar o mundo
a opa do Elisiário.

Fiquei, confesso, assustado,
quando ouvi falar em opa...
Será um chapéu sem copa,
um capote avantajado?
Despistei, e disfarçado
olhei no dicionário;
e a peça do vestuário
confirmei em um segundo...
Podia embrulhar o mundo
a opa do Elisiário.



Podemos dizer que historicamente o hábito da glosa vem de longe, vem dos ibéricos, e durou até a chegada triunfal do soneto, na segunda metade do século 19.

Gregório de Matos, no século 17, foi o nosso primeiro glosador a adquirir renome, e certamente um dos melhores até hoje. Glosava (ao que se diz) por escrito, refletidamente, e também no calor do improviso e ao som da viola.

No tempo de Machado, conforme os exemplos citados, vê-se que a glosa era uma distração culta nos saraus pós-ceia das famílias de classe média, tal como o hábito de botar as mocinhas para tocar piano ou os rapazes para recitar sonetos. E era uma diversão descontraída de estudantes, de jornalistas, de jovens em geral que tinham alguma veleidade literária, algum estudo.

Surgia algum fato pitoresco? Alguém propunha um mote, e alguém glosava de improviso.

E nem sempre é de improviso. Nem precisa ser.

Um aspecto que a gente não deve esquecer na arte da glosa é a existência dos “motes engenhosos”, que a turma de hoje poderia chamar “mote cabeça”. Porque exige muito pensamento e muita elucubração.

Não são motes para a gente glosar de improviso, em cima da bucha. São motes para ouvir, copiar num papelucho, guardar no bolso, ficar matutando, depois pegar um caderno, uma caneta, anotar algumas rimas, fazer as primeiras tentativas, e depois sair dali com uma glosa que seja uma “resposta” adequada para o mote.


Um bom exemplo de mote-cabeça é um mote famoso glosado por Lourival Batista, o “Louro do Pajeú”. É um desses motes abstratos, que podem significar qualquer coisa, desde que a gente saiba encaixá-los num contexto compreensível. Deram para Louro:

A parte que iluminou.

Que parte? Do quê? Iluminou quem, e como? Não se sabe. É o poeta que vai ter de inventar um contexto onde essa frase se encaixe de maneira lógica. E Louro glosou assim:

Do gosto para o desgosto
o quadro é bem diferente:
ser moço é ser sol nascente,
ser velho é ser um sol-posto.
Pelas rugas do meu rosto
o que eu fui, hoje não sou,
ontem estive, hoje não estou,
que o sol ao nascer fulgura,
mas ao se pôr deixa escura
a parte que iluminou.

Vê-se que toda a estrofe foi “deduzida” a partir da imagem visual sugerida pelo mote, imagem de algo parcialmente iluminado. Podia ser um cachorro, uma cadeira, uma ponte; Louro imaginou a Terra, parcialmente iluminada pelo sol, e daí desenvolveu a idéia de comparar a mocidade com a luz e a velhice com a escuridão.

Esse verso foi improvisado, no ímpeto de um baião de viola em pé de parede? Pode até ter sido, mas eu o vejo mais como aqueles motes “de algibeira” que a gente dá para um amigo e fala: “Tu não diz que é bom? Leva esse aí pra casa”. E o cara fica na obrigação moral de trazer pelo menos uma glosa no dia seguinte.