quarta-feira, 10 de agosto de 2016

4145) A arte de intitular um livro (10.8.2016)



Dar título a um livro é como dar nome a uma pessoa, com a diferença de que os nomes de pessoa são geralmente escolhidos dentro de um repertório já existente.  Mesmo com a tendência brasileira para inventar nomes exóticos (Wandergleyson, Carlúcia, Keirrison, Francicleide) a maioria dos nomes vem desse dicionário coletivo. 

Já o nome de um livro tem que ser inventado pelo autor e precisa refletir de algum modo o conteúdo da obra, intensificando-o, comentando-o, fazendo uma alusão, etc. 

Jacques Derrida disse que “um título é sempre uma promessa”, e eu completaria observando que muitas vezes o leitor nem sabe direito o que lhe está sendo prometido, mas fica disposto a pagar para ver. Um editor, desses bem pragmáticos, diria que um título é sempre uma isca.

Ao intitular um livro, o autor é um pouco como um publicitário.  Ele sabe que precisa dar ao editor, ao livreiro e ao leitor (nesta ordem) uma idéia clara do que é a obra, para evitar mal-entendidos.  Por outro lado, ele obedece também a um impulso que lhe diz para ser diferente, inesperado, a fim de que seu título não seja demasiado feijão-com-arroz e passe a imagem de autor pouco criativo. 

Livros práticos precisam ter títulos objetivos.  Se vemos numa lista livros intitulados Manual Prático de Carpintaria, História da Revolução Francesa, Dicionário de Artes Gráficas, etc., nossa tendência é deduzir que o conteúdo corresponde exatamente ao que foi anunciado.

A situação se complica quando obras puramente literárias imitam esses títulos, como fizeram Jorge Luís Borges na sua História Universal da Infâmia ou Richard Brautigan em A Pesca da Truta na América, que são obras de ficção, ou Manoel de Barros com seus livros de poesia intitulados Compêndio para Uso dos Pássaros ou Gramática Expositiva do Chão.  A estranheza no conteúdo já é discretamente anunciada no título, mas muitas vezes essas obras vão parar na estante errada da livraria.

Antigamente, os títulos eram muito mais longos e explícitos do que hoje.  O primeiro livro impresso no Brasil intitulava-se (na grafia da época) Relação da Entrada que fez o Excelentíssimo, e Reverendíssimo Senhor D. Fr. Antonio do Desterro Malheyro, Bispo do Rio de Janeiro, em o primeiro dia deste presente Anno de 1747, havendo sido seis Annos Bispo do Reyno de Angola, donde por nomiação de sua Magestade, e Bulla Pontificia, foy promovido para esta Diocesi.  É um desses títulos que quase tornam supérflua a leitura da obra.

Uma vez, numa mesa de bar, surgiu uma aposta para ver quem achava o título mais curto da literatura brasileira. Todo mundo já ia fechando questão no Eu de Augusto dos Anjos quando alguém lembrou o É... de Millôr Fernandes, que mesmo sendo uma peça teatral ganhou o prêmio (uma rodada de cerveja bebida em sua honra.)

Um título muito esquisito pode ser um sinal de que o conteúdo é mais esquisito ainda.  Se o leitor freqüenta sebos, procure as seguintes raridades, e veja se não tenho razão:

Os Morcegos Estão Comendo os Mamãos Maduros de Gramiro de Matos

729 o Varal Biográfico Embananado de Leopoldo Lima

Uma Vitória Dentro de uma Derrota que não tive: esta Derrota foi a Vitória do meu Livro de José Américo II

Ufa, Ufo! Tem um Disco Voador na Minha Radiola de Max de Figueiredo Portes. 

A literatura de gênero promete (e seus títulos frequentemente refletem isto) a repetição de uma experiência estética, com um mínimo de variação e uma larga base de familiaridade. 

Os livros de Edward S. Aarons sobre Sam Durell, um agente da CIA, têm todos este formato de título: Missão Budapeste, Missão Stella Marni, Missão Lili Lamaris, Missão Ankara... 

Erle Stanley Gardner criou o advogado-detetive Perry Mason, cujas obras obedecem a um mesmo padrão de títulos: O Caso da Lata Vazia, O Caso do Relógio Enterrado, O Caso das Garras de Veludo, etc.  No original em inglês, alguns livros da série usavam o gimmick adicional de repetir a letra inicial das palavras principal do título: The Case of the Borrowed Brunette, The Case of de Grinning Gorilla, The Case of the Spurious Spinster, e assim por diante.

Às vezes, curiosamente, o truque da repetição não vem da obra original, e sim da tradução. Os romances de espionagem da escocesa Helen MacInnes The Salzburg Connection, The Venetian Affair, North from Rome etc. receberam no Brasil os títulos Aconteceu em Salzburg, Aconteceu em Veneza, Aconteceu em Roma e assim por diante. É uma decisão editorial que procura faturar em cima dos livros de maior sucesso da autora, dando-lhes um sentido de “série” mais marcado do que no original.

Títulos assim garantem ao leitor a experiência do “um pouco mais daquilo mesmo”, que é justamente o que ele procura. E, do ponto de vista mercadológico, fornecem aquilo que todo vendedor sonha: uma mercadoria que pode ser identificada numa fração de segundo.

A literatura contemporânea tem valorizado títulos em frases longas, que parecem estar ali por acaso: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios de Marçal Aquino, Agora fiquem esperando pelo ano passado de Philip K. Dick, A partir de amanhã eu juro que a vida vai ser agora de Gregório Duvivier, E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto de Rubem Fonseca, Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, de David Foster Wallace.

Muitas vezes uma única palavra, uma palavra nova, desconhecida, basta para produzir um título cheio de alusões, de mistério, de atração e de promessa.  Neuromancer de William Gibson; Avalovara de Osman Lins; Valis de Philip K. Dick; PanAmérica de José Agrippino de Paula, etc.  Um título assim tem a vantagem adicional de fazer com que essa palavra emblemática fique para sempre associada ao autor que a inventou ou que primeiro lhe deu visibilidade. 

Muitos livros hoje famosos por um triz não receberam títulos completamente diferentes dos que se consagraram:

O Mundo Cheio de Penas de Graciliano Ramos (Vidas Secas)
Under the Red, White and Blue de F. Scott Fitzgerald (The Great Gatsby)
O Vento e o Tempo de Érico Verissimo (O Tempo e o Vento)
The Dead Un-Dead de Bram Stoker (Dracula)
Melancholia de Jean-Paul Sartre (La Nausée)
The Kingdom by the Sea de Vladimir Nabokov (Lolita)
Mandala de Julio Cortázar (Rayuela)
The Last Man in Europe de George Orwell (1984)
Contos de Guimarães Rosa (Sagarana)
First Impressions de Jane Austen (Pride and Prejudice)
Tomorrow is Another Day de Margaret Mitchell (Gone With the Wind)

Há sempre uma discussão (ociosa, mas interessante) sobre a questão de como teria sido a recepção inicial do livro com o título que foi descartado. Em alguns casos, uma recepção indiferente poderia ter condenado o livro a uma carreira muito diversa da que de fato teve.