terça-feira, 21 de novembro de 2023

5004) "Bodies": uma guerra no tempo (21.11.2023)



 
Corpos (“Bodies”, de Paul Tomalin) é uma série de ficção científica em streaming pelo Netflix, adaptação da graphic novel do mesmo nome escrita por Si Spencer.
 
É uma história policial de viagem no tempo, e transcorre em Londres, em quatro épocas diferentes, mostrando o repetido aparecimento do mesmo cadáver, no mesmo local (um homem nu, com marcas estranhas no corpo). O mistério é investigado por quatro detetives: Alfred Hillingshead em 1890, Charles Whiteman em 1941, Shahara Hasan em 2023 e Iris Maplewood em 2053. 
 
Não assisto muitas séries de FC, e devo estar perdendo muita coisa boa que há por aí. Em todo caso, esta aqui é muito bem escrita e dirigida, e em seus 8 episódios chega a uma conclusão satisfatória. Espero que não haja continuação (as continuações são quase sempre um trajeto ladeira abaixo.) 
 
Bodies tem o clima de paranóia dos thrillers de perseguição-e-fuga de Philip K. Dick: cada pessoa, por mais inocente que pareça, pode ser um agente plantado ali pela Conspiração para intervir no momento adequado. Ninguém é casual. Todo mundo está ali com “uma agenda secreta”, com segundas intenções. E da mesma forma todo mundo pode ser o “agente salvador”: um transeunte aleatório, o porteiro do prédio, o frentista do posto, qualquer um deles pode ser a pessoa que agarra o herói pelo braço na hora do perigo e diz algo na linha do clássico “Vem comigo, explico depois”. 



(Amaka Okafor como "Shahara Hasan")


Esse clima de paranóia é aliás uma das características da obra de P. K. Dick e é um sintoma neurótico da Guerra Fria, período em que Dick surgiu como escritor. A paranóia absurda e alucinada em que ele viveu parte dos seus últimos anos se deve a isso: ele tinha fantasias de que estava sendo espionado pelo FBI, e chegou a delatar Stanislaw Lem (o polonês autor de Solaris, e um dos seus grandes admiradores) como agente comunista. O medo do comunismo durante a Guerra Fria gerou (na literatura inclusive) essa situação mental de que “Ninguém é inocente, ninguém é o que parece ser, todo mundo está fingindo, todo mundo é perigoso”. E os thrillers de FC recentes bebem dessa fonte, direta ou indiretamente: O Homem do Castelo Alto, Severance, Black Mirror, Dark, etc. 
 
A série alemã Dark, com seu roteiro complexo e (em geral) bem amarrado, ajudou a fixar certos marcos, pontos de referências, recursos que irão servir a outros dramaturgos. Pessoas que transitam de um século para outro, num desenho complexo de perseguições e assassinatos, acabam se incorporando ao repertório do público e viram um instrumento dramatúrgico, prático, rápido, fácil de usar. 



 
Outro elemento presente em filmes/séries recentes é, curiosamente, o fato de que a “máquina do tempo” está em desuso. A máquina vitoriana do filme de George Pal, a Tardis usada pelo Dr. Who, o carro de De Volta Para o Futuro... Agora, a viagem no tempo se dá através de “singularidades” fixas; locais, portais não-portáteis. Podem estar no interior de uma caverna (Dark), num subterrâneo artificial (Ministério do Tempo, Bodies), mas em todo caso são lugares imóveis, a que o personagem precisa ter acesso, para viajar.   

Num certo sentido, isso me parece mais cientificamente plausível do que o “automóvel do tempo”, que o passageiro pode pilotar na direção que bem entender. E há precursores, é claro, desde a velha série Túnel do Tempo.
 
Outro elemento que reaparece aqui é a multiplicação dos corpos idênticos da mesma pessoa, reiteradamente morta: efeito semelhante ao de The Prestige (livro de Christopher Priest, filme de Christopher Nolan).



 
Em muita dessas narrativas de viagens no Tempo,uma parte crucial do enredo lida com um evento específico (o nascimento ou a morte de uma pessoa; o deflagrar de uma guerra; uma descoberta científica fundamental, etc.) que um grupo de pessoas tenta evitar que aconteça, e outro grupo se dedica a garantir que aconteça. Mudar ou preservar o rumo da História. 
 
A narrativa de Bodies tem quatro linhas de enredo (1890, 1941, 2023 e 2053) e consegue não misturá-las. É uma verdadeira proeza de malabarismo, mas a série consegue isto, mediante quatro direções-de-arte reproduzindo épocas diferentes, com diferentes paletas de cores, vestuário, ruídos e música de fundo, etc.) de tal modo que o espectador nunca se perde. (Eu pelo menos, que sou danado para confundir essas narrativas intercaladas, não me perdi.) 
 
Há momento inclusive em que a câmera, com enquadramentos sutis, parece sugerir que personagens de dois tempos diferentes estão olhando interrogativamente um para o outro, como se se avistassem por cima do “abismo do tempo”. E os detetives (Hillinghead, Whiteman, Shahara Hasan, Iris Maplewood) vão descobrindo e revelando peças do quebra-cabeças, de modo que o mistério vai sendo atacado e elucidado em quatro flancos, ao mesmo tempo. 



(Jacob Fortune-Lloyd como "Charles Whiteman")
 

Na novela gráfica original, o autor Si Spencer obteve esse efeito fazendo com que cada uma das linhas temporais fosse desenhada por um artista diferente: Dean Ormston, Phil Winslade, Meghan Hetrick e Tula Lotay. 
 
Há uma certa repetição de temas na prefiguração de uma Inglaterra sob regime autoritário. Todas essas narrativas de elites despóticas regendo Londres com mão de ferro (e aqui incluo até V de Vingança, Children of Men, etc. ) devem muito ao 1984 de George Orwell.  Mesmo quando tecem variantes demonstram estar partindo dessa premissa tão culturalmente próxima aos ingleses. Daí que as distopias britânicas de J. G. Ballard (High Rise, Crash, etc.) dão um salto de originalidade, porque a brutalidade não emerge de um governo totalitário, mas vem de baixo para cima, da população mais abastada. 
 
A série (a maioria das séries atuais) recoloca, em seus termos, a questão das influências, referências, citações explícitas, homenagens. Todo mundo está se queixando, atualmente, de que as “Inteligências Artificiais (IAs)” reciclam obras alheias o tempo inteiro sem citar a fonte. Bem – nossas inteligências biológicas fazem a mesma coisa há séculos. A única diferença é que as IAs têm a seu serviço todo o sistema de acesso a “Big Data” (quantidade massacrante de informações), rapidez de processamento e de compartilhamento. 
 
Em Bodies vi referências a O Exterminador do Futuro (James Cameron, 1980), O Vingador do Futuro (Paul Verhoeven, 1990), O Bebê de Rosemary (Roman Polanski, 1968), Fundação (Isaac Asimov, 1940+), O Homem do Castelo Alto (Frank Spotnitz, 2015-2019) e por aí vai. A dramaturgia de gênero (livros, filmes, séries, quadrinhos, etc.) canibaliza-se a si mesmo o tempo inteiro, sem muita cerimônia. Ressalvados os casos de plágio com visível má fé e sem qualquer contribuição criativa, os autores sabem, implicitamente, estar contribuindo para um gigantesco banco-de-dados onde outros autores, iguais a eles próprios, irão um dia recolher velhas idéias para novas histórias. A não ser que isso seja feito por um “robô” cibernético capaz de processar terabytes de narrativa por segundo. Aí... já é outra história. 
 
Como dizia Umberto Eco:

Os mass‑media são genealógicos e não têm memória, mesmo que as duas características pa­reçam incompatíveis uma com a outra. São genealógicos porque neles toda invenção nova produz imitações em cadeia, produz uma espécie de linguagem comum. Não têm memória porque, depois que se produziu a cadeia de imitações, ninguém mais pode lembrar quem a iniciou, e se confunde facilmente o iniciador da estirpe com o último dos netos. 

(Viagem na Irrealidade Cotidiana, Nova Fronteira, 1984, trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, pag. 176)

 
 

(por Will Tirando)