domingo, 12 de março de 2023

4921) Pensar numa língua estrangeira (12.3.2023)



Os professores dos cursos de idiomas costumam nos dizer que falar numa língua estrangeira não quer dizer que a gente já a “aprendeu”. Isso só acontece (dizem) quando a gente está pensando nessa língua, e sem ser provocado. 
 
Ou seja – quando a pessoa espontaneamente constrói uma frase em inglês ou espanhol, mesmo estando sozinha em casa. Porque se está no país estrangeiro, é claro que o “aplicativo idiomático mental” fica rodando 24 horas por dia.
 
Ou então quando sonha na outra língua, dizem outras pessoas. Este é mais um sinal de aplicativo rodando. Você sonha que está na Inglaterra falando o maior inglês, ou em Buenos Aires gastando o espanhol com um transeunte qualquer. 
 
Ou, e isso é mais sutil ainda, você sonha que está sozinho numa casa, aí começa a procurar o relógio perguntando a si mesmo “what time is it?”.
 
Isto tem interesse científico porque parece que o aprendizado de línguas estrangeiras se espalha por partes diferentes do cérebro.
 
A medicina tem casos clássicos. Um oficial inglês, na I Guerra Mundial, foi atingido por uma explosão e perdeu parte do cérebro. Recuperou a consciência, mas parecia ter perdido a capacidade de comunicar-se verbalmente. Um dia, médicos falaram em francês diante dele... e ele deu um pulo! E começou a se comunicar em francês, fluentemente. E explicou que o inglês (sua língua natal) era agora incompreensível, mas seu francês estava “normal, normal, normal”. 



Isso me lembra Joaquim Nabuco, um dos nossos grandes intelectuais do Império e da Primeira República. Ele reconhece, com candura e nonchalance, que sua educação cosmopolita o deixou muito mais à vontade no idioma de Renan do que no de Machado:
 
[E] dava-se um fato singular,resultado desses anos de leituras francesas: - eu lia muito pouco o português, ainda não começara a ler o inglês e desaprendera o alemão de Maria Stuart e de Wallenstein, com verdadeira mágoa do meu mestre Goldschmidt. O resultado foi que me senti solicitado, coagido pela espontaneidade própria do pensamento, a escrever em francês. (...) [C]om efeito, não revelo nenhum segredo, dizendo que insensivelmente a minha frase é uma tradução livre, e que nada seria mais fácil do que vertê-la outra vez para o francês do qual ela procede.
(Minha Formação, cap. VII)
 
Jorge Luís Borges é outro de formação multi-idiomática. Descendente de ingleses (avó paterna inglesa), acostumou-se a ler inglês desde cedo.
 
Em casa, tanto o inglês como o espanhol eram comumente usados. (...) Todos os livros precedentes [Mark Twain, H. G. Wells, R. L. Stevenson, Lewis Carroll, Charles Dickens, etc.] eu os li em inglês. Quando mais tarde li o Don Quixote no original, soou-me como uma tradução mal feita.
(“Perfis”, Ed. Globo, trad. Maria da Glória Bordini)
 
Parece esnobismo, e de certo modo talvez seja – exibicionismo de gente com acesso a bens culturais. Em todo caso... existem populações pobres e multi-idiomáticas em muitos lugares, lugares cheios de mistura transnacional, como cais do porto, zona de guerra, etc. Garotos que vivem como engraxates ou meninos-de-recados, e são capazes de conversar em 3 ou 4 línguas antes dos dez anos.
 
Todas essas circunstâncias nos ajudam a desenvolver reações verbais instintivas em diferentes idiomas. Uma pessoa martela o dedão e solta uma praga numa língua que não fala há anos; é instintivo, corresponde a um comando mental específico, que não passa pela alfândega da racionalidade e da intenção. 



O sonho é a mesma coisa. Borges diz, no mesmo livro, referindo-se aos tempos em que ele e sua irmã Norah, adolescentes, estudavam em francês, morando com os pais em Genebra:
 
Tornei-me um bom latinista, ao mesmo tempo que fazia em inglês a maior parte de minhas leituras particulares. Em casa falávamos o espanhol, mas logo o francês de minha irmã ficou tão bom que ela até sonhava nessa língua.
 
Algo parecido deve acontecer com crianças e jovens que falam línguas diferentes em casa e na escola. Fernando Pessoa estudou em Durban, e seus primeiros poemas publicados não foram em português, foram em inglês. É legítimo supor que muitos impulsos poéticos seus surgiam primeiramente em inglês e talvez fossem depois adaptados para a língua onde seria mais fácil divulgá-los.


 
Um caso notório de bilinguismo literário é o do polonês Joseph Conrad, que escreveu toda sua obra de ficção em inglês. Conrad era de uma família aristocrática da Polônia, estudou francês e outras línguas, mas consta que só se tornou fluente em inglês após os doze anos. Sempre falou o inglês com forte sotaque e um certo artificialismo, embora de maneira escrupulosamente correta.
 
Livros como Lord Jim, O Coração das Trevas e outros mostram um domínio admirável de uma língua que não era a sua; e na qual ele certamente aprendeu a sonhar.
 
Na nota introdutória a seu livro de memórias A Personal Record, ele comenta (trad. BT):
 
O fato é que a minha aptidão para escrever em inglês é tão natural quanto qualquer outra com que eu tenha nascido. Tenho a sensação estranha e esmagadora de que ela foi sempre uma parte integrante de minha pessoa. O inglês, para mim, nunca foi uma questão de escolha ou de adoção. A mera idéia de escolha nunca me passou pela cabeça. (...) Foi uma ação muito íntima e por isto mesmo muito misteriosa para explicar. Seria tão difícil quanto explicar um amor à primeira vista. (...) Se eu não tivesse escrito em inglês, não teria escrito absolutamente nada. 
 
Fico imaginando se na Polônia, um país tantas vezes invadido, retalhado, repartido, despojado de sua identidade histórica e geográfica – se num país assim os seus nacionalistas mais ferrenhos veem a opção anglófona de Conrad como um sinal de entreguismo, como uma rendição humilhante a um poder colonial mais forte (neste caso, no campo da língua e da cultura).