domingo, 28 de abril de 2013

3172) 14 lugares (28.4.2014)




A choupana onde Nuno Torga declarou seu amor à cozinheira Afonsina e teve que escutar quando ela disse “não quero teu amor, quero uma casa, uns filhos e alguma comida, podes levar teu amor para a beira dum poço e jogá-lo lá dentro”. 

O alambrado onde Dedé Mousinho estava encostado fumando quando uma falta cobrada pelo zagueiro do Guarani bateu na cabeça dele e o nocauteou. 

O elevador do edifício comercial onde Artur Bento ficou preso durante duas horas e meia numa noite de sábado, tempo suficiente para dar um balanço na sua vida e tomar algumas decisões que o salvaram. 

A alameda onde Yashev beijou Ruth na boca, e depois ela beijou suas duas mãos agradecendo a graça.

A desconjuntada escada de mão aberta em V em cujo topo balouçava uma lata, aberta, de tinta azul-cobalto. 

A cratera de dezenas de metros de fundura aberta pela explosão de um petardo governamental que enviou pedaços de dissidentes num raio de cem metros em volta do ponto marcado meio às cegas por um atirador com nota 6,4 em balística. 

A cadeira de engraxate no térreo do grande centro comercial onde um homem ficou sentado por trás de um jornal enquanto um casal específico passava aos beijos diante dele, sem notar sua presença e sem imaginar o que ele ali mesmo imaginou.

A cozinha atarefada do restaurante de hotel cinco estrelas por onde uma moça magra entrou de madrugada, pediu tímida a licença de todos, preparou um chá com as ervas que trouxe, arrolhou a garrafa, agradeceu, voltou para sua suíte e só então os funcionários perceberam que era a estrela inacessível cuja chegada estava anunciada há vários dias. 

O barreiro onde um menino chegou, olhou, examinou, depois afastou-se alguns passos, saiu correndo, tapou o nariz com os dedos, e tibungou no barreiro – e ali mesmo afundou direto e nunca mais ninguém o viu.

O quarto de pensão barata onde beijos foram trocados com alívio e fúria por pessoas que pouco estavam ligando se o mundo quisesse acabar ali mesmo e naquela hora. 

O cadafalso onde um homem, poucos segundos antes de ser enforcado, olhou uma praça com milhares de pessoas gritando, e gostou de sentir-se grande. 

O lixão onde um monte de folhas datilografadas ensopadas em querosene arderam e ajudaram a fazer arder a lenha que embalou uma noite de sono cálido para Estamira.  

A poça vagarosa que a chuva da noite foi alargando em torno do corpo da menina como se fosse uma mandala, protegendo-a, até o amanhecer, quando foi avistada e logo logo a polícia chegou. 

O lugar marcado com um X, porque por alguma razão que não se conhece o lugar marcado com um X é o lugar que vale por todos, é o mapa do lugar procurado por todos.






sábado, 27 de abril de 2013

3171) A Porca de Soledade (27.4.2013)





A Porca de Soledade “virou cultura”, como dizem certas senhoras. Ficou famosa, virou domínio público. Sua fama já cruzou fronteiras, já chegou a dezenas de países e centenas de milhões de pessoas, mas mesmo assim a curta vida do extraordinário animal continua a ser objeto de investigação e polêmica, mergulhada que está nas brumas da desmemória e nos torvelinhos da lenda.

A parte da desmemória está sendo compensada, porque uma auditoria independente exumou há pouco, nos porões de uma prefeitura, uma caixa de ventilador cheia de papéis concernentes à famosa Porca. São depoimentos colhidos no calor dos acontecimentos ou redigidos com mais vagar na crônica das efemérides. Conta-se ali o terror que se abateu sobre Soledade através da Porca Que Tinha De Comer Sem Parar.

A Porca nasceu numa fazenda, não se sabe de quem. Os que se dizem o ex-dono do animal original chegam às dezenas, de modo que é inútil arrolar aqui seus nomes. A história começa a ficar mais nítida a partir da intervenção de Dedé Merenciano, um bicheiro local autointitulado “o Zoo Tycon do sertão”.  Ele comprou a Porca depois que esta, recém-nascida, devorou em dias, com sua fome horripilante e suas mandíbulas insaciáveis, tudo que seu antigo dono possuía. Dedé Merenciano era da teoria de que a crise de um é a oportunidade de outro, e arrematou a Porca sem muito trabalho.

Adulta, a Porca era alimentada de forma contínua por duas filas de quinze homens que, de pá em punho, arremessavam comida em sua gigantesca boca como quem arremessa carvão numa fornalha. A Porca roncava, babujava, cuspia, mastigava, derramava, engolia, mas não parava de abocanhar as saraivadas de maionese, farofa, ração, torta, palma, espaguete à bolonhesa, sopa dos pobres, tudo que os alimentadores lhe jogavam sem parar. Dedé vendia merchandising, usava comida vencida, conseguia isenções, só se dava bem.

Os relatos divergem quanto às dimensões do mítico animal, que vão de um máximo de trinta metros de comprimento e seis de altura (mas num folheto de cordel, de modo que há de se considerar a licença poética) até uma mais razoável, mas não menos impressionante, de uma equipe norte-americana de membros de uma sigla qualquer, que veio, fotografou, filmou, mediu, pesou, tirou amostras, agradeceu e foi embora. Um dos registros que deixaram mostra que a porca tinha cerca de três metros de altura e oito do focinho à cauda. Mas de que adianta isso agora? A vida humana é imprevisível, até para os americanos. Numa noite qualquer deste ano, um dos trinta homens que a alimentavam teve que se interromper por um instante enquanto limpava o suor da testa. E com isso a Porca morreu de fome.



sexta-feira, 26 de abril de 2013

3170) Teorias da Conspiração (26.4.2013)






O atentado a bomba na Maratona de Boston e o subsequente cerco policial aos irmãos chechenos Tamerlan e Dzhokhar Tsarnaev estão sendo tomografados e dissecados na Internet. Muita gente questiona as explicações oficiais . Os mais veementes bradam que foi tudo mentira, tudo encenação, tudo é uma conspiração entre o Governo e algumas agências secretas, obscuras, cujos propósitos não podem ser coisa muito boa para qualquer país.

Acham que os irmãos entraram como bodes expiatórios. Que parte dos feridos eram atores, manchados de sangue artificial, que as verdadeiras bombas foram colocadas por outras pessoas, que Tamerlane foi preso vivo e chegou morto ao hospital, etc.  Há um vídeo absurdo, não explicado, em que ele (supõe-se que seja ele) aparece nu, algemado, entrando na viatura. E dizem que morreu no tiroteio, inclusive atropelado pelo irmão na fuga? Assim como o que ocorreu no 11 de setembro, há um matagal de coisas mal explicadas.

Já notei que os mais entusiastas defensores das Teorias da Conspiração são os jovens. Sua virtude é duvidar de tudo, seu defeito é crer de tudo, e passam de um para o outro com uma facilidade assombrosa. Sei disso porque fui e creio até que ainda sou um deles, dos que se apaixonam por uma teoria não pelo seu teor profético ou antecipatório, mas pela beleza da cambalhota mental de quem a fez. Uma teoria tem que ser como uma paranóia; um arranjo de idéias tão de-ferro que ninguém consiga produzir-lhe um “dente”; e tão flexível que assimile tudo, justifique tudo.

Os jovens acabaram de fazer a transição traumática entre certas crenças de criança e certas verdades de adolescente. Descobrem que foram frequente e variadamente enganados por pais, professores, presidentes. Desse dia em diante sua vida é regida por Kafka e George Orwell.  Eles não acreditam e não confiam mais em ninguém.

Sou assim. Dois dos meus livros fundadores são (ferozmente questionados, como também cultuados por toda parte): O Despertar dos Mágicos de Pauwels e Bergier, e As Veias Abertas da América Latina de Eduardo Galeano. Um é meio contracultura, o outro é meio de esquerda, mas mesmo quem ironiza essas épocas precisa recorrer a sua imaginação. Estes livros são dois exemplos cabais de teorias conspiratórias encharcadas de verdades, fervilhantes de fatos. Seja o delírio alquímico-surreal e FC-ocultista dos franceses, seja o jornalismo investigativo e imaginativo, a colagem de lendas e notícias do uruguaio. Mesmo que todos os nomes próprios ali fossem trocados, aquelas histórias continuariam substancialmente verdadeiras, como o são todas as fábulas, todas as grandes obras de ficção.



quinta-feira, 25 de abril de 2013

3169) "Repossession Man" (25.4.2013)





Nos anos 1950, os rebeldes sem causa dos EUA e os “angry young men” da Grã-Bretanha batiam de frente com pais caretas, moral e politicamente conservadores. O filme Repo Man de Alex Cox (1984) é de uma geração depois disto, e tem um perfil interessante. É um desses filmes rebeldes e roqueiros que a toda hora escapam por entre as frestas da indústria.  Em parte mostra o que significa ser punk: a briga surda e não-violenta entre o rapaz Emilio Estevez e seus pais é uma briga perfeitamente normal. Ou seria, se os pais não estivessem fumando baseados e não tivessem investido todas as suas economias num pastor evangélico.

O personagem Otto começa a trabalhar como “Repo(ssession) Man”, o cara a quem cabe tomar de volta os automóveis que foram comprados e não foram pagos. O filme, mais do que ser uma análise do meio social e cultural dos “repo men”, parece um filme financiado e co-roteirizado por repomen do mundo real. Tem a trilha sonora de alta octanagem e mistura de cenas de brigas, de perseguição, cenas que o diretor traz prontas na cabeça e depois dá um jeito de encaixar na história.

Meu personagem favorito é um maluco que vive elaborando teorias da conspiração e imagina que os discos voadores são máquinas do tempo, e que as pessoas desaparecidas nas grandes cidades foram na verdade enviadas para o Passado. Para quê? Não se sabe, porque tudo é muito mais complexo e cheio de surpresas do que a gente imagina. Nas franjas da cultura roqueira paira sempre esse universo cinza e pegajoso das fantasias cósmicas ou de espionagem megacorporativa, a noção (que a paranóia das drogas certamente deixa mais vívida) de que o mundo é manipulado por forças malignas que desconhecemos.

O filme tem uma cena em que um cara entra num carro e faz ligação direta dos fios da ignição. Isso durou uns trinta segundos, mostrando todas as tentativas de fazer o motor pegar, e foi uma eternidade, porque em filme americano o normal é um corte rápido e o carro já vai de estrada afora, satisfeitão. O plano insuportável deste filme amadorístico me abriu os olhos para a possível cronometragem de um roubo-de-carro real.

Há uma subtrama alienígena sobre alguma coisa radioativamente mortal na mala de um carro, o que acaba se tornando um “deus ex machina”, um raio mortal lançado por Zeus. Quando é preciso matar um personagem, basta fazê-lo abrir a mala desse carro. É um momento Arquivo X na história, mas feito num clima meio de humor, meio de filme-B-de-alien, que é o que Repo Man acaba sendo mesmo. Filme sem compromisso com bilheteria, a não ser o propósito de se pagar e poder fazer outro. Como aliás deveriam ser todos os filmes.




quarta-feira, 24 de abril de 2013

3168) Resolvi gostar (24.4.2013)





(by Jon Kuta)



O bisturi me descascou como uma cebola, desdobrou origamis das minhas vísceras, foi deixando listras de fogo-napalm por onde passava, e enquanto isso as algemas laceravam meus pulsos e eu cravava os dentes no trapo cheirando a querosene que me mandaram morder num acesso de piedade. A dor quando surge colapsa todo o resto do Real. Somente ela existe no Universo, somente os seus dois polos: o corpo que a sente e ela que ferve nesse corpo, como o bilhão de explosões nucleares que o Sol ruge por minuto. 

Resolvi gostar. Resolvi me entregar por completo àquela dor. Desisti de lutar contra ela, de pedir que parasse, resolvi aceitar que ela fazia parte de mim ou eu que fazia parte dela, e assim deixar que a dor crescesse a ponto de dissolver o conflito.

Fui manipulado como cabra-cega, seduzido por hipóteses e promessas, enleado por sorrisos, tapinhas nas costas e adiantamentos bancários, e todo dia pisava numa armadilha, caía numa arapuca, despencava num alçapão. Assinei folhas em branco confiando na descrição do que em breve seria impresso ali. Aceitei sem checar. Acreditei sem conferir. Fiz de conta que não vi o que se escancarou na minha frente, fiz de conta que não entendi o fato consumado que rolava de boca em boca. Fui bobo da corte, peão no roque alheio, inocente útil... 

Resolvi gostar. Virou um teste de até-onde-isso-vai. Virou uma experiência de laboratório onde o rato resolveu assumir o controle porque entendeu, enfim, que era uma experiência. Resolvi entender. Me interessei por tudo, como quem pela primeira vez entende um jogo de críquete, e transformei meu opróbrio em espetáculo.

Me depuseram, me manietaram, me sacanearam, me expuseram ao ridículo, me traíram, me bateram a carteira, me rasgaram os documentos, me enxovalharam a reputação em todos os órgãos de imprensa em quarenta idiomas, arrastaram minha estátua puxada por burros e alvejada por ovos podres. 

Meus partidários, meus cupinchas e meus apaniguados foram os primeiros a esfregar a sola suja do pé na minha cara. As mulheres me enxotaram rua afora com vassouras. As crianças surgiram excitadas à janela e gritaram à minha passagem seu primeiro palavrão. Aguentei as gargalhadas impiedosas dos bem-falantes, a mangação dos mendigos, a maledicência dos despeitados, o chute-no-traseiro com o sapato feroz dos ressentidos. 

Resolvi gostar. Resolvi permitir que aquele enxovalhamento fosse uma lavagem, uma purgação, um massacre de mim mesmo, uma sessão de bate-tapete que improvavelmente me restituísse a mim mais cru, mais mineral, mais resíduo de essência indestrutível. Àquela altura valia tudo. E eu só gosto quando chega nesse ponto.









terça-feira, 23 de abril de 2013

3167) Monteiro Lobato e Mark Twain (23.4.2013)





O que há em comum entre esses dois escritores, além do fato de que estão entre os primeiros que li, e os mais queridos? Uma porção de coisas.  Ambos foram escritores com uma obra para adultos séria e relevante, mas acabaram se tornando famosos como autores para jovens, em função de seus livros de maior sucesso. A imensa maioria dos que os conhecem leram apenas essas obras infanto-juvenis e desconhecem seus livros mais complexos.

Monteiro Lobato é famoso pela sua série de romances do Sítio do Picapau Amarelo, mas só é conhecido no Brasil. Às vezes imagino o susto e o maravilhamento de meninos ingleses, japoneses, norte-americanos, quenianos, se pudessem ler boas traduções dessas obras e conhecer um mundo de surpresas inesgotáveis. Mark Twain escreveu alguns livros com as aventuras de Tom Sawyer e Huckleberry Finn, dois garotos rurais num ambiente mais realista do que o de Lobato, mas igualmente divertido. Aliás, Lobato fez adaptações de livros de Twain para a Editora Brasiliense, e talvez tenha sido através dele que muitos brasileiros conheceram o norte-americano.

Ambos tiveram flertes com a ficção científica. Lobato com o histórico O Presidente Negro (1926) e alguns volumes infantis (A Chave do Tamanho, Viagem ao Céu, A Reforma da Natureza); Twain com Um Ianque na Corte do Rei Artur (1889), uma história clássica de viagem no tempo, mesmo que sem explicação técnica de como isso aconteceu, e numerosos contos já reunidos em coletâneas. Ambos tiveram interesse pelo lado prático da literatura: Lobato criando a Companhia Editora Nacional e outros empreendimentos semelhantes, e Twain investindo todo seu dinheiro (e dos amigos) numa máquina impressora que pretendia concorrer com o linotipo. (Ambos deram com os burros nágua e perderam fortunas.)

E ambos foram acusados de racismo por terem escrito romances em que adultos negros apareciam sendo maltratados ou ridicularizados por crianças brancas: a Tia Nastácia de Lobato e o escravo Jim de As aventuras de Huck. Uma acusação injusta por ignorar a pressão da mentalidade do tempo em que viveram. Talvez o mesmo venha a acontecer conosco, que os acusamos. Se o Brasil virar um dia uma democracia racial sem Casa Grande nem Senzala, nossos descendentes nos considerarão racistas e escravocratas pelo fato de que pagávamos pessoas negras para cozinharem nossa comida, lavarem nossa roupa e cuidarem dos nossos bebês. Achamos tudo isto uma coisa normal, faz parte do mecanismo social em que crescemos, e é difícil para nós imaginar que os brasileiros do futuro talvez olhem para nós com repulsa e mandem tirar nossos livros das bibliotecas eletrônicas de suas escolas.



sábado, 20 de abril de 2013

3166) Os Davis e os Golias (21.4.2013)




(Clayton Christensen)


Li mais duas matérias, num curto intervalo, dizendo sempre a mesma coisa. As megaempresas estão entrando num atoleiro preparado por elas mesmas, por seus métodos “certinhos” de buscar maxieficiência; e no espaço de seu desmoronamento surgem empresas pequenas, rápidas, que (ao contrário delas) correm riscos, fazem apostas, e se contentam com lucros menores mas certos.

A Wired de março traz uma entrevista (http://bit.ly/X3bbHe) com Clayton Christensen, autor de The Innovator’s Dilemma (1997) e The Innovator’s Solution (2003), onde argumenta que as grandes empresas preocupam-se demais com “fazer tudo de acordo com o manual” e isto lhe tira a flexibilidade de intuir o futuro e adaptar-se a ele. São dependentes do que já têm, e do que já sabem e podem fazer. E são vulneráveis ao que ele chama “inovações disruptivas” – invenções ou processos criados por companhias menores, menos lucrativas, mais ágeis, mais aflitas, precisando arriscar tudo numa cartada. Quando a cartada dá certo, a pequena companhia se agiganta e as gigantes desmoronam. Christensen apontou isso no mercado de disk-drives, de injeção eletrônica de carros, de cerâmica.

Christensen foi chamado pelo CEO da Intel, Andy Grove, e disse-lhe: “Não tenho uma opinião sobre a Intel, mas minha teoria tem”. Alertado, Grove comprou duas companhias pequenas (Cyrix e AMD) e produziu o processador Celeron. Christensen vê algumas área onde, agora, os Golias estão sendo engolidos pelos Davis: jornalismo, mercado editorial, tudo (segundo ele) “que depende de publicidade”, e a educação de alto nível. Jornalismo e educação estão começando a enfrentar concorrência via Web. A concorrência é heterogênea, difusa, mas de vez em quando surge um foco de alta qualidade. Ele cita um curso online de contabilidade da Brigham Young University que ajudou a fechar o curso de contabilidade de Harvard.

Algo parecido diz Bill Harris em seu blog Dubious Quality (http://bit.ly/XHZcBL), comparando o mercado de videogames com o de petróleo. As grandes companhias cresceram tanto que cada passo que dão custa fortunas. Só podem apostar no que é 100% certo (o que é raro aparecer). Resolvem comprar pequenas companhias de filão lucrativo, mas o leilão com os concorrentes é pesado. O lucro delas se torna um prejuízo: o preço não compensa.

Quanto mais exemplos chegarem mais nítida irá ficando essa tendência das atividades de alta previsibilidade, que já dominaram o mundo, serem suplantadas pela de alta incerteza. As disciplinas da certeza, da comprovação absoluta, dos vários níveis de redundância retroalimentada, darão lugar às que abraçam o acaso, o risco, o improviso e a imperfeição.



3165) O Samurai sem Sono (20.4.2013)



(by Gabriel Tavares)


Sua lâmina era capaz de passar pela asa de um beija-flor em pleno voo sem tocá-la.  Seus olhos eram capazes de dizer quantos grãos havia num punhado de sal. A chuva o fustigava sem enfraquecê-lo, o sol do deserto colidia com ele e recuava. Ao longo das Sete Ilhas, e das encostas do Monte Kuju até a baía de Wakaba, até as crianças reconheciam ao longe seu vulto magro e hirsuto, mas eram poucos os que sabiam o som da sua voz. Caminhava devagar como alguém que reduz o passo ao se aproximar do lugar para onde se dirige. Dizia-se dele que seus olhos brilhavam no escuro; que era capaz de passar um ano sem comer; que comandava as mulheres e os animais com o pensamento.

Uma crônica da Casa de Kenji relata um episódio provavelmente veraz de seu passado: que teria sido o causador (por arrogância e um erro de cálculo) da morte de alguém de sua família. Desde esse dia, jurou viver como um misto de mendigo e monge. Lutou por seis anos para o clã dos Hashikaya e aceitava como pagamento apenas um pão por dia. Data dessa época a lenda de que jamais dormia.  Pode ser um exagero causado pelo seu hábito de a qualquer hora do dia ou da noite estar em campo aberto, de espada em punho, treinando combinações complexas de aparas e de estocadas, ou postado imóvel sob uma árvore, aguardando a queda de alguma folha seca para seccioná-la no ar. “Ele não dorme”, diziam os guerreiros, e os velhos murmuravam (e as mulheres e crianças repetiam): “Quem não dorme é porque não morre”.

As crônicas do período Edo registram fatos como a batalha de Kan-Chi, em que ele sozinho bloqueou um exército no meio de uma ponte por uma manhã inteira, até a chegada de reforços.  Contam como ele travou duelos pessoais, em dias sucessivos, contra oito espadachins do clã Hinoruke, abatendo-os um a um; como, sem escudo no campo de batalha, sua espada veloz rebatia as flechas disparadas contra seu corpo. Durante os combates, não rugia nem blasfemava como a maioria dos soldados; executava seus gestos com a energia vibrante de quem dança, e com o olhar meio ausente de quem confere uma conta.

Sua morte, como sua vida, está soterrada por lendas. A mais recorrente delas o mostra encurralado por cem soldados que atearam fogo à choupana onde ele se refugiara, e depois espalharam as cinzas durante seu trajeto de volta, ao longo das quinze milhas, anunciando aos camponeses a morte do Samurai Sem Sono. Surgiu daí a versão de que essas cinzas são capazes de se recompor, brotando dos rios, da relva, dos bambuzais, um torvelinho de pó de onde surge, como um raio de prata, a lâmina vingadora de injustiças e de traições, a espada mais veloz das Sete Ilhas.


sexta-feira, 19 de abril de 2013

3164) TV e entrevistas (19.4.2013)





Tem coisas que só a vida ensina, e a primeira delas é a vida propriamente dita. Não temos manual de instruções para a maioria das coisas que nos acontecem. Algo que a gente rala muito para aprender, e nunca aprende, é dar entrevistas para a TV. Políticos, artistas, etc acabam aprendendo pela prática intensa, fazem isso quase todo dia. Mas o que dizer do cidadão comum a quem isso só ocorre, sei lá, uma vez por ano? Quando chega a próxima vez ele nem lembra mais o que fez na anterior.

Posso compartilhar algumas pequenas coisas que aprendi à força de fazer bobagem. Tempos atrás, quando alguém me entrevistava para um programa qualquer, eu começava expondo minhas premissas, em função da pergunta que me fôra feita, para chegar, triunfalmente, à conclusão. Em geral, isto me requeria 3 ou 4 minutos de resposta, o que em termos de televisão é uma eternidade. A consequência é que ainda durante as premissas eu era interrompido pelo repórter, que agradecia minha participação e chamava a central. Ou então fazia outra pergunta – e tudo recomeçava.

A lição que aprendi foi: quando a TV fizer uma pergunta, responda direto com a conclusão. De maneira direta, concisa, e por mais que a conclusão pareça gratuita sem ter sido preparada pelas premissas. Quanto mais inesperada ou surpreendente ela for, melhor, porque o repórter vai ficar intrigado com uma resposta tão curta e direta, e vai perguntar: “Por quê”, ou “Como assim?” – e aí vai lhe dar todo o tempo necessário para você apresentar suas premissas.

Do mesmo jeito, se pedirem para você tocar uma música, ataque direto no primeiro verso. Não invente de tocar a introdução instrumental, se não corre o risco de ver os créditos do programa subirem na tela antes mesmo de você poder cantar “Ouviram do Ipiranga as margens plááácidas...” ou seja lá qual for o verso inicial da sua música.

A TV só tem tempo para pílulas, comprimidos, conclusões bem sintéticas com começo e fim (de preferência sem “meio”). Responder perguntas da TV é uma arte que eu não domino até hoje, e olha que já dei centenas de entrevistas, desde as de 30 segundos até as de um programa inteiro. O raciocínio mais curto de que sou capaz é do tamanho de um destes artigos, o que me inviabiliza para a filosofia eletrônica. Na TV, a gente tem que ir direto à parte principal. Nada de ordem cronológica dos fatos, por exemplo. Craques do futebol brasileiro? Vá direto a Neymar. Se der tempo, lembre Pelé e Garrincha.  Se pedirem mais, aí sim, fique livre para ir de Leônidas e Zizinho até Zico e Ronaldo.

Fale do aqui e agora. TV é como Twitter: depois de um certo ponto, nada do que você disser sobreviverá à edição.



quinta-feira, 18 de abril de 2013

3163) 32 razões (18.4.2013)





(by Lauren Simonutti)



Porque nem sempre o que é planejado acontece conforme o plano, pois planejar é uma atividade autônoma que se desprega da realidade à medida que avança. 

Porque foi cientificamente provado que existe uma relação entre o zumbir das abelhas e o abrir das corolas. 

Porque qualquer teoria pode ser filosoficamente provada desde que inclua termos como “a menos que” ou “quase sempre”. 

Porque esqueci.

Porque o arquivo que continha o texto foi dado como “corrompido” e eu tive que fazer outro usando o mesmo título. 

Porque é algo assim, tipo, feijoada vegetariana, ou cerveja sem álcool, ou café descafeinado. 

Porque toda cidade é uma cicatriz na natureza. 

Porque cada um ficou esperando que o outro fizesse e quando se tocaram acabou sendo feito por um terceiro. 

Porque tem gente que escolhe o cavalinho onde vai pular antes mesmo de ver o carrossel dar uma volta inteira. 

Porque tinha muita gente esperando e achei melhor começar logo.

Porque choveu de novo. 

Porque pensei que ia ser às 4 da tarde, deixa que era às 14 horas. 

Porque apareceu uma tartaruga parada na porta do meu quarto e estou há três dias com medo de tropeçar nela. 

Porque faltou água na barbearia. 

Porque disseram que tem um míssil pronto para cair lá no momento em que eu aparecer. 

Porque só fiquei sabendo  quando já era possível dizer que só fiquei sabendo quando não dava mais tempo.  

Porque ninguém nunca parou para pensar sobre a quantidade de acidentes mortais de que a gente escapa a cada minuto.

Porque eu espero tanto pelos outros, por que alguém não pode esperar por mim? 

Porque joguei dois dados e deu 13. 

Porque é mais fácil ressuscitar um morto do que recompor um vidro quebrado. 

Porque os interesses do país têm que prevalecer sobre os nossos, principalmente quando vêm ao encontro dos nossos interesses. 

Porque é melhor o cansaço da missão cumprida do que o nervosismo do tomara-que-alguém-resolva. 

Porque ninguém precisa ficar sabendo.

Porque não importa a idéia que você esteja defendendo, sempre vai haver um trecho da Bíblia que parece apoiá-la. 

Porque eu não nasci pra cortar jaca nem pra descascar abacaxi. 

Porque se eu for me preocupar com isso a cerveja esquenta e o café esfria.

Porque os únicos números verdadeiros, inteiriços, são os números primos; os demais são pecinhas de Lego encaixadas. 

Porque as surpresas acontecem quando menos se espera. 

Porque passei do ponto e o ônibus não parou. 

Porque as estatísticas indicavam outro resultado, e eu mais uma vez acreditei. 

Porque não existe "Guerra Santa", visto que toda guerra, mesmo para combater o Mal, é uma aliança com ele. 

Porque chega de dizer “chega” quando a gente sabe muito bem que vai ter que suportar muito mais. 








quarta-feira, 17 de abril de 2013

3162) Livros clandestinos (17.4.2013)




Meu nome é Sonntag, e sou bombeiro. Meu pai o foi também, e queimou muitos livros. Quando começou a salvá-los às escondidas, foi descoberto e morto pelas forças de segurança. 

Cresci ouvindo este exemplo ameaçador. Tornei-me bombeiro para conhecer essas obras proibidas, mesmo correndo o risco de ser executado. Enganava-me. Hoje em dia o Sistema balança, racha-se em fendas; a corrupção impera. Encontram-se livros à venda nos mercados negros de armas, de próteses, de venenos. 

Minhas leituras fervorosas e às escondidas são alimentadas por essa rede escusa de delinquentes, que fervilha nas favelas, nas ruínas ocupadas, nos casebres de beira-rio. Não se consegue saber de onde extraem esses tesouros.

Há boatos sobre bibliotecas soterradas, mas a verdade é que livros já não são impressos há mais de dois séculos. O papel é descartável, perecível. Cada exemplar merece ser preservado, porque tudo que está impresso é precioso. O que foi confiado ao papel constitui o esqueleto, a estrutura da existência humana; os pixels coloridos da TV são mera distração ou adorno. 

Daí que cada folha impressa valha uma pequena fortuna: trechos de romances dos quais não sabemos título nem autoria, mas que por isso mesmo tornam-se mais cheios de mistério e de valor. Não direi que entendo tudo que leio, mas nesses momentos sinto-me compartilhando um ritual místico de transcendência, ainda que numa língua que me é desconhecida.

Muito ouvi falar em Shakespeare; para mim, são onze páginas arrancadas não sei de onde e costuradas umas às outras, pelas quais paguei uma pequena fortuna, no meu tempo de estudante. 

Tornei-me bombeiro e aumentei meu capital. Em menos de dois meses na corporação reuni exemplares completos de obras como “Meu Nome é uma Bala”, “Férias de Amor”, “Apólogos Edificantes”, “As Libertinas”, “Anais da Câmara de Vereadores”. Tornei-me capitão, e entrei para um grupo de jovens oficiais progressistas que lutam discretamente pelo fim do banimento.

Visados pelo Governo, temos que dobrar nossas precauções para que não encontrem nossos tesouros. Compro tudo que me aparece pela frente. Somente nesta semana um traficante vendeu-me vinte páginas de um livro do célebre Nabokov, a história marítima da caça a uma baleia; outro, um conto de Baudelaire intitulado “O poço e o pêndulo”; de um terceiro adquiri sonetos de Homero. 

Nomes que evocam memórias de um tempo mítico em que a cultura era acessível a todos. Tesouros que guardo num cofre por trás de uma parede secreta, feliz em saber que por mais que as ditaduras massacrem a cultura e o saber não há como destruir as grandes obras do pensamento humano.





segunda-feira, 15 de abril de 2013

3161) Executivos zumbis (16.4.2013)





Um título assim é muito sugestivo para uma comédia de terror, mas a história por trás dele, além de real, é muito pouco cômica. “Zombie Executives” é o termo que está sendo adotado nos EUA para designar CEOs, diretores, etc. de empresas que, mesmo quando a empresa vai mal, não podem ser demitidos.

Numa empresa que tem acionistas, estes votam periodicamente para os cargos de direção e, se o desempenho dos atuais diretores é considerado insatisfatório, eles são substituídos. Afinal, é o dinheiro dos acionistas que eles estão administrando. Ou seja: as empresas funcionam mais ou menos como as repúblicas democráticas dizem funcionar. Votamos em prefeitos, governadores, presidentes, etc., e quando achamos que uma determinada equipe não está cuidando bem das coisas, votamos em seus adversários.

Mas no mundo corporativo norte-americano o bicho está pegando. Numa matéria no “NY Times” (http://nyti.ms/1102n32) James B. Stewart diz conhecer pelo menos 41 casos em que os diretores perderam direito ao cargo por ter recebido menos de 50% dos votos de confiança dos acionistas, mas que mesmo, assim continuam a exercê-los, baseados em firulas legais. Uma delas é o uso do chamado “sistema de pluralidade”, em que os diretores concorrem sem oposição e basta terem um voto para serem eleitos. Em outros casos, como na Iris International (empresa da área médica, na Califórnia) os acionistas rejeitaram todos os 9 diretores numa votação em maio de 2011. Os diretores renunciaram coletivamente aos seus cargos e ao mesmo tempo rejeitaram essa renúncia; e continuaram à frente da empresa.

Stewart dá nomes a muitas delas: Loral Space & Communications, Mentor Graphics, Boston Beer Company, Vornado Realty Trust, Chesapeake Energy, Oklahoma State University, Union Pacific… Em alguns casos os CEOs tiveram 70% de rejeição, mas os acionistas – teoricamente os donos da empresa – não conseguem mandá-los embora.

Filmes comentados aqui (Trabalho Interno, Margin Call), etc., mostram a ilimitada arrogância, ambição e desonestidade com que muitos indivíduos em cargos desse tipo afundaram a economia dos EUA, e por tabela a do mundo, no abismo em que estamos atualmente. (Acha que a crise passou, caro leitor? Pergunte aos seus netos daqui a uns tempos.) Quando alguém chega ao Poder, a primeira coisa que faz é mexer em estatutos, regimentos, etc. preparando uma brecha para se perpetuar legalmente no cargo. Os norte-americanos estão cada vez mais reféns de uma geração de Zumbis de Terno Armani, que sabem que serão a última geração de bilionários do planeta, e que por isso mesmo pretende fazer a banda tocar até este Titanic desaparecer no plâncton.



domingo, 14 de abril de 2013

3160) A ética de Bombaim (14.4.2013)




Estou lendo aos poucos, sem pressa de terminar, o enorme Bombaim: Cidade Máxima de Suketu Mehta (Companhia das Letras, 2011, 583 pags.). Você acha que o Brasil tem problemas, caro leitor? Não direi que não tem, mas peço que imagine os problemas da Índia, que em alguns aspectos parece muito com nosso país, só que tem 1,2 bilhão de pessoas amontoadas num território com menos da metade do nosso. 

Suketu Mehta foi criado em Bombaim, morou em Nova York, e voltou para sua cidade natal, agora chamada de Mumbai, para escrever sobre a Bombaim que tinha conhecido. O livro é uma reportagem panorâmica sobre favelas, terroristas, políticos, travestis; sobre o trânsito, a moradia, o crime, a arte, o transporte. Bombaim, com 20 milhões de habitantes, tem uma das maiores densidades populacionais do mundo.

Mehta voltou a sua cidade e se assustou com o que lhe acontecera em apenas 21 anos. As filas são gigantescas e estão por toda parte. Ninguém respeita o espaço alheio, o direito alheio. Para conseguir o serviço mais banal ou o direito mais elementar é preciso ser amigo de alguém, ou subornar um funcionário. Diz ele: 

“Um homem que ganhou dinheiro de modo desonesto é mais respeitado do que um que ganhou dinheiro trabalhando, porque a ética de Bombaim é a da ascensão rápida e a fraude é um atalho. Uma fraude demonstra bom senso comercial e agilidade mental. Qualquer um é capaz de trabalhar duro e ganhar dinheiro. O que há de admirável nisso? Mas uma fraude bem executada, isso, sim, é uma beleza”.

Nos EUA, Mehta absorveu o estilo norte-americano, que oscila entre o sossegadamente-pacato e o politicamente-correto. Ao voltar para sua cidade, sentiu-se (e foi tratado) como um estrangeiro. 

“Brigamos para conseguir descontos que não têm valor algum para nós: dez rupias são apenas 40 cents. Se perdermos 40 cents em Nova York, jamais perceberemos; aqui é uma questão de princípio. Isso porque, quando somos roubados em dez rupias, os outros tiram suas conclusões: não somos daqui, não somos indianos, por isso merecemos ser roubados, pagar mais do que eles. Portanto, levantamos a voz e exigimos que nos cobrem o preço correto, o que está no taxímetro, pois não agir assim equivale a aceitar a condição de estrangeiros. Somos indianos e vamos pagar preços indianos!”.

Toda sociedade dividida é assim; o que dizer da Índia, suas castas, suas centenas de etnias e/ou religiões? O pesadelo de abundância e de miséria existente na Índia parece um Brasil elevado ao quadrado. A Bombaim/Mumbai deste livro dá arrepios, ao pensarmos que estamos lendo a história de nossas metrópoles dentro de mais uma década.






sábado, 13 de abril de 2013

3159) "Privilégio" (13.4.2013)





Na filmografia sobre rock, este filme de Peter Watkins (Privilege, 1967) é um título obscuro, um desses filmes que eu às vezes imagino ser a única pessoa que assistiu. Consegui agora uma cópia; e lamento que ele não seja mais conhecido, porque é um momento importante numa linhagem de filmes que exploram o potencial fascista, controlador, orwelliano do rock-and-roll. Em meu livro O Rasgão no Real (Ed. Marca de Fantasia, João Pessoa, 2005) coloquei-o numa lista que incluía Tommy de Ken Russell (1975), Pink Floyd – The Wall de Alan Parker (1982) e This is Spinal Tap de Rob Reiner (1984). Filmes que fazem com o rock o que os livros de Richard Dawkins fazem com a religião. Precisa ter muita fé pra continuar gostando.

Watkins ficou famoso com seu filme The War Game (1965), chamado de “docudrama” pelo seu estilo semijornalístico de contar uma história. “Privilégio” também utiliza esse artifício, mostrando-se como uma reportagem de TV sobre o roqueiro Steven Shorter, entrevistando seus empresários, assessores, etc., e cobrindo jornalisticamente tanto os seus shows quanto as reuniões do seu “staff”, coquetéis, entrevistas coletivas, etc.

Shorter, interpretado pelo cantor Paul Jones, tem, curiosamente, aquele misto de fragilidade, obstinação e angústia que transparecia muitas vezes em Ayrton Senna, com quem se parece fisicamente. Existe algo de caricatural na expressão continuamente sofrida do ator, mas a verdade é que ela corresponde de perto a sua “persona” no palco (que envolve encenações masoquistas, com ele sendo preso, algemado, espancado pela polícia, etc.).

Há uma cena hilária em que ele aparece num comercial de TV (na verdade uma propaganda do Ministério da Agricultura) incentivando a população a comer maçãs. É um troço extremamente kitsch, mas não muito diferente de várias coisas que os Beatles estavam sendo obrigados a gravar na mesma época. O melhor do filme são as sequências em que Shorter se torna garoto propaganda da Igreja, numa campanha conjunta com o Governo, para induzir os jovens ao conformismo político, com cenas que (li em alguma parte) são minuciosamente copiadas de O Triunfo da Vontade de Leni Riefenstahl. Alguns críticos viram nele uma premonição da Inglaterra de Margaret Thatcher.

Há poucos filmes críticos sobre o show business roqueiro. Este é um dos melhores, mesmo com um ritmo narrativo meio lento e interpretações nem sempre firmes dos atores. Ele mostra, no auge do rock britânico, as manipulações de bastidores, o comportamento cego-em-tiroteio do popstar, e a terrível elite de múmias-de-rapina que veste batina ou terno e fatura em cima da histeria das mocinhas adolescentes.



sexta-feira, 12 de abril de 2013

3158) A Voz e a Eletricidade (12.4.2013)




A literatura e a poesia sempre dependeram da voz, com exceção dos breves 500 anos após a invenção da imprensa. 

Antes da imprensa, quando os livros eram escritos à mão, palavra falada e palavra escrita pelo menos lutavam pau-a-pau pelo poder. 

Na Antiguidade e na Idade Média livros eram coisas muito caras. Somente quem tinha uma certa grana podia comprar a cópia de um livro para tê-lo em casa, ou podia pagar um escriba para copiá-lo. Poemas e textos circulavam, sob forma escrita, mas sua circulação oral era certamente grande.

A invenção da imprensa abarrotou o mundo de livros de papel, mesmo que em seus primeiros anos os livros impressos também fossem um luxo de quem podia pagar. Mas não importa; a palavra escrita tornou-se sinônimo de cultura. E ainda hoje vivemos isto. 

Se alguém tem uma sala cheia de livros, achamos que é um intelectual, mesmo que ao falar ele revele ser uma besta quadrada. E se alguém nos diz que não sabe ler nem escrever, pensamos de imediato que é um sujeito burro, quando às vezes é mais inteligente e bem informado do que nós (e sabe mais poemas de cor).

Quem resgatou a Poesia da Voz foi a eletricidade, a partir do século 20, com três invenções decisivas: o rádio, o disco e a televisão. 

Com a ajuda desses meios a palavra falada ultrapassou a palavra escrita em importância, inclusive pelo fato de que isso coincidiu com a explosão das populações. Em muitos países, como no Brasil, milhões de pessoas passaram a ter acesso a esses três canais de comunicação sem nunca terem lido um livro. 

Do ponto de vista poético, o século 20 foi o Século da Canção. Nunca essa forma de arte foi tão cultivada, tão disseminada e teve um papel tão grande (maior que o romance, o conto, o poema escrito, etc.) na formação das pessoas, no seu lazer, na sua convivência, no seu entendimento do mundo.

O que ocorre agora com a Cultura Digital Eletrônica é uma mistura desses acontecimentos cruciais, a popularização da palavra escrita pela imprensa e a massificação da palavra falada pelos meios elétricos. 

Na Cultura Digital, a palavra escrita se multiplica de forma incontrolável, e o mais interessante é que agora uma só tecnologia está beneficiando ambas, a escrita e a falada. 

A Voz não lucrou nada com a imprensa, a Palavra Escrita lucrou pouco com rádio, etc.; mas as tecnologias digitais, com essa espantosa flexibilidade que têm, são capazes de beneficiar igualmente a Palavra Falada e a Palavra Escrita. (Para não falar na Imagem!) 

Não é o Fim do Mundo nem é a aurora de uma Idade de Ouro, mas é um momento raro de redefinição dos alicerces da comunicação. Temos sorte de viver um momento tão cheio de novidades.









quinta-feira, 11 de abril de 2013

3157) L. Ron Hubbard (11.4.2013)







Lafayette Ronald Hubbard nasceu em 1911 e durante anos foi um dos colaboradores mais entusiastas e mais prolíficos de revistas de pulp fiction como “Unknown”, “Astounding Science Fiction”, etc. Atribui-se a ele uma das frases mais famosas da FC: “Estou cansado de escrever FC pra ganhar uma merreca. Vou fundar uma religião e ficar milionário”. Foi o que aconteceu a partir de 1950, quando ele criou a famigerada Dianética, uma mistura de psicanálise e auto-ajuda. Suas promessas de saúde mental e quem sabe até superpoderes psicológicos arrebataram um grande número de pessoas, inclusive escritores como A. E. Van Vogt, John W. Campbell, etc. Hubbard ficou mesmo milionário, mas brigas internas entre os administradores do grupo o fizeram trocar em 1952 o termo Dianética por Cientologia, uma igreja paracientífica ainda hoje em plena atividade.

A melhor coisa que já li de Hubbard é a noveleta “Fear” (1940), uma arrepiante história de horror sobre um professor universitário que constata, de repente, um buraco na própria memória: quatro horas seguidas onde ele não lembra onde estava nem o que fez. Suas alucinações “dickianas”, sua progressiva destruição psicológica, e a presença constante (diálogos que o leitor lê mas o personagem não percebe) de entidades misteriosas – tudo isto faz do livro uma curta e compacta obra-prima do gênero.

Nos anos 1980 Hubbard lançou uma “decalogia” intitulada “Missão: Terra”, dez volumes dos quais traduzi os dois primeiros (“O Plano dos Invasores”, “Gênesis Negra”). É uma mixórdia indescritível de pulp fiction dos anos 1930, prosa auto-indulgente repleta de encheção de lingüiça, e um humorismo adolescente que faz o “Mochileiro das Galáxias” soar como FC existencialista francesa. Os méritos que tem são do gênero, não do autor: aquele divertido vale-tudo imaginativo que arrasta o leitor consigo pela mera sucessão vertiginosa de peripécias, situações absurdas, reviravoltas incessantes. Os ziguezagues constantes do enredo (infelizmente travado o tempo todo por diálogos longuíssimos e descartáveis) nem nos dão tempo de questionar a burrice obrigatória dos vilões e a cascata de coincidências que não cessa de favorecer o mocinho.

A melhor herança deixada por ele foram o misto de concurso e oficina “Writers of the Future”, que selecionou e revelou dezenas de bons jovens escritores (entre eles David Zindell, Karen Joy Fowler, Robert Reed), e editou várias antologias de boa qualidade. Sua memória é preservada pela Igreja da Cientologia, uma corporação articulada e poderosa que adquiriu vida própria na zona indistinta entre religião, política e auto-ajuda.



quarta-feira, 10 de abril de 2013

3156) O último quadro (10.4.2013)






No dia em que a Revolução Descalça tomou a capital do país, Henryk  Rhysdael amaldiçoou-se pelo otimismo que o impedira de fugir. A família estava em segurança em Londres, com a promessa de que voltaria para casa quando o governo controlasse os rebeldes. Agora, por entre os vidros à prova de balas do terraço do seu bunker de banqueiro, ele via o tsunami de torsos negros superlotando as ruas, os móveis sendo arremessados das janelas, os incêndios se alastrando. Um ratatá ensurdecedor vindo do alto disse-lhe que os selvagens, além de armamento, contavam com helicópteros estrangeiros. Colado à porta blindada,  acompanhou o tiroteio no corredor. Vestiu a roupa suja de operário que guardava para uma emergência, lançou o último olhar para o duplex de 900 m2 onde fôra feliz, e desceu pelo alçapão para o apartamento de baixo, que sabia desocupado, dali para a escada de serviço, e dali, em meio à turba que saqueava tudo, para as ruas, a fronteira e o exílio.

Voltou ao país dez anos depois, numa missão humanitária para investigar denúncias de torturas por parte do governo revolucionário. Pela janela da limusine viu que os prédios ainda guardavam marcas de fogo e buracos de balas. Durante os debates, ficou amigo de um capitão do exército cujo pai lhe devia favores. Na véspera da partida, fez o pedido: queria visitar seu antigo endereço. Soube que o edifício era agora um alojamento para migrantes fugindo das epidemias do campo.

O prédio estava cercado de barracas de fruta e de peixe. No hall, eles abriram caminho por entre filas de pessoas com mochilas às costas e sacos na cabeça. Subiram pela escada; o elevador estava quebrado há dois anos. Crianças fugiram ao vê-los, escondendo-se nos apartamentos e espiando pela fresta da porta. Alguns andares tinham pintura recente, outros estavam cobertos de grafittis e de frases numa língua que ele não reconheceu.

Chegaram à cobertura. O salão estava cheio de redes armadas de parede a parede. As vidraças tinham sido arrancadas. A pérgola era agora um cercado onde cacarejavam galinhas. Cumprimentando, pedindo licença, ele percorreu os aposentos. Um quarto estava cheio de arroz até quase o teto; a porta mal abria. A suite principal era um berçário onde mulheres de seios pendidos o olharam com indiferença e cansaço. Nada restava da mobília, dos tapetes, dos quadros, mas em outra suite ele viu o milagre impossível: intacta, cobrindo toda a parede, sua reprodução (encomendada) da “Entrada de Cristo em Bruxelas”, de James Ensor. Percebendo sua emoção, um homem de uma perna só ergueu-se, apoiado em muletas, e veio ao seu encontro. “Esse aí ninguém queima”, explicou. “É bonito”.



terça-feira, 9 de abril de 2013

3155) Pelo Estado laico (9.4.2013)





Quem lê meus artigos ou me conhece pessoalmente, sabe duas coisas a meu respeito: 1) Eu sou agnóstico, não acredito na existência de um Deus nem de uma alma humana imortal; 2) Eu não me importo que outras pessoas acreditem nisso, desde que essa crença as torne pessoas melhores e não prejudique os demais. Acho a religião uma coisa importante, mas para mim (para MIM, pessoal e intransferivelmente) a Ciência fornece explicações mais sensatas sobre o Universo, o mundo e o ser humano. “Ah, mas há milhões de coisas no mundo que a Ciência não explica!”. É verdade, mas, e daí? O mundo é novo, minha gente! A Ciência mal começou!

O Brasil é uma República onde todo mundo (pelo menos no papel) tem os mesmos direitos, e que não dá preferência a uma religião sobre as demais. Dar precedência jurídica a qualquer grupo religioso – essa coisa tão subjetiva, tão alicerçada na fé, tão de-foro-íntimo, tão pessoal-e-intransferível – equivaleria a dar poder legislativo a um teoria estética sobre as demais. Permitir, por exemplo, que um gênero literário (ou um ritmo musical, ou um movimento teatral, etc.) tivesse o poder de bloquear todos os apoios governamentais aos outros. Ia ser muito engraçado ver ensaios intitulados – “O Declínio do Romance Realista Urbano no Brasil: Uma Ditadura da Ficção Científica?”.

Religião é uma coisa parecida com a Arte. Não se baseia em verdades universais, mas em crenças pessoais, acreditadas e disseminadas de início por pequenos grupos, que vão se ampliando à medida que ganham adeptos, mas que, em última análise, não têm o direito de impor sua visão sobre os demais. Não há provas consensuais de que qualquer um desses deuses (Deus, Iavé, Allah, Shiva, etc.) exista, assim como não há provas consensuais de que Picasso seja um bom pintor, Glauber Rocha um bom cineasta, H. G. Wells um bom escritor ou Pinto do Monteiro um bom repentista.

Não há como avaliar isso de modo imparcial, objetivo, distanciado. Arte e religião são certezas íntimas cultivadas por pessoas, e merecem o maior respeito. Pelo respeito que merecem, precisam ser deixadas de fora da atividade legislativa e jurídica: porque todas precisam ser levadas igualmente a sério, o que significa que nenhuma delas tem o direito de se sobrepor juridicamente às demais. O Estado brasileiro tem que ser laico em matéria de religião, como garantia de que todas as religiões terão livre curso para suas atividades; e que todas as formas de arte serão igualmente livres para criar.

Principalmente nesta época (“Oh, tempos! Oh, costumes!”) em que é muito mais fácil ficar rico inventando uma igreja do que criando obras de arte. Vamos lutar pelo Estado laico, sempre.


domingo, 7 de abril de 2013

3154) Uma crônica (7.4.2013)



Uma crônica começa a se desenrolar meio preguiçosamente. Precisa apenas de um fio de assunto, que pode ser encontrado num olhar pela janela, numa consulta à estante, na lembrança de um episódio da véspera ou mesmo no mergulho vagaroso em busca da raiz de um sentimento, como quando reagimos diante de um fato e mais tarde estranhamos nossa própria reação. 

Começa então aquele tatear de possibilidades, um jogo de redigir frases simples mas que nos deem a sensação de que uma pedra foi removida. Começa assim a crônica, frases intangíveis removendo pedras pesadas; ou então, quem sabe, como uma pérola ao contrário, um grão de areia que se abre e revela estar cheio de madrepérola por dentro.

Claro que tudo depende da paleta verbal do autor, e até de sua disposição naquele dia – a direção para onde ele foi virado pelos ventos da vida à sua volta. 

A crônica deve ter esse nome porque depende do Tempo, é um jogo de búzios verbais lançados pelo Tempo. Só poderia ser escrita assim hoje, porque amanhã os ingredientes já teriam sido outros, mesmo que o projeto original fosse o mesmo. A crônica não se sente obrigada a contar uma história. A história será bem recebida, se brotar alguma história no decorrer do processo; é uma convidada bem vinda, mas, se não aparecer, a festa acontece do mesmo modo.

O cronista é como um catador de lixo da História, ele procura o que não foi aproveitado, o que passou despercebido, o que ninguém se atreveu a comentar, o que não mereceu atenção, o que foi enxergado apenas por um lado, o que passou em branco, o que entrou pra lista negra, o que nos relatos oficiais ficou meio com uma cor-de-burro-quando-foge. 

Por outro lado, comparado aos autores de imensos murais realistas, o cronista é um cartunista, que em dois-três rabiscos resume uma vida anônima, um sentimento eterno, uma Revolução.

A crônica é plástica, é elástica, é flexível, é multiuso, é multimídia. Como aqueles monstros plasmáticos dos filmes de pesadelo radioativo, ela tudo absorve, tudo dissolve e assimila a si mesma. Pode falar de flores e de beija-flores, de armamentos e de Armageddons, de fantasmas e de malassombros, de política e de polícia, de donos do mundo e de donas de casa. 

Não pode ser definida pela sua temática, nem pela sua extensão, nem pela sua estrutura interna, nem pela emoção que provoca ou pela estante onde é colocada. Talvez seja a primeira das formas literárias, antes do Big Bang que a explodiu em gêneros; talvez seja a última, para onde fluíram todas as anteriores, a que aprendeu com todas e de todas pega algo emprestado. É a aluna prodígio da primeira fila, sempre atenta e sempre ligada, de óculos e sem calcinha.






sábado, 6 de abril de 2013

3153) O cientista Frank (6.4.2013)





Frank se considerou o sujeito mais azarado do mundo quando sua esposa o largou. Felizmente (pensou ele) tenho meu laboratório de Topologia Quântico-Temporal.  As descobertas que fiz nos últimos seis meses, e que estão sendo codificadas por meus assistentes, estão com resultados muito melhores do que os que eu previa, e o relatório está gerando uns três artigos que irão desencadear um novo “Ano Miraculoso” na ciência.

Serões e mais serões se sucediam, e ocorreu que num daqueles intervalos de descontração, que às vezes duravam duas ou três horas, Frank viu-se preenchendo cadastro num saite de relacionamentos. E considerou-se o sujeito mais sortudo do mundo quando, poucos dias depois de se pavonear nos chats, fóruns e assemelhados, descobriu que tinha uma alma gêmea. Uma modelo, muito conhecida e fotografada, mas sofrendo de solidão crônica, tédio e repulsa pelo meio dos paparazzi e do show-business. Queria jogar tudo pra cima, casar, ter uma casa bem tradicional e alegre, ter filhos... “Eu nasci de quina pra lua”, disse, numa frase-feita equivalente, o pobre Frank. “Com 68 anos, gordo, baixinho, vivendo de salário de universidade pública... e uma mulher dessa quer casar comigo”. A essa altura, Frank já conferira que a modelo existia mesmo, e uma rápida intimação ao Google lhe produziu fotos bastante animadoras.

Depois alguns meses de correspondência cada vez mais íntima, ele passou a insistir para que ela o visitasse em Oklahoma, e ela dizendo sempre que estava na ponta aérea entre Paris, Londres, Milão, Zurique e Istambul. Ele terminou de redigir o terceiro “paper” enquanto revisava o segundo e abria a revista que acabava de publicar o primeiro. Logo voltou a se achar o sujeito mais azarado do mundo, porque a prometida turnê dela pela Costa Oeste tinha sido cancelada. Teria sido o encontro dos dois face a face, certamente um jantar juntos, quem sabe mais o quê! Ela disse que ia fotografar uma campanha na Bolívia. Se ele quisesse...

O aeroporto da Bolívia parecia um posto de gasolina, mas quem disse isso foi o executivo da poltrona ao lado; para ele, que nunca saíra de seu Estado, aquilo era um mundo de pulp fiction ou de seriado de TV. O hotel era desconfortável, e na portaria ele recebeu um envelope. O bilhete explicava que a sessão fotográfica tinha sido cancelada. Que ela estava indo para Amsterdam. Mas que por acaso deixara para trás uma de suas malas. Será que ele podia ser um doce, e trazer a mala dela para Amsterdam, onde ele o esperava cheia do amor pra dar? Eu sou o sujeito mais sortudo do mundo, disse ele. Por uma mulher como essa eu faço qualquer coisa.