quarta-feira, 26 de setembro de 2018

4389) "Nós que aqui estamos, por vós esperamos" (26.9.2018)



O poeta Glauco Mattoso dizia que todas as palavras de que é composta a Ilíada já estão no dicionário, só que em outra ordem.

E teve uma roteirista de Hollywood que ouviu um produtor dizer que escrever era apenas colocar palavras na ordem certa. E ela retrucou para o patrão: “É mais do que isso, é colocar as palavras certas na ordem certa”.

A nobre arte da montagem (eu não deixei de pensar em termos do cinema de celulóide e de tela), ou da edição, no mercado financeiro das imagens digitais, consiste em colocar na ordem certa um material que nem sempre se escolheu.

Uma coisa é um diretor montando um material que ele próprio (com ajudantes) concebeu, encenou, filmou, com alguma idéia em mente.

Outra coisa é um montador ou editor receber um material “na linha de montagem”, no sentido de que um editor muitas vezes está recebendo um material “cru” e que às vezes, quando não há diretor disponível, o que ele tem é um roteiro e algumas indicações. As outras decisões serão só suas.

Qual é o inverso disso? É mais ou menos quando diretor e editor são a mesma pessoa, ou melhor quando uma pessoa dirige o que é preciso dirigir e edita onde for preciso editar. O material não é de ninguém, em filmes como Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos, de Marcelo Masagão (1999).

Usando material de numerosos arquivos no Brasil e fora, ele compõe uma história ilustrada do século, mais ou menos organizada com uma sucessão de temas: vida urbana, a guerra, as mudanças tecnológicas, a mulher, as micro-histórias de gente anônima. Nenhuma daquelas imagens foi filmada ou mandada filmar por ele. E muitas delas certamente não conviviam nos mesmos filmes. Talvez estejam aparecendo perto uma da outra pela primeira vez.

Quando Marcelo Masagão recolhe imagens nos arquivos públicos é como se estivesse recolhendo as palavras da Ilíada num dicionário? Eu diria que é mais parecido com estar escrevendo um poema semi-imaginado na cabeça e procurando palavras num dicionário de rimas.

Qualquer pessoa que embarca num projeto assim já prevê centenas de noites em claro e se prepara. Já tem um roteiro. Tem um fio de história, mas está em busca justamente da cena caída do céu, do golpe de sorte de achar o material certo no momento certo.

O filme não ganha muita coisa em ser chamado de documentário. Eu diria que é mais um ensaio de imagem e palavra. Documentário sugere algo um pouco mais científico, ou didático, ou jornalístico; o filme de Maagão está mais para um poema narrativo ou uma crônica sobre a História contemporânea, vista com distanciamento e curiosidade.

Do mesmo jeito que cita Franz Kafka ou Sigmund Freud, o filme cria microficções interessantes usando imagens aleatórias de pessoas anônimas e dizendo que ali é Fulano de Tal. E contar a história de Fulano em duas ou três frases.

A frase que dá o diapasão desse aspecto do roteiro é uma das primeiras: “Numa guerra, não morrem milhares de pessoas. Morre um cara que gostava de espaguete, um cara que era gay, um cara que tinha uma namorada.”

Essa valorização da micro-história lembra as “Novelas em Três Linhas” (1906) de Félix Fénéon, lembra certas enumerações inusitadas de personagens nas páginas de Believe It Or Not de Robert Ripley (1919 em diante), mas lembra mais ainda, pelo tom de elegia, os epitáfios poéticos de Edgar Lee Masters em sua Spoon River Anthology (1914). 

Juntando uma imagem anônima e um nome fictício, ele compõe uma pequena história que equivale às vezes a um cartum, às vezes a uma tirinha de três quadros, mas são sempre duas ou três pinceladas de frases contando uma vida ou lembrando um tempo.

Essas resumos de história são frases mudas, por escrito, surgindo na tela, sumindo, dando lugar a outra. E não caberia uma voz interrompendo ali as espirais melódicas de Wim Mertens, um compositor meio minimalista da escola de Philip Glass.

A música de Mertens é essencial ao filme, como tinha sido a de Glass para Koyaanisqatsi (1982). Esse tipo de música usa a reiteração centrípeta de uma mesma frase, que mantém o fluxo musical inteiro presa a si. Em muitos casos essa continuidade irritante se torna benéfica quando o ouvinte está sendo submetido, ao mesmo tempo, a um jorro de imagens coladas ali de maneira poco convencional.

Quando isso se dá, a música repetitiva vira um trilho, um facho de intenções voltadas para o futuro, sempre aproximando-se da resolução melódica mas geralmente refugando diante dela e iniciando um novo ciclo. Essa música ajuda o espectador a aceitar melhor aquela sucessão de cenas tão apartadas umas das outras.

Ainda não sei se é fato ou ficção o que ele conta do pai de Yuri Gagárin: “O pai de Gagárin conheceu a luz elétrica em 1931. O filho dele, Yuri, conheceu o espaço trinta anos depois, em 1961”. Como a imagem e os dados de Gagárin podem ser facilmente comprovados, isso contamina com certa plausibilidade a primeira metade. Que pode ser uma ficçãozinha do diretor.

Há nessa sequência sobre ciência e máquinas uma hora em que ele mostra uma imagem e identifica o personagem: “Fulano de Tal, Engenheiro Elétrico Nervoso. Está supervisionando 5.700 lâmpadas que precisam estar acendendo e apagando com firmeza amanhã, na inauguração da Exposição Mundial em Paris”.

E logo em seguida mostra um homem negro amarrado às correias de uma cadeira elétrica, ladeado por policiais circunspectos. Entendemos que é um prisioneiro condenado; talvez seja o primeiro a morrer dessa forma. Esperamos que a narração dê essa resposta, mas quando a frase surge na tela diz apenas: “E não havia luz elétrica na casa em que ele morava.” 

Editar vídeo, montar filme, requer um indivíduo com certa resistência à solidão, ao sedentarismo, e também com memória, com paciência, com perfeccionismo milimétrico. E requer também, é claro, o contrário disso: que o montador seja capaz de decisões rápidas, proporcionais à desimportância do detalhe; que não fique com pena do que está cortando; que dialogue com o público através de justaposições, de cadências, de contrastes; e que resista à tentação de utilizar tudo que vê.

Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos foi exibido semana passada no cineclube da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, no Rio, cujas sessões são nos sábados às 14 horas.