domingo, 30 de agosto de 2009

1233) A vida é sonho (24.2.2007)




A trilogia Matrix dos irmãos Warchovsky, no cinema, e a trilogia Neuromancer de William Gibson, na literatura, são narrativas futuristas sobre um mundo socialmente fraturado e de alta tecnologia. 

Apontam na direção de um futuro em que a realidade de carne e osso dos nossos corpos biológicos servirá apenas como infra-estrutura para uma realidade virtual, onde poderemos projetar nossa mente e criar ali todo um novo universo de ambientes, criaturas e interações. 

Viveremos plugados em alguma coisa, e através desse plug compartilharemos mentalmente uma realidade a que nossos corpos não terão acesso.

Elas me lembram um conceito criado por Brian Aldiss para descrever certas narrativas de ficção científica: o Barroco Cinemascope (“widescreen baroque”). Curiosamente essa concepção vem ao encontro de uma das mais notórias idéias do teatro barroco espanhol, aquela que Calderón de la Barca expressou melhor que todos em sua peça A Vida é Sonho (1635), quando diz: 

(...) estamos 
em mundo tão singular 
que o viver é só sonhar 
e a vida ao fim nos imponha 
que o homem que vive, sonha 
o que é, até despertar. 

Os poetas barrocos viviam numa época de fervorosa religiosidade, e procuravam exprimir das maneiras mais variadas esse contraste entre um mundo material cuja existência seus corpos não podiam deixar de reconhecer, e um mundo espiritual que lhes obcecava a mente por completo. O conflito entre a matéria e o espírito, duas realidades irrecusáveis, foi um dos temas mais obsessivos desses poetas.

O que Calderón dizia de seu mundo pode ser estendido à Matrix, o mundo ilusório criado pelas supermáquinas do futuro: 

Sonha o rico sua riqueza 
que trabalhos lhe oferece; 
sonha o pobre que padece 
sua miséria e pobreza; 
sonha o que o triunfo preza, 
sonha o que luta e pretende, 
sonha o que agrava e ofende 
e no mundo, em conclusão, 
todos sonham o que são, 
no entanto ninguém entende. 

No mundo da Matrix, os seres humanos vivem acorrentados no interior de casulos, dormindo um sono hipnótico, tendo sua energia sugada por máquinas incompreensíveis enquanto sua mente sonha sonhos artificiais em que imaginam estar em grandes cidades, andando de carro, trabalhando em escritórios, amando, casando, vivendo, divertindo-se.


No primeiro filme dos Warchovsky, essa vida aparentemente banal e satisfatória é rompida quando um indivíduo (no caso o personagem Neo, de Keanu Reeves) aceita tomar uma pílula que servirá para estilhaçar a ilusão em que vive. 

A sua primeira sensação é de sair do mundo real e penetrar num pesadelo fantástico em que o mundo não é nada do que parecia. Ele poderia dizer, como o personagem de Calderón: 

Eu sonho que estou aqui 
de correntes carregado 
e sonhei que em outro estado 
mais lisonjeiro me vi. 

Se fazemos a equação “a vida é sonho”, dizemos em conseqüência que “o sonho é vida”; rompida a primeira ilusão, nunca mais saberemos distinguir de que lado nos achamos.









1232) O avião está pegando fogo (23.2.2007)




Nacionalismo ou universalismo? Este é um dilema interessante para um escritor de ficção científica, porque o movimento instintivo de sua mente é de fora para dentro. 

Ele vê primeiro o planeta Terra e a humanidade por inteiro, e só depois leva em consideração as divisões políticas e geográficas, que ele sabe serem passageiras, mesmo que durem séculos.

Diferentemente da maioria das pessoas, o aficionado da FC pensa primeiro no Universo e depois em si próprio. A disciplina mental imposta pelo estudo científico e pelas leituras de aventuras que não têm limite no Espaço e no Tempo ensinaram-lhe que ele pode até se considerar o Centro do Universo, mas só pode entender a si mesmo se vier matando a charada, ao mesmo tempo, da periferia rumo ao centro e do centro rumo à periferia. 

Enxergar a si mesmo e ao Universo, ao mesmo tempo, requer uma profundidade de foco que para algumas pessoas é fácil, para outras não é. O escritor argentino Ernesto Sábato tem uma frase magnífica sobre isto, embora algumas das minhas amigas a achem preconceituosa e machista. Disse Sábato: 

“Enquanto o mundo for mundo, vai existir um homem que se preocupa com o Universo enquanto sua casa pega fogo, e uma mulher que se preocupa com sua casa enquanto o Universo pega fogo”.

Deixemos de lado essa diferenciação entre homens e mulheres, e convenhamos: existem de fato pessoas onde esse conflito de prioridades é muito visível. A prova mais óbvia disto é o recente relatório científico sobre o Aquecimento Global. Dezenas de governos nacionais, centenas de milhares de empresas e bilhões de indivíduos estão se lixando para o que vai acontecer ao mundo daqui a 50 ou 100 anos. 

Tudo que eles querem é alcançar seus objetivos, suprir suas necessidades a curto prazo. Preocupam-se com sua casa enquanto o Universo pega fogo. 

Agem como aquele português da piada, que viajava de avião com um amigo que lhe disse: “Ó Manuel, parece que o avião está caindo”. E ele retrucou: “Ora, Joaquim – não é meu, não é teu, então deixa cair!”

Igualmente absurda é a atitude inversa, dos que não se preocupam com o que acontece em sua casa, desde que o Universo esteja passando bem. É o que ocorre com os governos, empresas e indivíduos que fazem o possível para (no jargão de hoje) “se inserir no Processo de Globalização”. O tal Processo provoca surtos eventuais de prosperidade neste ou naquele continente, neste ou naquele país, de acordo com sua conveniência (embora o país ou o continente achem que aquilo está sendo feito para o seu bem). 

Já vi gente dizer: “Se o Brasil quebrar, do jeito que a Argentina quebrou há alguns anos, pra mim tanto faz – vou morar na Europa”. Quem pensa assim não está muito diferente dos portugueses da piada anterior. 

Poderíamos imaginar uma variante. Dois portugueses estão viajando em seu jatinho Legacy particular. O jatinho começa a pegar fogo, um deles se assusta e o outro diz: “Ora, deixa cair. Somos ricos. Amanhã a gente compra outro”.






1231) Choque cultural da prisão (22.2.2007)


(Oldboy)

Li um depoimento de um cara chamado Bob Bunker, que trabalha, nos EUA, com presidiários que precisam ser ressocializados após 20, 30 ou até 50 anos de prisão. Não é fácil lidar com esse pessoal. Eles passam décadas presos, sonhando com o mundo lá fora. E quando finalmente conseguem sair, descobrem que o mundo lá fora não existe mais. O mundo que conheciam, e para o qual esperavam voltar, desapareceu, e foi substituído por um mundo incompreensível. Muitos desses presos tinham apenas ouvido falar em telefones celulares (estou falando de prisões norte-americanas, claro) e na maioria das engenhocas eletrônicas que temos hoje. Quando saem à rua, estranham tudo: as marcas dos carros, a forma das roupas, a comida. Bunker declara que já viu prisioneiros voltarem a cometer crimes apenas para serem mandados de volta para a cadeia, e se sentirem de novo no interior de uma cultura que lhes é familiar.

Esta experiência é semelhante à que médicos já apontaram a respeito de cegos que recuperam a visão. Há casos de pessoas cegas desde a infância que recuperam a visão já na meia-idade, mas têm dificuldade em se adaptar. Um deles disse certa vez: “Quando eu era cego, atravessar uma avenida movimentada era muito fácil. Eu vinha andando até a esquina, parava no lugar certo, e esperava o sinal abrir. Quando as pessoas em volta começavam a atravessar, eu ia junto. Agora, que posso ver, eu percebo todos aqueles carros, com o motor ligado, impacientes, doidos para que o sinal abra e eles arranquem. Fico morrendo de medo, aí fecho os olhos, e atravesso”.

Há um livro de ficção científica de Stanislaw Lem, Retorno das Estrelas, que conta o regresso de um astronauta à Terra. Como viajou próximo à velocidade da luz, no interior de sua nave passaram-se apenas alguns meses, mas na Terra passaram-se séculos. O astronauta tem um choque cultural tremendo, diante de uma Terra incompreensível, na qual não consegue reconhecer o seu próprio mundo.

São três exemplos muito diferentes entre si, mas todos com o mesmo paradoxo. Um sujeito passa de uma situação pior para uma melhor, não se adapta a ela, e prefere em seguida voltar para a situação menos desejável, mas na qual se sente mais à vontade, pois já se acostumou. (Não sei se ocorre isto no livro de Lem, que não li.) São exemplos radicais pela sua nitidez e pelo seu aparente contra-senso, mas revelam uma dinâmica natural da nossa mente. Largamos um emprego aparentemente melhor por um emprego mais tranqüilo, largamos uma casa mais rica por uma casa mais confortável, encaixotamos os troços em Londres e vamos morar em Guarabira. Por que? Para alguns, por batida-de-pino, ou seja, por medo dos desafios, por incapacidade de enfrentar situações desconfortáveis. Para outros, pelo desejo instintivo de viver numa situação que possamos preencher por completo, compreender por completo, viver em plenitude.

1230) Crime e Castigo de Kafka (21.2.2007)


(Alexeieff) 

Guillermo Sánchez Trujillo, um professor de literatura da Colômbia, vem há alguns anos tirando o sono do mundo acadêmico com uma teoria extraordinária, mas muito bem argumentada, sobre a origem da obra literária de Franz Kafka. 

Para resumir, o que diz Trujillo é que Kafka usou obras de Dostoiévski para montar a estrutura de suas histórias. Como se sabe, vários livros de Kafka ficaram incompletos. O Processo era uma porção de capítulos sem numeração, guardados em numerosos envelopes grandes. Quem deu a primeira ordenação de capítulos para publicação foi Max Brod, o amigo a quem Kafka, antes de morrer, pediu que queimasse tudo (claro que ele desobedeceu). 

Os críticos sempre se intrigaram com a aparente desordem em que os capítulos tinham sido envelopados, mas Trujillo explica: eles foram arquivados por Kafka por um critério de proximidade. Os capítulos que provinham de cada trecho de Crime e Castigo foram guardados juntos, independentemente de sua posição na nova versão. 

Nas próximas férias comprarei o livro de Kafka e o de Dostoiévski (já tive os dois, mas sumiram nas voltas da estrada) e vou fazer a comparação. 

Trujillo afirma que o primeiro capítulo de O Processo é uma reescritura do capítulo 3 da segunda parte de Crime e Castigo. Aliás, os três primeiros capítulos do livro de Kafka são os capítulos em ordem inversa desta segunda parte do livro de Dostoiévski (3, 2 e 1). 

É disto que Kafka extrai o clima alucinatório e de pesadelo em seu livro. Porque na segunda parte do livro de Dostoiévski o crime já foi cometido, e nada mais previsível do que a visita de agentes da lei, interrogatórios, etc. Como Kafka pulou a primeira parte, o que vemos é um indivíduo sendo acossado pela Lei, mas sem motivo aparente. 

O arrazoado de Trujillo está resumido em: http://www.kafka.org/index.php?id=184,198,0,0,1,0

E ele vai mais longe, comparando trechos de Dostoiévski com trechos de A Metamorfose, indo ao extremo de apontar diálogos idênticos. O despertar de Gregor Samsa, segundo ele, é todo baseado em três diferentes cenas em que Raskólnikov desperta. Ele faz um cotejo frase a frase que dá o que pensar. 

Uma outra descoberta sua diz respeito à cena da catedral em O Processo, que não tem equivalente em Dostoiévski, mas que ele, guiado por uma referência de Kafka numa carta a sua irmã Otta, localizou num episódio da Viagem a Itália de Goethe. Siga o link acima, leitor, ou encomende o livro (Crimen y castigo de Franz Kafka, Universidad Autónoma Latinoamericana, Medellín, 2002). 

Kafka seria um plagiário? Eu acho que não, porque embora haja essa semelhança de ambiente, de estrutura e até de frases, as duas obras são tão diferentes que não se pode falar em imitação ou em apropriação indébita. Seria mais ou menos como Joyce usando a Odisséia como base para seu Ulisses: há uma semelhança ponto a ponto, mas cada obra tem luz própria.




1229) Poder Total a Custo Zero (20.2.2007)




Todas as vezes que compareço pessoalmente a um set de filmagem ou a um ensaio teatral eu saio de lá arrasado moralmente. Levo dias para me recuperar, e é por isto que freqüento tão pouco estas atividades. 

Não existe forma de criação artística mais difícil do que as que envolvem dezenas de pessoas, centenas de técnicos, onde surgem a toda hora problemas que não podem ser resolvidos, chuva quando era para fazer sol, sol na hora em que se precisava de chuva. Sem contar com equipamento que quebra, material que acaba, ator que adoece ou dá pití, verba que não é depositada, e assim por diante. 

Ainda hoje tenho uma certa vontade (típica de ex-cineclubista) de dirigir um filme, mas basta lembrar de A Noite Americana de Truffaut para rever meus parâmetros. Meu negócio é computador. Se alguém viesse me oferecer dez milhões para dirigir um longa, eu me esconderia atrás do “no-break”.

É por estas e outras que celebro hoje duas formas baratas e megalomaníacas de criação artística: a Literatura e o Rádio. Temos ali duas coisas que nunca passam pela cabeça de diretores de cinema, teatro, TV, ópera, o escambau: Poder Total e Custo Zero. Os limites são apenas os limites da nossa imaginação; e os custos, bem, não são zero mas são irrisórios. 

Podemos simbolizar a Literatura e o Rádio na forma de uma fração ordinária cujo numerador, o poder de criação, aproxima-se de Mais Infinito, e cujo denominador, o fator custos, tende a Zero.

James Cameron gastou centenas de milhões de dólares para filmar o naufrágio do Titanic. Eu faria o mesmo pelo rádio, usando apenas arquivos de sonoplastia: motor de navio, buzina de navio, choque, colisão, sirenes, multidões histéricas, glub-glubs generalizado, e uma dúzia de atores fazendo 150 papéis. 

Quando eu era pequeno, nos anos 1950, ouvia alguns seriados de ficção científica (cujo nome infelizmente não lembro mais) em que gigantescas naves cortavam o espaço, batalhas ferozes destruíam esquadras inteiras, seres alienígenas horrorosos surgiam arfando junto do nosso ouvido – e tudo aquilo, sei hoje, eram meras esculturas sonoras feitas em estúdio com um sortimento variado de panelas, torneiras, ventarolas, apitos, e outros artigos de camelô.

Na Literatura é o mesmo, só que mais barato ainda. 

“Do alto da colina, o imperador Napoleão contemplava os milhares de corpos ensangüentados de cavaleiros franceses, cujas cargas se estilhaçavam de encontro aos quadrados da infantaria comandada pelo general Wellington...” 

Por mais que o cinema tenha procurado reconstituir a batalha de Waterloo, nenhum filme pode se comparar às dimensões épicas do que Victor Hugo fez com pena e tinteiro durante Os Miseráveis

Literatura e rádio são imbatíveis porque dependem principalmente da palavra (e no segundo caso, de efeitos de áudio) para fazer com que a imaginação do público levante vôo junto com a imaginação do autor, numa “folie-à-deux” benigna onde o céu é o limite.





sábado, 29 de agosto de 2009

1228) Búzios, I-Ching e repente (18.2.2007)




(ilustração: www.thebluething.com)

Alguns sistemas divinatórios acreditam que cada momento que vivemos faz parte de uma harmonia cósmica que obedece a um certo “tom” ou diapasão. Cada instante do Tempo tem um fator que lhe é característico, algo como uma cor ou uma nota musical. 

Cabe ao adivinho captar esse fator e interpretar as ações passadas e futuras do consulente de acordo com esse vislumbre. Alguns jogam búzios, e interpretam o momento de acordo com as posições em que os búzios caem, as configurações que eles formam quando se imobilizam. 

Outros, que praticam o I-Ching, fazem o mesmo ao escolher varetas de diferentes extensões, ou ao atirar moedas, e com isto compor hexagramas de linhas inteiras ou partidas.

O que é a posição dos búzios, ou o hexagrama assim obtido? É uma polaróide daquele instante, e revela, para o olho treinado do adivinho, qual é o “clima” daquele momento, sugerindo assim de que maneira o cliente pode se comportar para estar em harmonia com o ritmo das coisas. 

O I-Ching pronuncia aquelas sentenças meio misteriosas, tipo “é conveniente atravessar a grande água” ou “o governante sábio pensa duas vezes antes de agir”. Isto não é, para quem acredita no sistema, um simples conselho – e conselho, afinal, qualquer um pode dar a qualquer um. É uma revelação sobre a dinâmica das forças do Universo naquele momento. Quem tem juízo marcha de acordo com ele.

O Repente tem algo em comum com estes processos. Feito na hora, no calor do momento, ele brota da mente de um poeta que está totalmente concentrado naquilo que faz, e compõe versos onde estão misturadas as suas emoções e as emoções da platéia, os assuntos que foram abordados até então, os acontecimentos da cidade e do mundo naquele dia, as pessoas presentes, os pequenos detalhes fortuitos que a todo instante se intrometem na cantoria. 

Tudo isto são búzios e mais búzios que o poeta sacoleja no juízo e joga para o ar, ou, mais precisamente, são palavras que é preciso agrupar sempre em forma de sextilha, cuja semelhança gráfica com um hexagrama chinês nunca deixou de me maravilhar.

Certa vez, numa cantoria entre Otacílio Batista e Oliveira de Panelas, no Bar Canarinho, anotei esta sextilha de Oliveira: 

Me rebolo como bola
me viro igual a bozó
de um lado sou como dado
do outro sou dominó
que se não tivesse os furos
seria uma coisa só.

É um ótimo verso, em que o poeta usa uma sucessão de formas geométricas. 

Primeiro a bola, que caia como cair sempre cai do mesmo jeito. 

Depois, o bozó ou dado, que é o contrário da bola, e a cada vez que é jogado cai revelando uma face diferente, servindo aqui como metáfora do próprio repente. 

E por fim o dominó, que não é jogado ao acaso, mas deve ser conectado às peças que já saíram antes, e que, como a sextilha, tem a obrigação de “pegar na deixa”, rimando (no caso, numericamente) com a peça da ponta. 

Será que o poeta pensou nisso tudo, ao compor o verso? Não importa. O Universo pensou por ele.





1227) “O Ilusionista” (17.2.2007)



Existem poucas coisas tão fascinantes quanto a arte de Mágica de palco do século 19, aquela Arte-Ciência baseada em espelhos, luzes, fundos falsos, alçapões, engenhocas mecânicas ou elétricas cuidadosamente disfarçadas. E o objetivo disto tudo é o mesmo objetivo do Cinema: fazer o público pensar que está vendo coisas que na verdade não estão ali. O Ilusionista, segundo filme de Neil Burger, explora este universo muito próximo da narrativa fantástica, porque o tempo inteiro vemos coisas impossíveis acontecerem na nossa frente. Sabemos que é truque, sabemos até de que maneira o truque foi praticado, mas não deixamos de nos maravilhar.

Gostei do personagem do Príncipe Leopold, um racionalista empedernido, aquele típico intelectual cético que diante de uma mágica bem-feita sente-se inseguro, sente-se ameaçado, irrita-se, proclama que aquilo não passa de um truque, e tenta o tempo inteiro provar a todo mundo que é mais esperto do que o cara que fez o truque. Ou seja, é O Crítico (de cinema, literário, do que fôr) no que esta sofrida categoria tem de mais insuportável. Para ele é uma questão de vida ou morte, porque está a ponto de destronar o pai para assumir o Império, e não pode ser enganado impunemente por um simples prestidigitador. Eis um dos subtemas que percorrem o filme: quem tem mais poder, o sujeito que governa um Império ou um sujeito que faz uma árvore crescer e dar frutos diante dos nossos olhos?

Em sua segunda parte o filme penetra num terreno, a mistura entre magia de palco e espiritismo, que é a cara do ambiente em que transcorre, a Viena no fim do século, quando Freud estava começando a construir a psicanálise (vi um ou dois senhores barbudos na platéia do mágico Eisenheim que bem poderiam ser o nobre doutor). Era uma época em que nos salões intelectuais discutia-se o hipnotismo (chamado “mesmerismo”), a comunicação com os mortos, a telepatia. Quando Eisenheim “evoca” os ectoplasmas de pessoas mortas para o palco, estamos em plena terra-de-ninguém entre o mero ilusionismo e o sobrenatural. Muitos falsos médiuns ficaram ricos nessa época, usando a maquinaria do teatro para fingir a presença de espíritos desencarnados. O Ilusionista, que é também uma história de mistério policial, usa essa ambiguidade como efeito de suspense, ao trazer de volta à Terra o espírito da pessoa assassinada, para denunciar o criminoso.

O filme de Neil Burger tem uma superfície impecável (fotografia, atores, direção artística, música) e um roteiro curioso que me deu vontade de ler o conto original, de Stephen Millhauser. É uma história de mistério que na reta final usa aquele recurso que chamo de “clip explicatório”, já visto em filmes como O Sexto Sentido ou Os Suspeitos: uma rápida saraivada de imagens em flash-back que nos fazem reinterpretar cenas já vistas e descobrir, junto com o personagem, o que realmente aconteceu. Não vou dizer para não estragar o truque.

1226) “O Perfume” (16.2.2007)



Os dez primeiros minutos deste filme são de tirar da sala qualquer espectador que tenha entrado ali apenas em busca de uma poltrona enquanto come pipoca e fala ao celular. Reconstituindo a sujeira e a violência das ruas de Paris no século 18, ele nos oferece uma antologia impecável de imagens de sujeira e violência, e nos faz mergulhar de cabeça no ambiente onde nasce Jean-Baptiste Grenouille, o homem que tem o olfato perfeito.

O livro de Patrick Susskind foi grande best-seller há 20 anos. Muita gente deve lembrar dele. A adaptação é cuidadosa, fiel, visualmente impressionante. Descrever cheiros, seja com palavras ou com imagens, só é possível através de associações de idéias, e o filme o faz tão bem quanto o livro. (Se não leu o livro, caro leitor, vá dar uma olhada; seu olfato sairá muitíssimo enriquecido). Em alguns momentos me veio à memória aquele filme recente (Entre Umas e Outras, ou Sideways) em que um cara degusta vinho e faz descrições mirabolantes dos sabores que está sentindo.

O Perfume não é só isso. É também a história de um serial-killer, e talvez isto tenha ajudado na realização deste filme caríssimo, porque o cinema elegeu o serial-killer como símbolo de nossa época (Freud explica). É uma história de ficção científica, pois mostra como é possível, através de manipulações químicas, controlar e manobrar as emoções das pessoas. É também um conto fantástico, ao postular um indivíduo com uma percepção sensorial impossivelmente aguda e sem nenhum odor em seu próprio corpo. Vi algumas críticas onde se comentava que Grenouille, o Homem Que Não Tem Cheiro, seria por causa disto o próprio Diabo, o que me trouxe à mente a lenda que comentei nesta coluna em “O Diabo: o homem que não sua” (5.4.2006).

Grenouille mata mulheres para extrair a essência de seus corpos e fabricar o perfume perfeito, capaz de produzir em quem o sente a ilusão de estar no Paraíso. Seu mestre Baldini (Dustin Hoffman) tem, para explicar a beleza dos perfumes, uma teoria musical baseada em notas, acordes dominantes e sub-dominantes. Grenouille me lembrou o filme Amadeus de Milos Forman: é um Mozart maligno. Diante de uma linda mulher, ele, nascido na sarjeta e criado no submundo, não sabe o que fazer com ela, a não ser roubar e guardar, com a obsessão de um vampiro avarento, o precioso líquido em que aquela beleza foi destilada em essência.

O diretor é o mesmo de Corra, Lola, Corra (que comentei aqui em 9.12.2005). Dois filmes de tema, técnica, estilo e espírito completamente diversos – o que, para mim, é uma excelente recomendação para um diretor de cinema. O Perfume é uma dessas raras adaptações cinematográficas tão densas quanto o livro original. Não é para todos os gostos, mas, ao contrário dos filmes de Hannibal Lecter, não glorifica o sadismo ou a crueldade. O assassino é desumano o bastante para que não queiramos nos identificar com ele, e possamos acompanhar de fora a limpidez de sua obsessão.

1225) A Utopia e o Apocalipse (15.2.2007)




(Eduardo Galeano)

Uma vez vi um comandante de navio explicando a dificuldade de manobrar um daqueles petroleiros que cruzam os oceanos: “Por ser um navio muito pesado, ele responde muito lentamente ao freio, e só pára de fato 10km depois. Portanto, se a gente avistar um iceberg a 9km, não tem mais jeito a dar: já bateu. É só ficar esperando, e rezar”. 

Não sei se ele falou em rezar; escapou-me agora, no instante da digitação, como nos escapa pelos dedos a maior parte dos clichês que trazemos na mente e que jamais seriam aprovados pela censura estética da nossa consciência. 

Mas o fato é que em momentos assim, com um iceberg 9 quilômetros à frente, nossos dedos reagem de moto próprio. Indicador e médio cruzam-se dentro do bolso da calça, para que ninguém nos veja regredindo à superstição. Ou então fazemos o sinal-da-cruz, ou batemos na madeira fingindo que estamos tamborilando os dedos, despreocupados. 

Primeira lição a extrair disso: quer saber o que o Inconsciente de um sujeito está pensando, olhe para o que fazem os seus dedos.

Todo este papo de cerca-lourenço do parágrafo anterior é sintomático do sujeito que sabe que tem uma coisa desagradável para dizer e fica enrolando, falando em redor, com medo de se aproximar do centro. Mas nove quilômetros passam rápido, e aqui chegamos. 

Todos os leitores devem ter sabido do relatório ambiental divulgado dias atrás por uma equipe internacional de cientistas. O recado que eles nos dão sobre o aquecimento global pode ser resumido mais ou menos assim: aconteceu algo de terrível com o planeta. Não pode mais ser evitado; já aconteceu, e por culpa nossa. Tudo que podemos fazer agora é preparar o mundo para as conseqüências, que só virão, aos poucos, durante as próximas décadas. 

Ou seja, o navio já bateu, e os pilotos que podiam tê-lo desviado não o fizeram. Coloquem os salva-vidas. Os que ainda não sabem nadar podem se matricular no curso de natação a ser ministrado na piscina do convés.

A consciência de um Apocalipse pode ser estranhamente reveladora para o ser humano. Tem gente que só se mexe quando sabe que aconteceu uma catástrofe. O Apocalipse tem o efeito inverso da Utopia. O escritor Eduardo Galeano afirmou certa vez: “A Utopia está no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela afasta-se dois passos. Caminho dez passos e o horizonte afasta-se dez passos. Por muito que caminhe, nunca a alcançarei. Para que serve a Utopia? Para isto: serve para caminhar”. 

Um Apocalipse anunciado, uma tragédia que se anuncia para o futuro, pode ter um efeito semelhante. Dá tempo para o mundo inteiro se preparar. Ninguém pode se queixar de estar sendo colhido de surpresa. A ficção científica, por exemplo, vem anunciando essas catástrofes ambientais desde os anos 1960. 

Para que servem o Aquecimento Global, o Degelo dos Polos, a Invasão dos Oceanos, a Submersão das Cidades Litorâneas? Para isto: serve para caminhar. Não precisam preocupar-se com você mesmos; mas preparem seus filhos.






1224) O que é descartável (14.2.2007)




A palavra “descartável” virou um termo pejorativo no jornalismo cultural de hoje, que fala o tempo inteiro em músicas descartáveis, filmes descartáveis, etc.  Ao que parece, esta palavra só se redime em “fraldas descartáveis”, porque está aí uma coisa que ninguém quer ficar acumulando depois de usar. 

Em primeiro lugar, devemos reconhecer que a maioria dos produtos culturais que compramos são descartáveis mesmo. No começo da adolescência, garotos se livram de seus Cebolinhas e Patos Donald, porque agora estão lendo X-Men, e mais adiante se livram dos X-Men quando começam a ler Playboy

Livramo-nos destas coisas como nos livramos dos livros escolares do 2o. grau e da Faculdade. Depois que cumprem sua função imediata, são descartados. E nem por isso deixam de ser úteis ou necessários.

Em segundo lugar, ninguém mantém consigo, indefinidamente, todos os livros e todos os discos que compra ao longo da vida. Todo mundo “faz uma limpa” de vez em quando, porque o apartamento está cheio. Numa hora assim, é preciso estabelecer prioridades, e aí centenas de livros já lidos vão para o sebo, e dezenas de discos são repassados para os amigos. 

Qualidade não é a questão. No meio desse “bolo” pode ter desde Beethoven a Jorge Amado. Mas aquilo não tem mais necessidade imediata, já foi assimilado. Dá pra descartar, repassar para quem precise mais do que a gente.

Na vida, como no jogo de buraco, a gente conserva ou descarta em função da estratégia imediata, do jogo que está sendo jogado no momento. Já me mudei de um apartamento, na Bahia, deixando para o próximo inquilino uma coleção de “O Pasquim” com mais de um metro de altura. Na época, tinha perdido a importância; hoje me arrependo um pouco, mas tudo bem, é assim mesmo que essas coisas funcionam. 

Descartamos o que não contribui para as canastras que estamos tentar montar naquele momento. O próximo jogo é outra história.

O descartável que traz algum perigo é de outra natureza. É tudo aquilo que, uma vez comprado, tem que ser substituído rapidamente por outro, porque o surgimento de um modelo novo envelhece instantaneamente tudo que existia antes; é um dos princípios básicos da Moda. 

No caso da indústria cultural, os produtos de janeiro são efêmeros porque os de fevereiro precisam ocupar as vitrines e fazer tilintar a registradora. E essa rapidez de substituição tem outra função. O produto precisa ser rapidamente esquecido para que daqui a dez ou quinze anos possa ser recordado (nessas ondas de nostalgia, tipo Almanaque dos Anos 80, etc.) e vendido de novo, porque lembra ao consumidor uma época que (na memória dele) “passou voando”. 

Claro que passou voando: as modas se sucediam com tal rapidez que ele não teve tempo de se acostumar com nada, de esgotar o interesse de nada. Essa produção cultural é como a impressora barata, que serve para vender o cartucho-de-tinta caro.








1223) Thomas Pynchon (13.2.2007)



Desde que saiu o novo livro de Pynchon, Against the Day, voltei a experimentar um ligeiro senso de irrealidade diante das reações de outras pessoas a uma obra de arte. Porque há quem o deteste, e há quem adore de joelhos cantando aleluias. Há quem ache o livro um pouco longo, e quem lamente o fato de que é curto demais (tem 1.100 páginas). Pynchon é um dos escritores mais idolatrados da literatura americana. Lança um livro por década, o que é um ritmo adequado para seus romances enormes, maciços, atulhados de referências culturais do tipo que chamamos (via “O Pasquim”) de “horta da Luzia”: detalhes de objetos, costumes, programas de rádio, vestuário, provérbios, toda uma gigantesca antropologia do cotidiano que Pynchon parece pesquisar exaustivamente (ou então tem memória de elefante) para encaixar nas narrativas.

Li pouquíssima coisa dele. Apenas alguns artigos na imprensa, alguns contos do raro volume Slow Learner que achei na extinta e saudosa biblioteca do Consulado Americano no Rio. E lá mesmo me sentei numa poltrona tendo de um lado sua obra mais impactante, Gravity’s Rainbow, e do outro o volume A Gravity’s Rainbow Companion, um desses compêndios que os americanos adoram, analisando e explicando linha por linha um romance famoso. Li umas 50 ou 100 páginas e parei para descansar, até hoje. A prosa é densa como música orquestral. O vocabulário, inesgotável: as palavras que não acho no Webster’s encheriam outro Webster’s. E, surpreendentemente, não é um autor chato. É engraçadíssimo, cheio de frases brilhantes, e é doido-de-pedra – quando a gente menos espera, a narrativa dá um salto mortal e vai parar num lugar completamente diferente, como num filme dos Irmãos Coen. A toda hora os personagens cantam baladas ou recitam versinhos satíricos, impecavelmente rimados e metrificados. Pode ser difícil, mas nunca é chato.

Aqui no Brasil já saíram traduzidos alguns livros seus: O Leilão do Lote 49 (o mais fininho e mais acessível), V, O Arco-Íris da Gravidade e se não me engano Vineland. Traduzir Pynchon é mais difícil do que traduzir Joyce. No caso de Joyce, quando não se tem idéia do significado de algo, basta reinventar, porque pode ser qualquer coisa, e no caso de Pynchon, provavelmente aquilo tem uma resposta exata, mas só quem conhece aquela expressão são os membros do Sindicato de Plantadores de Tomate do Wisconsin da década de 1940. (E, pensando bem, acaba dando no mesmo)

Thomas Pynchon fez sua fama através desta literatura complexa, inventiva e embebida de cultura americana. E também através de sua reclusão voluntária, sua recusa a dar entrevistas (mais ou menos como Rubem Fonseca faz), a se deixar fotografar. Quem quiser conhecer mais sobre este OVNI literário, vá ao seu portal no saite “The Modern Word”, intitulado “Spermatikos Logos”: http://themodernword.com/pynchon/pynchon_intro.html . Tem assunto para uma vida inteira.

1222) “Carinhoso” (11.2.2007)




Parei para escutar pela milésima vez “Carinhoso”, que já toquei tanto ao violão em antigas serenatas. Belo exemplo de letra que se encaixa numa música pré-existente, letra submissa à música, sem poder alterar uma nota sequer da melodia. Se alguém dissesse que a letra foi feita primeiro, e depois musicada, muita gente acreditaria. Segundo consta, a melodia foi composta por Pixinguinha em 1917, e gravada em forma instrumental em 1928. Em 1936, por sugestão da cantora Heloísa Helena, Braguinha se dispôs a “letrar” aquela música que, embora conhecida no meio artístico, não tinha produzido qualquer impacto no público. Pixinguinha ensinou-lhe a melodia, tintim por tintim. Ele foi para casa, e no outro dia trouxe a letra pronta. Orlando Silva a gravou em 1937, e o resto, inclusive as duzentas regravações desde então, é História.

A canção vai se abrindo aos poucos. “Meu coração... Não sei por que...” Duas frases melódicas idênticas, às quais se sucede uma terceira, em melodia ascendente (“Bate feliz...”) e uma quarta que se ergue triunfal (“Quando te vê!...), recriando de maneira quase dramatúrgica a emoção do surgimento da mulher amada. Em seguida, melodia e letra saem como que valsando juntas pelo espaço afora, numa sucessão de frases e acordes: “E os meus olhos / ficam sorrindo / e pela rua / vão te seguindo...” Um rodopio de felicidade que vai amainando aos poucos quando letra e melodia se recolhem, tímidas, imobilizando-se na constatação grave: “Mas mesmo assim... foges de mim”.

Vem uma modulação, iniciando outra seqüência (é uma canção de estrutura dramática, mesmo não sendo nem narrativa nem visual). Novamente sozinho, o poeta “muda de tom” no pensamento, e fala consigo mesmo dirigindo-se a Ela: “Ai, se tu soubesses / como eu sou tão carinhoso / e o muito, muito que te quero, / e como é sincero o meu amor, / eu sei que tu não fugirias mais de mim...” Vejam com que fluência estas frases se sucedem na melodia, exprimindo sem esforço um conceito que sintaticamente só se fecha no final (“se tu soubesses, não fugirias”). E então o poeta chama, clama, reclama em quatro notas e quatro imperativos: “Vem! Vem! Vem! Veeem!...” Braguinha, com simplicidade e nitidez, sentiu a necessidade de um mesmo monossílabo, para corresponder à subida e à insistência da melodia.

O quarto “vem” vai meio-tom além daquele “vê” (do “quando te vê” da primeira estrofe), e o poeta, como quem finalmente ultrapassou uma barreira, exige: “Vem sentir o calor / dos lábios meus / à procura dos teus...” E em seguida, letra e música voltam a valsar juntas em acordes sucessivos: “Vem matar / esta paixão / que me devora o coração / e só assim então / serei feliz / bem feliz”. A canção termina igualmente numa frase descendente, mas agora é o repouso após o triunfo. Calado, contemplativo, o poeta permitiu que a melodia arrebatasse suas palavras, e libertasse tudo o que tinha para dizer. Chama-se a isto Uma Aula De Letra.




terça-feira, 25 de agosto de 2009

1221) “Planolândia” (10.2.2007)



A Conrad Editora lançou o livro Planolândia, que não sei se é a primeira tradução brasileira do clássico Flatland, de Edwin Abbott, um dos livros ingleses mais idiossincráticos do século 19. Flatland tornou-se um clássico da literatura de divulgação científica, por ser a descrição de um mundo puramente geométrico, habitado por formas geométricas que se comportam como os homens e mulheres da Inglaterra vitoriana. Lançado em 1884, o livro postula a existência de vários mundos baseados na geometria. Em “Pontolândia” existem apenas pontos; em “Linhalândia”, apenas linhas e pontos; em “Planolândia”, existem planos, linhas e pontos; e em “Espaçolândia”, que seria análogo ao nosso mundo, existem sólidos, planos, linhas e pontos.

Cada um desses mundos, portanto, tem uma dimensão a mais em relação ao outro, e isto faz com que um mundo mais complexo não possa ser visto nem compreendido pelos olhos dos habitantes de um mundo mais simples. Uma criatura de Planolândia não concebe a natureza de um Cubo ou de uma Esfera, porque vive num mundo plano, achatado, como uma folha de papel. Ali, as criaturas vivas têm formas de linhas, triângulos, pentágonos, círculos, etc., mas são formas achatadas, que deslizam sobre a “folha de papel” que é seu Universo.

O livro de Abbott pertence a uma série de obras que contam histórias humanas através de formas matemáticas e geométricas, o que faz delas uma mistura de tratado filosófico, sátira social e divulgação científica. Entre elas estão os livros de “Alice” de Lewis Carroll, cheios de paradoxos e quebra-cabeças matemáticos, e os Relatos Científicos de Charles H. Hinton (coletânea que inclui “A Plane World”, “What is the Fourth Dimension” e “The Persian King”). Os livros de Carroll são conhecidíssimos no mundo inteiro; o mesmo não ocorre com os de Hinton, surgidos em 1886, e que em parte foram inspirados pelo sucesso de Planolândia.

Edwin Abbott (1838-1926) foi um dos grandes educadores de seu tempo. Publicou livros sobre todo tipo de assunto, mas parece que sua permanência nas livrarias, 120 anos depois, se deve a este volumezinho de 90 páginas (na edição da Penguin), onde ele conta as aventuras e desventuras de triângulos, quadrados e círculos. Romances recreativos como este contribuíram muito para elastecer a imaginação de gerações inteiras quanto ao mundo paradoxal das dimensões. Sem ele, H. G. Wells talvez nunca tivesse ousado propor, em A Máquina do Tempo (1895) o conceito do Tempo como uma “quarta dimensão”, engenhosamente justificado para fins narrativos, mas cientificamente questionável. A dificuldade dos habitantes de “Planolândia” em entender a verdadeira natureza física de uma Esfera (que eles não distinguem de um Círculo) reflete em grande parte os bloqueios conceituais de nosso próprio mundo. Só enxergamos o que conseguimos compreender.

1220) Os reféns do robô (9.2.2007)




Raul Seixas dizia, numa canção famosa, que o ser humano só usa dez por cento de sua cabeça animal. Não sei se é verdade científica, mas o fato é que quando ele disse isto todo mundo acreditou na mesma hora. Por que? Porque sentimos, intuitivamente, que é verdade. Sabemos que durante a maior parte do nosso tempo estamos sub-utilizando nossos neurônios. 

Vivemos numa espécie de sonambulismo lúcido, que nos permite conversar, sair de casa, trabalhar, comer, ir ao cinema, usando apenas um mínimo da inteligência de que dispomos. Um enorme desperdício – mas é tão cômodo, e nós somos tão preguiçosos... Não custa nada viver assim. Dá menos trabalho.

Os cientistas têm utilizado a ressonância magnética para mapear o que acontece no cérebro das pessoas quando estão executando tarefas e quando estão simplesmente descansando entre uma tarefa e outra. Voluntários recebem cálculos mentais, ou tarefas de memorização, e o resultado da ressonância mostra certas áreas do cérebro intensamente envolvidas. 

Nos intervalos, quando são deixados a sós, mas ainda sob monitoração, outras áreas, as mesmas em cada indivíduo, assumem o comando. Depois, todos confessam que estavam “pensando bobagem” ou devaneando.

Colin Wilson é um dos ensaístas que mais se desesperam com este estado de coisas. Ele compara nossa mente consciente a um robô, a um piloto automático, e analisa (em O Oculto, ed. Francisco Alves) a obra de Gurdjieff, pensador russo que para uns era um mago, para outros um charlatão, mas que parece ter compreendido como ninguém certos segredos do funcionamento de nossa mente. 

Para Gurdjieff, o que chamamos de consciência não passa de um devaneio constante. Nossa mente só desperta de verdade quando algo urgente nos ocorre, ou quando experimentamos um estímulo mental muito poderoso (uma música, um texto, etc.). 

Nesses momentos, mente e corpo acendem todas as suas luzes, passam a trabalhar a todo vapor. Somos invadidos por uma energia que não sabemos de onde surgiu; nossa percepção sensorial se torna aguda e nítida, nossa mente parece raciocinar a uma velocidade espantosa.

Perguntam Gurdjieff e Wilson: não poderia ser assim o tempo todo? Por que nos resignamos a esta vida mecânica, repetitiva, em que achamos que estamos “acordados” simplesmente porque estamos andando na rua e conversando com outras pessoas, mas na verdade estamos num estado meio sonambúlico? 

Psicólogos e neurologistas têm confirmado estas opiniões de Gurdjieff. Para eles, passamos a maior parte do tempo reféns do robô, entretidos em devaneios sem rumo, recordando fatos recentes ou planejando coisas: um trabalho, uma conversa com alguém. Tudo isto exige apenas um mínimo de esforço mental, e é algo que brota espontaneamente em nosso cérebro quando ele não está sendo exigido para nada urgente, mais ou menos como um “screen saver”, ou protetor de tela, toma conta do monitor de nosso computador se ele passar algum tempo sem ser utilizado.






1219) Ancestrais do Big Brother (8.2.2007)



Cerca de vinte anos atrás, li um livro de ficção científica de John Brunner cujo título em português agora me escapa, mas que em inglês se chama The Productions of Time. Um sujeito recebe um convite, para passar algumas semanas numa casa de campo. Lá, ele se depara com um grupo de dez ou quinze outros convidados, pessoas que não se conhecem entre si. A permanência na casa está condicionada a certas regras meio restritivas, que eles não obstante aceitam, porque o ambiente é confortável. O que ocorre a seguir eu não me lembro, porque é totalmente irrelevante; sei apenas que os hóspedes se envolvem em longas discussões, brigas e paqueras. Nos últimos capítulos, o protagonista começa a desconfiar de alguns equipamentos estranhos que vê em lugares estratégicos da casa, embaixo da cama, etc. E vem a revelação final: tudo aquilo era um imenso cenário, com câmaras e equipamento de gravação. A vida dos hóspedes estava sendo gravada e retransmitida por indivíduos que (ao que parece) vinham do futuro e queriam estudar a espécie humana em seu habitat natural, no século 20.

O livro é de 1966, e para mim é mais uma das numerosas antevisões feitas pela FC deste curioso espetáculo que no Brasil ganhou o nome de “Big Brother”. A noção básica é que um dos passatempos principais, num mundo dominado pela TV, é espionar a vida alheia. Brunner foi um dos grandes da FC britânica, um escritor culto e versátil cujas obras misturavam FC com xadrez (The Squares of the City, 1965), com telepatia curativa (The Whole Man, 1964), com teatro (The Dramaturges of Yan, 1972). Espero não morrer um dia sem ter perlustrado as 573 páginas de Stand on Zanzibar, um épico em larga escala sobre o mundo de hoje, mas publicado em 1968.

A FC sempre explorou esse lado mórbido dos seres humanos. “Vintage Season” (1946), escrito por C. L. Moore e Henry Kuttner sob o pseudônimo Laurence O’Donnell, mostra viajantes endinheirados do Futuro desembarcando na Terra a tempo de contemplar grandes catástrofes ou belos crepúsculos mencionados em obras históricas ou literárias. The Heaven Makers (1968), de Frank Herbert, mostra a vida de pessoas de carne e osso servindo de videogame para criaturas super-poderosas.

Brunner tinha um interesse imaginativo pela interferência dos meios de comunicação em nossa vida diária. Outro livro seu, que não conheço (Players at the Game of People, de 1980) foi comparado ao filme O Show de Truman, por descrever um sujeito cuja vida é acompanhada por pessoas ricas como se se tratasse de uma telenovela ou um jogo. Brunner conhecia bem o impulso “voyeurístico” que viria a alimentar os “reality shows” de nossa era. Se alguém descreveu com ironia, desencanto e visão profética alguns dos excessos do mundo de hoje, em que as telecomunicações criam jogos para explorar o sado-masoquismo manipulatório das massas, foi gente como Brunner, Kurt Vonnegut e Robert Sheckley.

1218) A ética dos descrentes (7.2.2007)




O que pensadores religiosos de hoje questionam (como no livro Em que crêem os que não crêem, de Umberto Eco e Carlo Martini) é a dificuldade de estabelecer valores universais fundados na mera experiência humana. 

Ciência e Religião têm, entre tantas coisas em comum, a busca pelo Absoluto. A exigência de um ponto de referência inquestionável, que servisse de referência para todos os outros valores, foi, ali pelo século 17, um paradigma comum à ciência e à religião. 

Monoteísmo e física newtoniana têm um perfil muito semelhante. Existe um Centro. Existe um valor fixo, arbitrariamente estabelecido pela fé científica ou pela fé religiosa.

Quando Einstein estilhaçou o conceito físico do tempo absoluto, espaço absoluto, e todo o resto, criou um vácuo a mais entre ciência e religião. 

A física de hoje não reconhece o Absoluto, reconhece apenas “constantes”, certas grandezas inexplicáveis e inevitáveis na Natureza (a velocidade da luz, a massa do elétron, etc.). 

Essas constantes, cujo valor matemático precisa sempre ser levado em conta, são as vigas fundamentais da Natureza; todo o resto muda, elas não. São o que a Ciência de hoje tem de mais parecido com o antigo senso do Absoluto.

Ecos da mentalidade monoteísta ainda permanecem. A Teoria do Big Bang, segundo a qual o Universo estava todo concentrado num ponto, o qual explodiu, dando origem às atuais galáxias, exprime essa necessidade básica do pensamento monoteísta: a de que a Realidade tem um Centro, e pode ser visualizada como um círculo ou uma esfera. 

Quem acredita no Absoluto tem, quase sempre, uma visão geométrica das coisas. Seu Absoluto geralmente é regido por algum tipo de simetria. Círculo e esfera são formas básicas, intuitivamente atrativas; mas nada nos garante que o Universo não tem a forma, por exemplo, de uma folha de papel pautado ou de uma ampulheta.

Cosmologia à parte, esta necessidade de um Centro se dá também no plano moral. Mesmo quando julgamos as ações humanas tendo em conta que “cada caso é um caso”, essas avaliações não podem partir do zero. 

Os pensadores laicos, que não crêem no Absoluto metafísico, tentam colocar em seu lugar algumas constantes humanas de comportamento e de moral, às quais possam se apegar para elaborar leis e códigos. 

Não se pode reinventar a Ética, a Moral e o Direito a cada novo problema que surge, mas podem-se empregar constantes que não sejam mutuamente contraditórias. Verdades que se apóiam como aqueles muros onde as pedras não são unidas por argamassa, mas se fixam umas às outras devido ao peso de cada uma.

É possível criar uma Moral sem Deus, assim como já foi possível ter um Deus e atribuir-lhe uma Moral sanguinária ou colonialista (como no tempo em que, para a Igreja, os índios da América não tinham alma, e podiam ser mortos impunemente). 

As “constantes” morais dos não-cristãos refletem a sociedade que as cria. O teste de sua validade é o que acontece com a sociedade que as adota.






1217) A romaria de Romário (6.2.2007)



Anunciam os jornais que a Fifa liberou Romário para jogar pelo Vasco no Campeonato Carioca, notícia que me deu um grande alívio. O Baixinho anunciou que só se despede do futebol depois que marcar o seu milésimo gol. Pelas suas contas, faltam treze. Jornalistas e entidades esportivas têm cálculos diferentes, e para eles faltam mais, mas essas estatísticas nunca batem. Até hoje o mundo acredita que o gol número 1000 de Pelé foi marcado no Vasco, em pleno Maracanã. Cálculos feitos depois mostram que não, foi marcado na Paraíba, num jogo contra o Botafogo; mas quem vai reescrever a História, a esta altura?

Romário, aos 41 anos, terá mais alguns meses de sobrevida, e não duvido que chegue aos mil gols. É um final melancólico porque este número não será atingido, como o foi por Pelé, por um jogador no auge de sua atividade, que engoliu esse recorde como engolia outros a cada ano que passava. No caso de Romário, virou uma espécie de obrigação, que o faz prolongar cansativamente uma carreira que já perdeu a razão de ser. Não pela idade, mas porque Romário nunca foi de treinar ou de manter o preparo físico. E agora os reflexos começam a surgir. Talento ele tem; mas tenho medo de que nesta reta final fique contando com a colaboração de juízes que marcam pênaltes ou de zagueiros condescendentes.

Anos atrás, conversando com um cantador de viola, ele me disse: “Tem três profissões no mundo que precisam aproveitar bem a juventude: cantador, rapariga e jogador de futebol”. E tinha razão. No caso do jogador de futebol, ele tem, digamos vinte anos de atividade, dos 15 aos 35. Todo o seu pé-de-meia tem que ser construído ao longo desse período. A preparação física evoluiu muito nestas últimas décadas, e os jogadores elasteceram seu período de atividade. Ainda assim, o fato de Romário continuar perseguindo o gol 1000 aos 41 anos é um tanto melancólico. Não o faz porque ainda esteja “na ponta dos cascos”; faz porque é teimoso, é marrento, e quer se igualar a Pelé, não no total de gols (porque isto não vai dar mesmo), mas pelo menos na conquista do número mágico.

Vi Romário surgir no Vasco, fazendo dupla com Roberto Dinamite; os dois se revezavam no topo da artilharia do Campeonato Carioca. Era impossível marcar ambos ao mesmo tempo. Depois, ele foi para a Europa e atingiu o auge de sua carreira jogando no PSV e no Barcelona. O que ele fez de gols impossíveis nesse período merece um filme. Seu momento de glória foi ser campeão mundial pelo Brasil em 1994 e considerado o melhor jogador da Copa. Sua maior façanha, contudo, talvez tenha sido ser artilheiro do Campeonato Brasileiro em 2000, 2001 e 2005, já bem depois do ponto mais alto de sua forma física. A sua história é uma história de se fazer de morto e de repente arrancar a cem por hora. Quem sabe ele ainda guarda alguma surpresa para o torcedor, quem sabe ele ainda tem algum gol de placa para nos presentear.

domingo, 23 de agosto de 2009

1216) O fácil e o difícil (4.2.2007)





(Vik Muniz por Vik Muniz)

Há um estilo de cantoria de viola chamado “Quadrão de Meia Quadra” que é uma beleza para um cantador “se amostrar” diante dos leigos. É uma estrofe um tanto longa, e que sempre vai mais ou menos nessa pisada:

“Se eu disser que é meia noite, você diz que é meio dia
se eu disser que é meio balde, você diz meia bacia
se eu disser que é meio João, você diz meia Maria
se eu disser meia Maria, você diz que é meio João.
Se eu disser que é meia areia, você diz meio torrão
se eu disser meio torrão, você diz que é meia areia
se eu disser que é meia quadra, você diz que é quadra e meia
e se eu disser que é quadra e meia, você diz que é meio quadrão.

É um estilo marcante, e foi citado indiretamente por Zé Ramalho em “Avôhai” (“E se eu disser que é meio sabido, você diz que é meio pior...”).

Já tirei muita onda diante de pessoas leigas, cantando de improviso este tipo de verso. Porque na verdade não tem o que inventar, é só essa cantilena de meio-isso-meio-aquilo, substituindo as palavras-chave para encaixar nas rimas obrigatórias. E pronto.

Mas as linhas são longas, são cantadas com certa rapidez atropelada, e envolvem jogos-de-palavras cuja estrutura simples não é percebida à primeira vista, e então parece que é o troço mais difícil do mundo. Já cantei muita meia-quadra, sozinho, ao violão, diante de amigos que saíam dizendo que eu era o maior repentista do Nordeste.

Muito mais difícil do que uma meia-quadra é improvisar uma mera sextilha, onde você tem que tirar seis versos do Nada, do Zero Absoluto, e tudo tem que fazer sentido.

Em toda atividade existem coisas assim. No futebol, por exemplo, um passe de calcanhar parece mais difícil, e provoca mais sensação, do que um passe de 30 metros que vai certinho no pé do outro cara. Este último, por ser feito “de frente”, parece muito mais fácil, e não é.

Vik Muniz, artista plástico paulistano radicado em Nova York, resumiu esta questão numa entrevista à revista Zupi de novembro, de maneira exemplar:

“Existem trabalhos que são gostosos de fazer por serem fáceis e parecerem difíceis, e existem trabalhos gostosos de ver prontos por serem difíceis e parecerem fáceis”. 

No primeiro caso está a meia-quadra, que qualquer cantador mediano canta durante meia-hora sem nem sequer suar a testa.

Muniz observa que quando um trabalho é difícil ele não é bom de fazer: é bom de ver pronto. Isto bate certinho com uma frase que já vi atribuída a Armando Nogueira e a Zuenir Ventura: “Não gosto de escrever. Gosto de ter escrito”. Certas coisas nos dão um orgulho imenso depois que estão existindo, mas só Deus sabe o sofrimento que foi para botá-las de pé. Qualquer elogio a elas, contudo, sempre nos parece pouco, porque só nós sabemos o quanto de suor nos custaram.

Por outro lado, fazer uma meia-quadra e receber mil elogios nos dá complexo de culpa, porque quem elogia está superestimando a dificuldade da façanha, e se iludindo quanto ao talento de quem a praticou.





1215) Embebido em palavras (3.2.2007)




(Lord Macaulay)

Todo mundo que escreve já experimentou a sensação de se plantar diante de uma página em branco (onde se lê “página” leia-se “tela de monitor”) e sentir-se mais em branco ainda. O cara precisa escrever, vive dessa atividade, preparou-se para isto a vida inteira, assumiu compromissos, assinou contratos, já gastou o dinheiro do adiantamento... e (cedo a palavra ao mestre Augusto) “tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!”. É o famoso “writer’s block”, o bloqueio criativo que em alguns casos patológicos chega a durar anos a fio. Perguntem a Raduan Nassar, a Felipe Alfau, a Arthur Rimbaud. Todos dirão que “foi de propósito”.

Existe uma diferença crucial entre a função imaginativa da mente e o ato de escrever. Os leigos pensam que as duas coisas são uma só. Pois não são. Imaginar é mental, escrever é físico. Na grande maioria dos casos, o indivíduo tem predisposição para uma, e com a ajuda dela começa a estimular a outra até desenvolvê-la, como quem faz exercícios num aparelho de academia para desenvolver um músculo específico. Alguns escritores passam anos a fio tentando escrever de um jeito que não lhes convém, até encontrarem o jeito certo: a mão, à máquina, com lápis, com caneta, em pé, sentado, de dia, de noite... Escrever é uma tarefa corporal, um esforço físico, como tocar um instrumento musical. Pensar todo mundo pensa. Se eu escrevesse todos os livros que surgem já prontos na minha cabeça, ia faltar papel no Brasil.

Lord Macaulay, grande historiador britânico, disse na velhice que sua capacidade para reconstituir épocas e lugares remotos se devia a sua capacidade de fantasiar, de sonhar acordado: “Fico sonhando grande parte do meu tempo; talvez não mais do que antes, mas antigamente eu sonhava meus sonhos diurnos andando; agora os sonho sentado, perto da lareira. Se tiver vida para isso, escreverei sobre esse estranho hábito uma dissertação mais completa do que jamais foi escrita sobre esse assunto. É um bom hábito, sob certos aspectos. Eu, pelo menos, lhe atribuo grande parte dos meus sucessos literários”.

A melhor maneira de “ser bom” numa atividade é pensar nela o tempo todo. É conduzir a si próprio para um estado mental de atividade incessante, confrontando idéias, fazendo e respondendo perguntas, propondo problemas, inventando soluções. O poeta Hart Crane dizia: “O indivíduo deve estar encharcado de palavras, literalmente embebido delas, para que elas possam se combinar da maneira certa no momento certo”. Pensar é fácil, ou melhor, imaginar é fácil para um grupo específico de pessoas. Manter esse estado mental durante o enfrentamento físico com o instrumento (seja caneta Bic ou computador) são outros quinhentos. Escrever pode até embaralhar o pensamento. Augusto dos Anjos era um que compunha o poema mentalmente, corrigia, revisava, decorava, e só depois passava-o para o papel, para que esta tarefa física não interferisse na sua concentração criadora.


1214) Uma Noite no Museu (2.2.2007)



Esta comédia é um daqueles filmes-de-férias que poderiam ter cópias adquiridas por Escolas de Cinema no mundo inteiro, tal a nitidez da fórmula que seguem. É como aqueles casos que fazem um médico, inebriado pelo saber científico, dizer aos seus alunos, apontando um paciente: “Vejam que belo exemplo de escoliose lombar!” Neste caso, o professor diria algo como: “Vejam que belo exemplo de filme-de-atores disfarçado de filme-de-efeitos-especiais, tendo como justificativa ética a décima milésima história de Hollywood sobre um pai desempregado em crise de auto-estima querendo mostrar ao seu filho o quanto ele não é um babaca como a mãe do menino, cujo atual namorado é, este sim, um grande babaca, vive dizendo!” Vejo filmes assim desde que Ben Stiller estava na barriga da mãe (que, aliás, interpreta o papel daquela senhora com a qual ele faz a entrevista de emprego no começo do filme).

A imprensa bate na tecla de que “os efeitos especiais são a única coisa que presta no filme”. Eu os achei ínfimos: limitam-se ao esqueleto de Tiranossauro que anda, e aos soldadinhos e cowboys miniaturizados. Coisas que hoje em dia um diretor entrega à equipe de segunda unidade, e nem confere os “takes” no fim do dia. A premissa do filme (as criaturas de um Museu de História Natural ficam vivas durante a noite) dá a impressão de que os efeitos especiais são mais numerosos, porque vemos uma mistura carnavalesca de cowboys, dinossauros, legionários romanos, vultos históricos, macacos, leões, faraós, o escambau. Noventa por cento são atores fantasiados, como em qualquer Escola de Samba carioca. Torna o filme visualmente mais variado, e o rótulo genérico “efeitos especiais” confere à ação uma impressão de irrealidade.

O filme (de acordo com o saite “Internet Movie Data Base”) custou 110 milhões de dólares, ultrapassou este piso em sua segunda semana em cartaz, e até 21 de janeiro tinha faturado 204 milhões de dólares nos EUA e 18 milhões de libras no Reino Unido. Acho que filmes assim podem ser uma boa ilustração para a teoria kantiana do “fim” e da “finalidade” estética, como explica Ariano Suassuna em sua “Introdução à Estética”: “No pensamento kantiano, as Belas-Artes pertencem a um campo determinado, o da finalidade, no qual não se tem em vista nenhum objetivo prático, mas sim, pura e exclusivamente, o prazer do sujeito e a harmonia de suas faculdades. Já as Artes úteis, ou mecânicas, pertencem ao campo do fim, isto é, da destinação prática do objeto”. Ou seja: o filme de Shawn Levy não visa prioritariamente à finalidade da fruição estética, e sim ao fim prático de sua utilização do ponto de vista do público (entretenimento reiterativo) e do ponto de vista da indústria (manter atores, equipes, estúdios, etc. funcionando). Há filmes que são obras de arte, pertencem à mesma categoria de algumas músicas, livros ou quadros. E há filmes que são empreendimentos utilitários, como parques-de-diversões ou museus. Não são arte.

sábado, 22 de agosto de 2009

1213) O filho e o carro (1.2.2007)



Recebo muitos trabalhos enviados por amigos ou desconhecidos: livros, poemas, CDs, crônicas, etc. Quando a gente tem com o autor um certo grau de intimidade, não há problema em dar nossa opinião, quando ele a pede. Mas quando é um desconhecido, e a gente nem sabe se é um principiante ou um artista já encaminhado, é difícil saber que o que dizer. Tenho o maior medo de dizer algo tipo “olhe, Fulano, escreva mais, amadureça mais, você tem muito talento em potencial, etc.” e o cara me responder que é mais velho do que eu e tem 20 livros publicados. Onde vou enfiar a cara?

Quem mostra um trabalho tem muitas vezes a atitude de quem mostra um filho. Uma vez encontrei na rua um conhecido que não via há alguns anos. Cumprimentamo-nos, trocamos um abraço, e ele me mostrou o garoto de uns cinco anos que o acompanhava: “Olha, este aqui é o meu filho”. Olhei pro guri e disse: “Parece muito contigo”. O guri me olhou de cima a baixo e disse: “Deus me livre, meu pai é muito feio”. Rimos muito, porque o que eu tinha dito era uma mentira social, e o guri dissera a verdade pura.

Minha pergunta é: se o guri fosse feio, teria eu o direito de dizer isto? Quem mostra um fiho não está pedindo uma avaliação crítica, está pedido um gesto de aprovação, a ratificação de um vínculo afetivo. Quem tem um filho orgulha-se dele, e ponto final. Um filho é uma extensão de nós mesmos, é prolongamento futuro de nossa passagem sobre a Terra, como uma árvore plantada ou um livro escrito. Quem mostra um filho está mostrando um fato consumado, ao qual nenum juízo crítico pode se aplicar.

Mas há casos em que alguém nos mostra um CD ou um poema com outra atitude. A atitude de quem leva um carro à oficina e diz ao mecânico: “Josias, dá uma olhada nesse carburador, que ele tá meio esquisito”. Às vezes o carburador não tem nada, mas a gente só confirma isto através de Josias, que entende de carburador mais do que nós. O que a pessoa pede nestes casos é uma opinião técnica, um diagnóstico entre colegas de ofício, mesmo que um seja um mestre e o outro um aprendiz. E nestes casos, quem pede deve estar preparado para ouvir o que precisa ser dito, e que nem sempre é agradável.

Não acho que devamos julgar com rigor excessivo o trabalho alheio, principalmente de um autor jovem. Conheço muitos casos de pessoas que desistiram de uma carreira porque a primeira crítica que receberam foi devastadora demais. E todos nós sabemos de autores que começaram medíocres, mas foram crescendo por esforço próprio, e depois de muitos anos produziram obras de alto nível. Devemos ter confiança no futuro. O primeiro CD da banda, os primeiros poemas da jovem universitária, o primeiro romance do rapaz meio prolixo... o talento talvez ainda não esteja ali, mas pode despontar um dia. Não devemos afagar demais sua vaidade, mas devemos dizer: “Pode ir pra casa, e fique tranqüilo. Seu carro não tem nenhum problema. Continue dirigindo que um dia você chega lá”.