terça-feira, 7 de junho de 2011

2576) O oral e o escrito (7.6.2011)




(ilustração de Alexeieff para Russian Fairy Tales)

No posfácio que escreveu para uma coletânea de contos de fadas russos, Roman Jakobson dá a certa altura um exemplo interessante de como uma literatura oral se forma na memória de um povo. Diz ele, a certa altura: 

“Aqui nós estamos diante de um dos aspectos mais peculiares da vida cultural russa, que a distingue claramente da cultura do Ocidente. Durante muitos séculos a literatura escrita da Rússia esteve quase totalmente dominada pela igreja: com toda a sua riqueza e suas formas refinadas, a antiga herança cultural russa é quase totalmente voltada para as vidas dos santos e dos devotos, lendas piedosas, preces, sermões, discursos eclesiásticos e crônicas ao estilo monástico. O mundo leigo da Velha Rússia, contudo, possuía uma ficção abundante, original, diversificada e altamente artística, mas o único meio para sua difusão era a transmissão oral. A idéia de usar a palavra escrita para a poesia secular era totalmente alheia à tradição russa, e os meios expressivos dessa poética eram inseparáveis das formas orais de execução e transmissão”.

Coisa semelhante a esta nunca aconteceu no Brasil, por exemplo. Aqui, a divisão entre literatura escrita e literatura oral não teve muito a ver com religião. Ela se deu muito mais por conta de critérios de classe social e de nacionalidade: os portugueses mantinham um vínculo com sua cultura escrita, enquanto os “brasileiros” de todos os matizes tinham um grau de alfabetização dos mais precários. 

Foram 400 anos disto. O que a situação na Rússia nos sugere é a coexistência em paralelo de uma enorme e sofisticada literatura religiosa escrita, e de uma enorme e sofisticada literatura leiga oral. Dois universos convivendo invisivelmente um com o outro.

Essa situação talvez ajude a entender dois aspectos peculiares da literatura russa. Um deles é a importância dada pelos estudiosos sérios da literatura às narrativas orais. O trabalho de Vladimir Propp (Morfologia do Conto, As Raízes Históricas do Conto Maravilhoso) estabeleceu a estrutura básica dos contos maravilhosos, reduzindo-os a funções, personagens, etc., e demonstrou que esses contos são uma ilimitada recombinação de agentes e situações que recebem diferentes roupagens em diferentes culturas. 

A riqueza da literatura oral russa proporcionou a Propp e aos que o seguiram uma codificação notável dessas histórias. Histórias que no Brasil se reproduzem no Romanceiro Popular: as histórias de trancoso, os romances de origem ibérica e os folhetos de cordel.

Outro aspecto diz respeito ao grau extremamente musical, sonoro e experimentalista da poesia russa, desde poetas como Khliebnikov até Maiakóvski. 

Muito dessa poesia russa já foi traduzida aqui no Brasil, e os intrincados efeitos sonoros que ela cultiva mostram (à luz do que diz Jakobson) a existência de uma tradição oral rica e sofisticada. Nem tudo que é oral é primitivo. Nem tudo que é escrito é sofisticado.