sábado, 24 de janeiro de 2009

0779) A popularização das obras (16.9.2005)



Ouvimos isto o tempo todo: “É preciso popularizar as grandes obras da literatura, atrair a atenção do jovem, mostrar-lhe a existência dos grandes autores”. Concordo. Meu primeiro contato com a obra de Cervantes foi através do Dom Quixote das Crianças de Monteiro Lobato. E não acho nada demais confessar que até hoje só li as versões infanto-juvenis de obras como as Viagens de Gulliver de Swift ou o Robinson Crusoe de Defoe. Sei que perdi o filé, principalmente no primeiro caso, mas o que importa é que pelo menos fiquei sabendo que aquela história existia.

Leio num blog qualquer que nos EUA um “rapper” está transportando para a linguagem do “rap” a grande obra de Geoffrey Chaucer, os Canterbury Tales, uma obra que está para a língua inglesa assim como a Divina Comédia (olha outro que não li ainda!) está para a italiana e Os Lusíadas para a portuguesa. Os contos de Canterbury (ou “da Cantuária”) são do século XIV, obedecem a uma gramática e a uma ortografia muito diferentes da atual, e já foram adaptados em verso, em prosa, com linguagem modernizada, etc. (Também já foram filmados, e a verão mais conhecida é a de Pier Paolo Pasolini, em 1972).

Por que, então, não repassá-los também para a linguagem dos isqueitistas e dos grafiteiros? Aqui vai um trechinho. Primeiro, no original: “And up they stirte, al dronken in this rage / And forth they goon towardes that village / Of which the taverner hadde spoke biforn / And many a grisly ooth thanne han they sworn”. Na versão rap: “When he'd said his piece / The rest agreed, and the three friends hit the streets / And went to seek their destiny and provoke a confrontation, / In a drunken rage hoping Death would come and face them. / Their intoxication made them sure of their purpose”. Não tenho espaço aqui para traduzir, mas dá pra perceber que não se trata exatamente do mesmíssimo texto, não é?

O que é isto? Uma afronta à obra de arte, uma deturpação? Para mim trata-se simplesmente de uma tradução. Se os Contos de 1400 já foram traduzidos para o dezenas de línguas, inclusive o português, por que não para o inglês de 2005? O que acho preocupante é outro tipo de transposição, justamente aquela que cito no primeiro parágrafo. É a tal da adaptação para quem não pode assimilar o original – no caso crianças e adolescentes. Por melhores que sejam as intenções de quem adapta, o que ele está fazendo é simplesmente manter uma metade da obra (o enredo e os personagens) e amputar a outra (o estilo). Isto pra não falar no fato óbvio de que episódios secundários são cortados por inteiro (ou resumidos) nessas adaptações. Elas têm seu valor, e bons escritores como Orígenes Lessa, Paulo Mendes Campos e outros já pagaram o leite-das-crianças resumindo e adaptando clássicos da literatura. Mas... cuidado. Uma adaptação deve ser como um trailer, que serve apenas para abrir o apetite e dar vontade de ver o filme.

0778) Requiem pelos bombeiros (15.9.2005)



As celebrações (termo que me parece mais adequado do que “comemorações”) da passagem do 4o. aniversário dos atentados do 11 de setembro me trouxeram à mente algumas emoções que eu julgava arquivadas. Parte delas foi despertada pela reexibição, na TV a cabo, de um filme que a crítica em geral detestou, mas que acho excelente: Os heróis, um teatro-filmado com apenas um casal de atores: Sigourney Weaver e Anthony LaPaglia, aquele ótimo ator que é a cara de Carlos Alberto Parreira. Ele é um capitão do Corpo de Bombeiros que recorre a ela, uma escritora profissional, para redigir o elogio fúnebre dos seus companheiros que morreram nas Torres Gêmeas.

Tem gente que chora quando vê a vida de Zezé de Camargo e Luciano, tem gente que chora vendo novela da Globo, e gente que chora com os filmes de Fellini. Nada disso me abala, mas é a terceira vez que vejo esse filme sem nada de excepcional e fico com os olhos, digamos, levemente umedecidos. LaPaglia é um sujeito fechadão, que reprime as próprias emoções, mas que vai se soltando quando tem que descrever para uma desconhecida seus ex-companheiros mortos. Seguem-se várias histórias de camaradagem masculina, de trabalho duro, de coragem pessoal, e de famílias que de uma hora para outra perderam seu centro. Quase não há flash-backs: o filme inteiro transcorre na sala do apartamento (era, originalmente, uma peça de teatro), com ela fazendo perguntas e conseguindo arrancar dele, pouco a pouco, o perfil daqueles indivíduos.

Não é um filme feito-para-chorar, e é sintomático que o título original não tenha a grandiloqüência do título brasileiro. Lá, o filme se chama “The Guys”: os caras, os rapazes, a galera, a turma. É assim que os homens gostam de se ver em conjunto, é assim que eles gostam de se considerar quando se auto-observam na companhia dos seus iguais. Todo sujeito que tende a ver a si mesmo como um herói perde um pouco de masculinidade, na minha opinião. Querer ser herói é ceder à tentação da fama, da glória, da badalação, do “glamour” – e isso, convenhamos, não é negócio pra homem.

Um bombeiro é o soldado que não mata, o soldado que salva vidas. Um herói é simplesmente um cara que se viu numa situação em que só tinha duas alternativas: se comportar como um filho-da-puta ou se comportar como um herói, e ele teve que escolher a segunda. Os bombeiros do filme (muito bem descritos através do ótimo diálogo e da interpretação de LaPaglia) são sujeitos rudes, fortes, algo ingênuos, com qualidades e defeitos. Se alguém foi herói no 11 de setembro, mesmo a contragosto, foram eles. Eles expressam aquelas qualidades masculinas que o western americano tanto celebrou: coragem pessoal, desprendimento, lealdade para com os seus e solidariedade para com completos desconhecidos, o senso do dever profissional e da obrigação moral, o amor aos aspectos técnicos do próprio trabalho independentemente do reconhecimento público que este tenha ou não.

0777) A armadilha do jabá (14.9.2005)



Como trabalho em casa, passo a tarde com a TV ligada, acompanhando as CPIs. Para um sujeito avoado como eu, que vive pesquisando a Idade Média ou a vida em outros planetas, é um saudável antídoto, uma overdose de vida real. O mundo é isto que estamos vendo: indivíduos engravatados, de fisionomias sórdidas e discursos monotonamente patrióticos, praticando uma absurda promiscuidade financeira numa busca incansável por dinheiro, dinheiro, dinheiro. Eu ando com tanta raiva de dinheiro que toda vez que pego numa nota a vontade que eu tenho é tocar fogo, e só um restinho de bom-senso me dissuade.

Existe uma curiosa semelhança entre as falcatruas que estão sendo expostas na República e uma outra indústria-do-golpe que nós, músicos e compositores, conhecemos há muitos anos. Trata-se da indústria do “jabá”, o suborno pago aos donos de programas ou de emissoras de rádio para que determinadas músicas sejam executadas. É a mesma relação que ocorre entre burocratas do Governo e empresários que buscam ganhar concorrências e contratos.

Tudo começou aos poucos. Num “antigamente” remoto, os discos eram enviados para as emissoras, e no meio das centenas de discos recebidos os titulares dos programas escolhiam aqueles de quem gostavam, e passavam a tocá-los. Era um processo aleatório, baseado no gosto individual de cada radialista. As gravadoras enviavam os discos, e cruzavam os dedos, esperando que alguém gostasse e tocasse, para que a música “pegasse” junto ao público e o disco fosse comprado.

Ora, cruzar os dedos e esperar não é uma atitude muito pragmática. As gravadoras começaram a telefonar, oferecer mimos e vantagens, dar ingressos de graça, viagens de graça, e assim por diante. Daí a coisa passou para a gorjeta, a propina, o numerário, o mensalão. As gravadoras ficaram inebriadas de poder: “Até que enfim, podemos obrigá-los a tocar o que queremos! Basta comprá-los!” Só que o tempo passou e a coisa foi mudando. Os radialistas descobriram que estavam aceitando regras alheias num jogo que era, afinal de contas, no campo deles e com a bola deles. Eram as gravadoras que precisavam das rádios, e não o contrário. E a situação se inverteu. Os radialistas passaram a ditar as regras do jogo: em vez de aceitar suborno, passaram a exigir suborno, dentro de condições ditadas por eles.

As duas situações coexistem hoje; há lugares onde as gravadoras são mais fortes, e lugares onde as rádios mandam. Porque trata-se, na verdade da boa e velha Lei do Mais Forte. É difícil convencer essas pessoas de que um processo tão crucial deve ser deixado ao deus-dará, às venetas pessoais de quem escolhe a programação. A situação hoje em dia está tão envenenada que tornar-se disco-jóquei é objetivo de indivíduos que nem sequer gostam de música, mas querem estar diante de um microfone para poder cobrar propina. O capitalismo é um Rei Midas: tudo que toca transforma em ouro. E tudo que é vivo, e que vira ouro, morre.

0776) Contos Fantásticos em Borges (13.9.2005)



Leitores habituais desta coluna terão constatado a minha admiração talvez excessiva, mas nunca injustificada, pela obra de Jorge Luís Borges. Volta e meia, aqui estou eu recorrendo a um exemplo ou a uma citação borgiana para elucidar esta ou aquela questão. A verdade é que leio Borges há 33 anos, e num cálculo superficial constato que tenho cerca de 45 livros dele (ou sobre ele) em minhas estantes. É o segundo escritor de quem possuo mais livros (o primeiro é Ellery Queen), e um dos que conheço mais a fundo. Em vista disto, peço licença para divulgar o lançamento da antologia Contos Fantásticos no Labirinto de Borges, que organizei para a editora Casa da Palavra (Rio), e que estará sendo lançada oficialmente hoje no Rio de Janeiro. Haverá um debate na Livraria da Conde, no Leblon, onde estarei ao lado da escritora Heloísa Seixas, ela também autora e editora de antologias de contos fantásticos.

Borges tem sido incluído dentro da onda do “realismo mágico latino-americano” desde a década de 1960, o que talvez não lhe tenha sido muito favorável. O rótulo de Realismo Mágico tem sido associado prioritariamente a escritores muitíssimo diferentes de Borges: Garcia Márquez, Miguel Ángel Astúrias, Juan Rulfo, Manuel Scorza e outros. Escritores com uma forte influência rural, com narrativas impregnadas de ambiente (o que as aproximava do romance regionalista) mas que transcorrem num plano supra-real, misturado a elementos do mito, da lenda e do sonho. Descrevem a sociedade patriarcal e caudilhesca da América Latina, de mistura com elementos fantásticos e sobrenaturais. Um tipo de literatura que no Brasil foi praticada em obras como Incidente em Antares de Érico Veríssimo, Dona Flor e seus dois maridos de Jorge Amado, e outros.

Se o que Borges faz é Realismo Mágico, então é de uma natureza totalmente diversa, e é o que procuro examinar nesta antologia, que reúne 18 contos de autores cuja influência Borges sempre admitiu (Kafka, Poe, Stevenson, Léon Bloy, Chesterton, Hawthorne, Wells) e de outros que ele lia e apreciava, embora muita gente não saiba: Ray Bradbury, Lord Dunsany, Marcel Schwob... e Ellery Queen. Os contos selecionados usam temas muito próximos a alguns dos temas preferidos de Borges (o livro impossível, o tempo cancelado, o objeto com um lado só, o labirinto, o objeto inesquecível, etc.), e mostram que o fantástico, em Borges, está mais próximo do Fantástico europeu do século 19 do que do Realismo Mágico latino-americano do século 20.

Toda antologia deve valer pelos contos que apresenta, e não pelos textos teóricos que os acompanham. No presente caso, todos os contos têm enredos e situações fascinantes, além de serem de grande interesse para um eventual leitor de Borges. Vários deles, pelo que sei, estão sendo publicados no Brasil pela primeira vez. Confiram no saite da editora: http://www.casadapalavra.com.br/.

0775) As ruínas dos satélites (11.9.2005)



Jonas Bendiksen é um fotógrafo norueguês, da agência Magnum, que tem viajado pelos territórios da antiga União Soviética documentando o que existe por lá depois do esfacelamento daquela colcha-de-retalhos étnica e histórica. Este torvelinho político e geográfico é uma das coisas mais fascinantes de nossa época, e a obra de escritores como William Gibson (Idoru, Padrões de reconhecimento) e Bruce Sterling (Piratas de Dados) é uma investigação constante destes desvãos da História que só aparecem nas manchetes dos jornais quando acontece por ali uma catástrofe como o massacre da escola de Beslan, o acidente nuclear de Chernobyl ou o afundamento de um submarino.

As fotos podem ser vistas no saite do jornal Le Monde, em: http://www.lemonde.fr/web/vi/0,47-0@2-667725,54-683620@51-683131,0.html. Clicando-se no link que diz “Si la fenêtre avec le portfolio ne s’ouvre pas, cliquez ici”, aparece uma animação em flash com 45 fotos, muitas delas magníficas. Na abertura, um texto explica que com o colapso da ordem soviética muitas regiões remotas ficaram meio que à deriva; não pertencem mais a um governo central mas ao mesmo tempo não são estados independentes, tornando-se uma espécie de satélites, apêndices étnicos que não foram oficialmente extirpados de alguma república vizinha.

Para mim são particularmente comoventes as fotos do lixo espacial, feitas numa região desértica onde caem as partes descartadas dos foguetes que os russos mandam ao espaço. Segmentos inteiros dessas naves, do tamanho de um vagão de trem, descem do céu trovejando e em chamas, e espatifam-se contra o chão do deserto. Sempre que um deles é avistado (grupo de catadores de lixo ficam de tocaia, após os lançamentos, com binóculos), os caras pulam dentro dos carros, ligam o motor e partem à toda para lá. Com maçaricos e serras, eles desmancham os pedaços de foguete para vender o metal –ligas de titânio caras e resistentes.

Também há fotos de viciados em drogas aplicando-se injeções no meio de salões dilapidados onde resta apenas um tapete persa na parede (a última coisa que falta vender); vacas tombadas num prado verdejante, mortas depois de beberem água poluída; imensos conjuntos habitacionais em ruínas; um bizarro ritual de batismo em que é cortada no gelo de um lago uma abertura em forma de cruz, para que o batizado seja imerso na água geladíssima e depois reanimado com alguns copos de vodka pura.

O mundo globalizado é como uma metrópole, e esses países sem nome são os becos e arrabaldes entregues à sua própria sorte, lugares “boca quente” onde as pessoas sobrevivem como podem, acreditam no que querem, drogam-se com o que estiver ao seu alcance, e esperam a vida passar como esperamos o fim de um pesadelo que tivemos a sorte de descobrir ser um pesadelo antes mesmo de acordarmos. É o mundo de hoje, e é um inquietante trailer do mundo de amanhã.

0774) Cheiro de 82 (10.9.2005)


Domingo passado a Seleção Brasileira deu um show de bola de 28 minutos, quando marcou quatro gols no Chile e liquidou o jogo que a classificou para a Copa da Alemanha. Durante esse tempo, a Seleção fez o que todo torcedor sonha: apossou-se da bola com autoridade, imprensou o adversário em seu próprio campo, exibiu classe, técnica, velocidade, consciência tática. Defendeu-se com firmeza e atacou com entusiasmo, não esquecendo a malícia e a ginga. Bastou isto para na segunda-feira a crônica esportiva entrar no delírio ufanista de sempre, falando em favoritismo e “rumo à consagração”. O brasileiro tem essa mania de superar um obstáculo e achar que “agora é só correr pro abraço”. Calma com o andor, pessoal. Vejam só o que aconteceu com o PT.

Sinto um cheiro de 1982, quando a Seleção de Telê Santana – a minha favorita em todos os tempos – saiu rumo à Copa da Espanha já com o carnaval da vitória sendo preparado a todo vapor. Lembro que após a última goleada antes da viagem, a “Veja” publicou uma extensa matéria em que inclusive, com recurso a gráficos e desenhos, explicava inebriada as principais jogadas de ataque do time que tinha também o seu quadrado mágico (Cerezo, Falcão, Zico e Sócrates). A derrota desse time foi um tsunami moral do qual levamos anos para nos recuperar.

Quando o Brasil começou a disputar as Eliminatórias, escrevi um artigo (“A Copa do Mundo é nossa”, 7.9.2003) em que afirmava: “Hoje o Brasil começa uma caminhada rumo ao altar dos sacrifícios. Nenhuma força política, econômica ou futebolística da Europa permitirá que em 2006 cheguemos aos seis títulos, deixando Itália e Alemanha nos três atuais.” Com ou sem quadrado mágico, com ou sem favoritismo, pedaladas, com ou sem o Melhor do Mundo ou o Imperador, preparem-se, porque vamos cortar um dobrado. Temos cinco Copas; Alemanha e Itália têm três cada uma. Se permitirem que cheguemos aos seis títulos, nunca mais nos alcançarão. A Copa do ano que vem vai ser, principalmente para a Alemanha, como aquele “game” decisivo no tênis, quando um jogador em desvantagem tem a chance de quebrar o serviço do adversário e no “game” seguinte sacar para igualar a contagem. Caso não o consiga, será deixado para trás de forma quase irreversível, e só um desastre poderá salvá-lo.

Desta vez é a Alemanha quem está sacando (para manter a metáfora tenística), por jogar em seu próprio terreno; jamais pode se dar o luxo de não ganhar este torneio. O Brasil tem sem dúvida uma equipe magnífica: ganhou com brilho a Copa América e a Copa das Confederações. Mas está, perigosamente, atingindo seu ponto máximo um ano antes da verdadeira disputa – justamente o que aconteceu com a Argentina na última Copa, que era um time assombroso em 2001 e pagou um mico histórico um ano depois. Agora – se por acaso a gente ganhar no ano que vem, a gente bota vantagem, e pode até mandar o Flamengo representar o país na Copa de 2010.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

0773) Casa Branca e Senzala (9.9.2005)


(New Orleans após o Katrina)

E eu aqui me preocupando com Bagdá e verberando os EUA pelo seu desprezo para com as vidas dos iraquianos! E eu aqui, pelo menos uma vez por mês, metendo o chanfalho no Governo Bush pela sua insensibilidade para com os afegãos ou os palestinos! Bastou um vendaval (tudo bem, admito que foi um troço de proporções bíblicas, capaz de varrer do mapa uma cidade de 500 mil habitantes) para a gente perceber que a ética dos neo-evangélicos militarista-republicanos tem uma idéia muito clara, dentro das fronteiras do seu próprio país, sobre as vidas que vale e as que não vale a pena salvar. População negra e pobre, na moral nietzschiana da atual Casa Branca, é uma senzala a que não se pode atear fogo; mas pode-se contar com uma catástrofe natural para resolver o problema.

Se o furacão que arrasou New Orleans tivesse destruído lugares como Miami, Detroit ou Las Vegas, eu lamentaria as perdas humanas, mas confesso que meu coração não “mudaria de pancada”. São cidades pelas quais tenho uma enorme indiferença. Nada me dizem. New Orleans, contudo, é uma cidade latina e afrancesada, habitada por negros, berço do blues e do jazz. Sempre sonhei em passar uma semana lá, porque achei que seria uma das cidades americanas mais brasileiras em espírito. Por que o diabo do furacão não foi pra Dallas, pelo menos?! Com todo respeito.

Se este furacão tivesse passado um ano atrás, duvido que o presidente se reelegesse. Os cálculos iniciais falam em dez mil mortos, mas tais cálculos geralmente começam lá em cima e depois vão sendo reduzidos. No 11 de setembro, chegaram a falar em 6 mil mortos, número que hoje se estabilizou em torno de 2.750.

New Orleans é um buraco espremido entre duas paredes, uma contendo as águas do Rio Mississipi, a outra as águas do Lago Pontchartrain. Mais de um século de construções e escavações (inclusive bombeamento de águas subterrâneas) têm feito o nível do terreno da cidade “encolher”, até tornar-se o terceiro ponto mais baixo dos EUA. Qualquer charlatão de feira pode ficar rico prevendo uma inundação ali; não obstante, o governo federal cortou sistematicamente as verbas para melhoramentos em diques e barragens. Nenhum de nós sabia disto. Agora, que 90% da cidade estão submersos, sabemos que não havia plano de evacuação, e que cinco mil soldados da região tinham sido enviados para o Iraque.

A escritora Anne Rice (Entrevista com o Vampiro), uma new-orleanita ilustre, escreveu: “Quero dizer ao meu país: vocês nos faltaram durante esta crise. Olharam-nos com indiferença; menosprezaram nossas vítimas e nós todos. Vocês querem o nosso jazz, o nosso carnaval, nossa cozinha e nossa música. Mas quando nos viram em dificuldades sérias, quando viram uma pequena minoria entre nós saqueando os indefesos, vocês nos chamaram de ‘Cidade do Pecado’ e voltaram as costas. Nós somos mais do que isto. Somos exóticos, somos típicos, somos a parte mais oprimida deste país; mas somos americanos, somos vocês”.

0772) O olho clínico (8.9.2005)



(Umberto Eco)

Uma escritora espirituosa disse certa vez que ler um romance escrito por um crítico literário é a mesma coisa que fazer amor com um ginecologista. Nossa mente tem dois sistemas que se comunicam mas que em essência são independentes: um sistema criativo e um sistema analítico. Somos levemente esquizofrênicos. Tem um cérebro que sabe inventar, criar, produzir coisas originais, mas não sabe analisá-las. E tem outro que analisa com perfeição, mas não cria.

Um crítico precisa estar consciente, o tempo inteiro, não só do instrumental técnico da escrita, como também da História literária prévia. São estes os principais recursos que ele tem em mãos quando abre um livro alheio e começa a analisá-lo. Nenhum crítico, feliz ou infelizmente, começa a ler um livro do zero. Nenhum leitor o faz, na verdade; mas vamos reconhecer que o patamar inicial de um crítico (de um crítico culto, experimentado) é bem mais alto. E quando ele se mete a escritor, senta ao teclado e digita “Capítulo 1”, este grau de auto-consciência técnica pode se tornar mais um estorvo do que uma ajuda.

“Este parágrafo está muito seco, muito Graciliano”, pensa o crítico-romancista. “Preciso dar um temperozinho Jorge Amado: sensualidade, cor-local...” E lá vai ele. Na primeira revisão ele pensa: “Estou usando muito o discurso livre indireto, quando na verdade este trecho pede um pouco mais de narrador onisciente, de múltiplos pontos-de-vista...” E por aí vai. Estou caricaturando, é claro; mas se eu, que não sou crítico e que sou bem indisciplinado em técnica, estou volta e meia pensando essas coisas, o que dizer de um sujeito que estudou a vida inteira para isto, que vive disto?

Alguns indivíduos, no entanto, parecem um desmentido vivo a esta teoria. O primeiro de que me lembro é Umberto Eco, que não era propriamente crítico literário, era algo pior, era semiólogo. Um técnico altamente especializado, o tipo do sujeito de cuja vocação para a escrita criativa temos algum direito de duvidar. Escrever criativamente pressupõe um certo grau de espontaneidade, de intuição lúdica, de decisões inconscientes, de improvisos, de venetas inexplicáveis, de desobediência às regras, e de uma série de outros processos que parecem o inverso da mentalidade crítico-analítica.

Perguntaram a Eco por que tinha situado O Nome da Rosa na Idade Média, e ele respondeu: “Porque conheço a Idade Média melhor do que a época atual”. Creio que o que fez daquele livro um grande romance foi essa possibilidade de usar, sem as amarras da Historiografia, um ambiente, uma linguagem, um ambiente social e cultural com o qual ele tinha extrema familiaridade. A possibilidade de fazer uma paródia lúdica a um tipo de discurso que ele fora obrigado a ler a-sério durante décadas. A possibilidade de finalmente poder imitar afetuosamente a literatura popularesca (romances policiais e de aventuras) que manteve vivo nele o Leitor, que é a mãe do Escritor (o pai é o Crítico).

0771) “O Adversário” (7.9.2005)


(cartaz do filme de Nicole Garcia)

Nos primeiros dias de 1993, um incêndio destruiu uma casa na região francesa de Prevessin, perto da fronteira com a Suíça, onde morava um médico, Jean-Claude Romand, pesquisador da Organização Mundial da Saúde, em Genebra. Os bombeiros tiraram da casa em chamas os cadáveres da mãe (Florence) e dos dois filhos (Antoine e Caroline); o pai estava gravemente queimado, mas vivo. No dia seguinte, o tio de Romand foi à casa dos pais dele para dar a notícia. Chegando lá, encontrou o casal de velhos morto a tiros de espingarda, juntamente com o cachorro. A polícia pensou em vingança: quem teria tentado exterminar uma família inteira, em duas casas situadas a 80 km de distância? Mas aos poucos surgiu uma verdade mais chocante do que o crime em si. O criminoso era o próprio Dr. Romand: ele matou a mulher e os filhos, depois pegou o carro e viajou para matar os pais, aí voltou e ateou fogo à casa. Por que?

A investigação revelou uma verdade muito mais inacreditável. Descobriu-se que o Dr. Romand não trabalhava na OMS, como acreditavam todos os seus parentes e amigos: ninguém lá o conhecia, seu nome não constava dos registros, nem dos anuários médicos. Acabou-se descobrindo que ele nem sequer tinha se formado em Medicina, tendo abandonado os estudos no segundo ano. O mais incrível é que sua mulher Florence e seu melhor amigo (e vizinho), o médico Luc Ladmiral, tinham estudado com Romand até a formatura, quando ele, em vez de clinicar, optou por tornar-se pesquisador da OMS.

Romand fingiu estudar, fingiu formar-se, fingiu trabalhar, durante dezoito anos ininterruptos, mentindo a todas as pessoas que o conheciam. Todo dia pegava o carro, cruzava a fronteira suíça e ficava zanzando, tomando café, lendo jornais. Alguém perguntará: e como ganhava a vida? É aí, no bom e velho capítulo financeiro, que começa a tragédia. Como tinha acesso a bancos suíços, ele começou a pegar o dinheiro dos pais, do sogro, dos amigos, para depositá-lo em bancos de Genebra. Na verdade, depositava-o em sua própria conta. Ao longo de dezoito anos viveu das economias alheias. Quando o dinheiro acabou e o cerco começou a se apertar, ele resolveu (disse depois, no tribunal) “matar aquelas pessoas a quem não queria causar uma grande decepção”. Bang, bang, bang.

O fato é verídico, já resultou em dois filmes e no notável livro L’Adversaire, de Emmanuel Carrere (Paris: P.O.L., 2000). De mentirosos compulsivos o mundo está cheio, mas, mais do que um estudo sobre a mentira, o caso Romand (http://jc.romand.free.fr/) nos sugere um estudo sobre credulidade, respeitabilidade, aparências. Como é possível que ninguém percebesse? Que ninguém desse um telefonema para checar? A tragédia de Romand nos mostra uma das fragilidades de civilização, do mundo organizado e politicamente correto em que todo mundo confia em todo mundo. Ali, uma bolha de sabão dura dezoito anos, porque ninguém acha necessário tocá-la com a ponta do dedo só pra conferir.

0770) A arte de ser executivo (6.9.2005)



Às vezes eu acho que escolhi a profissão errada, e em vez de poeta eu devia ser executivo de multinacional. Me falta talvez um pouco de conhecimento técnico (noções de Economia, Administração de Empresas, etc.). Me falta traquejo, batente, janela; experiência, enfim. Tirando isso, sou tão capaz de administrar uma grande empresa como qualquer outro. Tempos atrás comprei para meu filho um joguinho ótimo chamado Zoo Tycoon, que é um jogo de gerenciamento de um jardim zoológico. Tudo muito simples: você tem uma verba inicial (para construir jaulas, escolher bichos, contratar pessoal especializado, comprar rações, etc.) e um prazo para atingir determinadas metas. Em menos de uma semana eu estava craque. Toda vez que começava a ter prejuízo, eu diminuía salários, demitia pessoal e aumentava o preço do ingresso e do hamburger. Era tiro e queda.

Ser executivo de uma grande empresa não é muito diferente disto, porque o sujeito vive numa mistura de torre-de-marfim e ilha-da-fantasia. Sempre que folheio revistas de finanças e negócios eu presto mais atenção nas fotos do que no texto. Eu sou meio telepático. Basta eu ver uma foto de um grupo de pessoas e eu sei o que elas estavam falando, e basta ver uma foto de uma pessoa sozinha para saber o que ela estava pensando. Nesse executivos das grandes empresas mundiais, não é difícil ver o que move os caras: números, gráficos, índices... E “briefings”, ou seja, breves descrições informativas: o “extrato concentrado” do que se sabe sobre uma empresa, uma pessoa, um país, um mercado, um produto. Com base nisso o sujeito bota o chip do juízo para esquentar, e toma decisões mirabolantes.

Leio na revista Wired de maio: “Quando Jeffrey Immelt assumiu o comando da General Electric em 2001, o futuro previsto para a empresa indicava desaceleração do crescimento e estreitamento das margens. Immelt cortou 15 bilhões em ativos improdutivos, aplicou 61 bilhões em aquisições, e deslanchou um recrudescer de inovações que proporcionou um crescimento de 14% em 2004”. Quem não se orgulharia de aparecer na imprensa com uma folha-corrida dessa natureza? Os executivos vivem disto, de pegar índices negativos e revertê-los. É como um técnico de futebol que pega um time na zona de rebaixamento e três meses depois o deixa brigando entre as quatro primeiras posições.

Cabe ao executivo pegar aqueles gráficos descendentes, que parecem o rastro de fumaça no ônibus espacial Challenger, e transformá-los numa linha parecida à face sul do Monte Everest. É esta a sua façanha estética, semelhante à de um Miguel Ângelo que pega um bloco de mármore e vai descascando-o até revelar um Moisés que tinha lá dentro e só ele enxergou. Existe arte no que um executivo faz. Não, não estou sendo irônico. Existe arte em tudo onde é possível substituir a adiposidade pela leveza, o atravancamento pela elegância, o inchaço burocrático pela eficiência produtiva.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

0769) Mais louça que havia no vaso (4.9.2005)




A Física sub-atômica é cheia de aparentes paradoxos, quando comparada com a Física em escala macro, esta do mundo em que vivemos. “Lá embaixo”, na escala do infinitamente pequeno, as leis da Natureza são outras. Por exemplo: o sujeito quer fragmentar uma partícula que tem um peso atômico específico. Ele faz incidir sobre esta partícula um feixe de energia que a parte em “pedaços”. Só que cada um dos “pedaços” resultantes pesa mais ou menos o mesmo que a partícula original. É como você partir uma pedra de 10 quilos em uma porção de pedaços, e constatar que um deles pesa 8 quilos, outro 10, outro 11, outro 5, outro 12 e assim por diante. Por que isto? Porque a energia empregada para dividir a partícula inicial é absorvida pelos fragmentos, fazendo com que a soma final deles tenha um peso muito maior. A soma das partes é maior que o todo.

Geralmente usamos de forma elogiosa a expressão de que “o Todo é maior do que a soma das partes”. Queremos dizer com isto que elementos isolados foram reunidos numa estrutura que os valorizou, propiciando o surgimento de qualidades que os fragmentos em si não possuíam. Mas podemos ser também elogiosos dizendo que as partes valem mais que o Todo. Penso no exemplo literário de Fernando Pessoa. Diz ele, num poema famoso, “Apontamento”: “A minha alma partiu-se como um vaso vazio. / Caiu pela escada excessivamente abaixo. / Caiu das mãos da criada descuidada. / Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.”

Esta descrição tem muito a ver com o modo como o próprio Pessoa via-se a si mesmo por dentro. Quando optou por se dividir em vários poetas fictícios, os chamados “heterônimos”, ele devia sentir que sendo apenas ele mesmo, apenas Fernando Pessoa, não conseguiria dar vazão a tudo que tinha para sentir e para dizer. Foi preciso criar uma porção de pedaços de si mesmo que depois, somados, produziriam uma soma muito maior do que ele próprio, uma obra literária (e um documento humano) que transcendiam em muito a personalidade e a voz literária do Fernando Pessoa original.

O caso de Pessoa não é único nem raro na literatura (são muitos os escritores que usam pseudônimos específicos para produzir tipos específicos de texto): o que é raro é o grau de fé, de entrega, de determinação, por parte do poeta, em fazer daquilo tudo uma verdade pessoal. Ao conceber biografias, mapas astrológicos, ideologias e tudo mais para cada um de seus “pedaços”, Pessoa fez uma espécie de milagre dos peixes, um desses casos em que quanto mais se tira mais se tem. Basta ver que hoje em dia, salvo engano de minha parte, ele é muito mais conhecido pelos poemas de Álvaro de Campos (textos como “Tabacaria”, “Ode Triunfal”, “Passagem das Horas”, “Poema em Linha Reta” e tantos outros) do que pelos que escreveu sob seu próprio nome. Cada heterônimo de Pessoa é tão grande quanto ele, o Pessoa original, ou até mais. Há mais pedaços do que havia louça no vaso.




0768) Música sem imagem (3.9.2005)




Aconteceu com um amigo meu. O filho estava sentado no chão da sala, brincando; ele botou um CD qualquer no som e sentou no sofá para ouvir. O garoto ficou se distraindo com seus super-heróis de plástico e de repente levantou a cabeça, curioso. “Cadê a imagem, pai?” “Que imagem?” perguntou ele. “A dessa música que tá tocando”. 

Sabem o que é isto? É (como dizia Gilberto Gil) “momento histórico, simples resultado do desenvolvimento da ciência viva”. Esse pirralho vive numa época diferente da nossa, uma época em que a cada acorde musical corresponde uma pirueta visual: a Era do Videoclip. 

Ouvir música, para ele, simplesmente música, é uma experiência amputada. Ele fica se sentindo como aquele cavaleiro da história de Ítalo Calvino, que teve metade do corpo arrancada por uma bala de canhão.

A junção da imagem à música foi sem dúvida uma conquista estética das mais importantes. Eu compraria, sem perguntar o preço, qualquer DVD que reunisse alguns dos curtas com que o canadense Norman MacLaren recriou a técnica cinematográfica sincronizando música orquestral e imagens abstracionistas, em experiências industrialmente mais modestas do que a Fantasia de Walt Disney, mas igualmente criativas. MacLaren nos dava a impressão de estarmos vendo música com os olhos.

Os anos 1960 foram o momento de encontro entre o cinema e o rock, e da minha parte credito a Richard Lester (Os reis do iê-iê-iê, Help) a invenção de pelo menos metade dos truques de câmara e edição que os videoclips dos anos 1980 disseminaram pelas emitivis do mundo afora. 

Se você pesquisa essas coisas, caro leitor (já percebi que tem leitor desta coluna que adora pesquisar) dê também uma olhada nos filmes de Ken Russell, um malucão que tinha lá seu estilo próprio de visualizar tanto a música de Tchaikovsky (Delírio de Amor) quanto a de The Who (Tommy).

A arte de editar imagens para comentar visualmente uma música pré-existente (muitas vezes uma música que as platéias já sabem de cor) é uma das mais fascinantes, mas o que quero apontar agora é um dos seus efeitos colaterais: o perigo de que, com as novas tecnologias de lazer, comecem a surgir gerações para quem uma música sem imagens é uma coisa incompleta, como um filme mudo. 

Ziraldo tem um livro magnífico chamado O Menino Quadradinho, história de um garoto que vive num universo de quadrinhos e que ao entrar na adolescência descobre que os quadrinhos e os desenhos desapareceram, e que agora ele está num universo feito somente de palavras. 

É um livro metalinguístico (começa como HQ, termina como um livro só-texto) e ilustra com simpatia esta aparente crise do leitor jovem que vai ter que aprender a ler livros “sem figuras”. 

Livros feitos só de texto podem ser tão difíceis quanto músicas feitas só de sons, mas numa civilização industrialmente visual como a nossa as duas coisas devem ser defendidas, para que a Imagem não vire uma ditadura.







0767) Notas sobre poemas e letras (2.9.2005)





1.

O poema é superior à letra de música porque é independente, auto-suficiente: ele diz tudo sozinho. Aqueles versos ali são a totalidade da obra, a totalidade de significantes. Não é preciso recorrer a nenhuma outra estrutura senão aquela estrutura verbal ali presente. 

Já a letra de música é superior ao poema porque é parte de uma estrutura maior, e precisa dar conta de aspectos que o poema ignora: as subidas e descidas da melodia, as pausas para ceder vez aos “comentários” instrumentais, a emissão vocal do intérprete... Quem faz uma letra tem que pensar em muitíssimo mais coisas do que quem faz um poema.

2.

O poema é um sistema fechado, que independe do contexto. 

Claro que sua leitura pode ser “contaminada” pelo que haja à sua volta: outros poemas numa antologia, por exemplo, ou outros textos numa página de revista. Mas isto é uma contaminação inevitável a qualquer texto; em princípio pode-se dizer que um poema é um produto final, e tudo que tem a dizer está em suas próprias palavras.  O poema só pode ser interpretado pelo leitor. 

Já uma letra de música é um sistema aberto, um produto intermediário, e muito do que ela pode dizer depende de cada reinterpretação de cada pessoa que cantar aquela canção. Uma letra de música é interpretada pelo cantor, e só depois pelo “leitor” (o ouvinte).

3.

O poema ocorre no espaço, ele está impresso e fixo na página que lhe dá suporte. Ele é lido ao longo do tempo, mas existe uma região específica do espaço onde ele se situa, que é a página. 

Já a letra de música existe no tempo, só existe no momento em que está sendo cantada, mesmo que pareça estar transcrita no encarte ou numa revista. Aquilo que vai impresso no encarte não é, na verdade, a letra da música: é um texto referencial que ajuda a acompanhá-la, porque uma letra de música, por definição, é um conjunto de sons, e não um conjunto de sinais gráficos impressos.

4.

Um poema é feito exclusivamente de palavras, mesmo que o autor recorra a artifícios visuais (caligramas, variação de tipologias, etc.) para produzir efeitos estéticos. 

Já a letra de música é feita exclusivamente de sons, mesmo que a grande maioria desses sons reproduza palavras reconhecíveis. 

São obras de naturezas diferentes mas muito próximas uma da outra, o que dá origem às confusões inevitáveis que ocorrem sempre que tentamos julgar alguma coisa de acordo com os critérios de uma outra coisa que lhe está próxima. 

5.

Alguns poemas podem funcionar como letras de música, e algumas letras de música podem ser lidas como poemas, mas isto só ocorre em um número limitado de casos. 

Um poema pode ser enriquecido pelas sonoridades típicas da música, e uma letra de música pode ser valorizada pela transcrição impressa de seu texto verbal. 

Os dois não são concorrentes. São caminhos paralelos, abertos para quem quer se expressar através da Palavra, mas ambos exigem tanta dedicação que na maioria das vezes quem sabe fazer um não sabe fazer o outro.









0766) A experiência do passado (1.9.2005)



Vejam só o imenso descaso que os jovens têm com o passado. Você está andando com um filho ou sobrinho de 10 anos de idade, aí chega numa esquina, aponta e diz: “Tá vendo ali, onde tem aquele edifício? Antigamente era um boteco ótimo, onde eu vinha com meus amigos!” E o diabo do guri não dá a mínima, parece achar que esse fato não tem a menor importância. De nada adianta percorrer com ele o centro de Campina Grande e evocar os espectros da História, ele não tá nem aí. “Olhe, ali naquela esquina ficava o Mercadinho Bandeirante... Antigamente aqui nas calçadas tinha as barraquinhas de mate: com leite, com limão e com maçã... Aqui era a Livro-7, uma livraria ótima... A fachada do Alfredo Dantas tinha uns janelões enormes, e dois leões de pedra no portão de entrada...” O debilóide masca o chiclete, dá de ombros e profere a mais terrível pá-de-cal da língua portuguesa: “E daí?”

Jovem não está interessado no Passado. Nem no Futuro, pra ser sincero. Ele mal acabou de chegar, e o Presente cai sobre ele com a força irresistível da sensorialidade, da imediaticidade, da Presença. O Instante assalta os seus cinco sentidos, berra, agarra, relampeja. Algumas culturas “primitivas” têm uma organização do Tempo diferente da nossa. Possuem dois tempos apenas: o Presente, ou seja, aquilo que está acontecendo externamente, e um outro tempo que acontece apenas na nossa mente. Os jovens têm apenas um tempo: o Presente.

Alguém já disse que quando nascemos nossa mente tem dois galpões imensos, gigantescos. Um deles, o Passado, começa vazio; o outro, o Futuro, começa cheio. E durante a vida inteira não fazemos outra coisa senão transportar cargas, pacotes, caixotes, sacolas, de um para o outro, até o dia em que o Futuro está vazio e o Passado cheio. Eu diria que os jovens não dão importância ao Passado porque nunca viram nada passar. Muitas vezes têm essa experiência de um modo traumático: morte dos avós ou dos pais. Minha noção pessoal do passado na infância, por exemplo, está muito marcada por mudanças de endereço. Meus pais se mudavam muito quando eu era pequeno; até se fixarem no Alto Branco em 1961, lembro de ter morado numas seis casas diferentes, e a recordação visual de cada uma delas é muito nítida. O Passado não se confundia com o presente. Com 8 anos de idade, eu já sabia o que era ter saudade.

O jovem só vai se preocupar com o passado quando perceber que certas coisas passaram a existir somente em sua memória. Ele aprenderá a oscilar entre a sabedoria de Capinam (“As coisas passam, e eu quero é passar com elas”) e a de Dimas Batista (“Tudo passa, na vida tudo passa, mas nem tudo que passa a gente esquece”). Quando ele vir que as coisas estão morrendo à sua volta, ele sentirá a sua própria morte fechando o cerco, aproximando-se de todas as direções ao mesmo tempo; e isto não lhe dará medo, e sim um entendimento mais profundo de como o mundo funciona, e de quem ele é de verdade.

0765) Uma cidade à venda (31.8.2005)



Eu vivo falando mal do capitalismo, mas uma coisa fascinante que ele tem é essa facilidade com que manipula o mundo real como se fosse um texto ou um desenho animado. O capitalismo diz: “Quero que o mar vire sertão!” e pimba! O mar vira sertão. O capitalismo diz: “Quero uma pirâmide onde existia um deserto!” (ou vice-versa), e pimba! A possibilidade de lidar com grandes capitais, alavancar grandes projetos, produzir grandes efeitos, etc. é uma das coisas mais fascinantes do Sistema dentro do qual nascemos e dentro do qual, ao que tudo indica, iremos morrer. Eu, que passo meu tempo jogando pedra em seus telhados de vidro, não me recuso a elogiar-lhe a arquitetura.

Por exemplo: um sujeito comprou uma cidade. A cidade de Kitsault foi criada em meados dos anos 1960 no oeste do Canadá, quando a descoberta de molibdênio na região levou à criação de uma mina e à construção, por parte da empresa mineradora, de uma cidade para abrigar administradores e trabalhadores. Dois anos depois da cidade pronta, contudo, o preço do molibdênio caiu verticalmente no mercado internacional. A mina foi fechada; a cidade se esvaziou, e transformou-se numa espécie de cidade fantasma desde 1982.

Agora, apareceu um milionário que soube da sua existência e a comprou, passando um cheque de 5,7 milhões de dólares. Krishnan Suthanthiran nasceu na Índia e mora na região de Washington, onde negocia com terrenos e com implementos cirúrgicos. E é desses caras ricos que não resistem a uma pechincha. Afinal, trata-se de uma cidade prontinha, com 90 casas duplex e 7 prédios de apartamentos, além de um shopping, ginásio, piscina e instalações esportivas, fios elétricos e cabos telefônicos subterrâneos... Uma cidade pronta pra funcionar, só falta gente. As fotos lembram aqueles episódios de seriados de FC como Além da Imaginação ou Quinta Dimensão. Vejam em: http://www.niho.com/consulting/kitsaulthistory1.asp

Cidades antigamente eram criadas ao longo de séculos, as casas se erguendo uma a uma. Hoje, são construídas e desativadas num piscar de olhos, de acordo com as flutuações de mercado. Uma cidade era uma entidade complexa, produto de milhares de indivíduos. Hoje, é um objeto simples: “A” manda construir, “B” manda evacuar, “C” compra o que restou.

A simples possibilidade de um sujeito comprar uma cidade como alguém compra uma maquete tem algo de ficção científica. Me lembra uma história de Norman Spinrad, “A Thing of Beauty”, em que os EUA, falidos, começam a vender para o Japão, que se tornou a grande potência do mundo, tudo o que têm. O conto acompanha o encontro de um corretor novaiorquino que vende a um milionário japonês a Ponte do Brooklyn – ela mesma, para ser desmontada, transportada para o Japão, e remontada no jardim do novo proprietário. Existe uma profunda ironia zen nesta história, que fica menos FC e mais real a cada ano que passa.

0764) A maldição de Philip Klass (30.8.2005)



Faleceu nos EUA o jornalista Philip Klass (não deve ser confundido com o escritor Philip Klass, autor de obras de ficção científica sob o pseudônimo de William Tenn), que dedicou sua vida a questionar os ufologistas. Ele morreu aos 85 anos e era uma figura conhecida nos EUA, o tipo do cético que “bota terra” em todas as argumentações dos crédulos. Embora fosse impiedoso com as idéias, Klass era generoso com as pessoas. Costumava dizer que 90% das pessoas que avistavam OVNIs eram pessoas honestas e inteligentes que tinham visto algo que não sabia explicar (por serem leigas) e acabavam embarcando nas lendas sobre discos voadores e extraterrestres.

Klass foi o autor de um texto (muito divulgado) conhecido como “A Maldição”, onde diz: “A todos os ufólogos que me criticam em público, ou que pensam coisas ruins sobre mim em particular, eu deixo aqui consignada a Maldição dos OVNIS: Não importa quantos anos vocês vivam, vocês nunca chegarão a saber mais sobre OVNIs do que aquilo que sabem hoje. Nunca saberão, mais do que sabem hoje, sobre o que os OVNIs são ou de onde eles vêm. Nunca saberão nada, que não já saibam hoje, a respeito do que o Governo sabe sobre os OVNIs. No momento em que vocês estiverem deitados em seus leitos de morte, saberão sobre os OVNIs exatamente o mesmo que sabem agora; e lembrarão desta maldição”.

Parece uma coisa meio pesada, baixo-astral? Que nada, eu ouço essas palavras num tom brincalhão e zombeteiro. Dizer que nunca se virá a saber mais do que se sabe hoje é dizer que não há o que saber, não há o que descobrir, que tudo não passa de uma ilusão coletiva, uma lenda urbana. É claro que bastaria uma única prova irrefutável para invalidar a provocação de Klass, mas aqui pra nós, se em mais de 50 anos essa prova não apareceu, algo me diz que ela está mais longe do que perto.

Visionários sempre poderão relatar que foram abduzidos e levados para Marte ou para o planeta Vulcano; como não podem provar o que afirmam, é o mesmo que dizerem ter ido parar no Inferno de Dante ou no Reino do Vai-Não-Torna. Klass certamente se dirige àqueles ufólogos sinceros e de espírito científico que crêem na existência de uma verdade por trás daquilo tudo. Já conversei, durante o Encontro Para a Nova Consciência, com um ufólogo que pesquisa OVNIs há mais de quinze anos. “Já visse algum?”, perguntei. E ele: “Vi uma meia-dúzia de coisas que não sei explicar, mas não posso sair por aí dizendo que eram naves extra-terrestres. Era apenas uma coisa passando no céu e que eu não sabia o que era, ou seja: era um Objeto Voador Não-Identificado”. Pense num sujeito honesto! Mas ao mesmo tempo ele tinha uma certeza emocional de que existe algo de verdade por trás de toda esta história. Para mim, estes são os personagens verdadeiramente trágicos da Ufologia: os que são arrastados numa direção pela fé, e noutra pelo espírito científico. Para eles, a Maldição de Klass é fonte perpétua de insônia.

0763) Dias a mais, dias a menos (28.8.2005)






Diz um antigo mote das cantorias de viola: 

Na vida, um minuto a mais 
é mais um minuto a menos. 

Em certos momentos a gente não tem como fugir da sensação de que está gastando um capital que se aproxima perigosamente do fim. Quando a gente nasce, é como se alguém tivesse depositado em nossa conta, num Banco Cósmico qualquer, um determinado número de minutos: 30 milhões, 437 mil, etc. e tal. Depois desse depósito inicial a conta é fechada e pode-se apenas sacar: um minuto por vez. 

O problema é que a gente é obrigado a ficar fazendo esses saques, mas não consegue acessar a conta para saber o saldo que nos resta. “Quanto será que ainda tenho? Um milhão de minutos, ou meia-dúzia?”

Um minuto a mais de passado é um minuto a menos de futuro. Para levantar o astral, podemos inverter o raciocínio. Na verdade, nosso capital não está sendo torrado em vão. A conta de onde o sacamos não é uma conta pessoal nossa, é uma espécie de auxílio-desemprego anônimo e coletivo onde todo cidadão tem o direito de sacar um minuto por minuto, um dia por dia ou um ano por ano. E quando sacamos desse fundo-de-pensão coletivo levamos o rico dinheirinho e o depositamos em uma conta nossa, personalizada, registrada em nosso nome, no Banco do Passado. 

Estes minutos ou dias que vivemos são nossos, e ninguém nos toma. Não poderemos retirá-los de novo, mas a verdade é que vivemos dos juros simbólicos que este tempo vivido nos rende.

A vida inteira ficamos oscilando entre estas duas atitudes: que o Futuro é mais real do que o Passado, ou vice-versa. 

Na primeira hipótese, é como se atravessássemos uma ponte de pedra sobre um abismo, e a cada passo o lugar que acabamos de deixar desmoronasse; para não cair, só nos resta seguir sempre em frente, sem possibilidade de retorno, porque o único terreno firme é aquele onde nosso pé vai pisar no próximo passo. 

Na segunda hipótese, caminhamos por uma ponte de pedra que se estende às nossas costas e à frente se interrompe no vazio; não vemos nada adiante, não sabemos se estaremos vivos no minuto seguinte; mas, como por milagre, cada vez que pousamos nosso pé no vazio a ponte se expande para a frente, dá apoio ao nosso pé – ela vai sendo criada por nós mesmos à medida que avançamos.

Estas metáforas são tipicamente ocidentais; vem da cultura grega esse hábito de racionalizarmos tudo em termos de Aritmética ou de Geometria, de visualizar o Tempo como se ele fosse algo análogo ao Espaço. 

Temos uma mentalidade analógica, precisamos ver um ponteirinho correndo ao longo de um mostrador, qualquer coisa que nos dê a percepção visual do Todo, do Quanto Passou, e do Quanto Falta. 

Vai ver que é por isso que os jovens são tão agitados e os velhos tão vagarosos. Quando você tem vinte anos, torra num fim-de-semana o capital-Tempo referente a um mês. Quando você já dobrou o Cabo da Boa Esperança, você pega cada minuto e mói, espreme, suga, absorve e saboreia cada fraçãozinha de centavo.





0762) Esconderijo urbano (27.8.2005)




(City Hideout)

Já comentei aqui nesta coluna (“A bênção da solidão”, 23.9.2004) um filme de guerra em que um prisioneiro, não agüentando mais a cela superlotada em que vivia, prendia num canto da parede um pedaço de pano e se escondia atrás dele, para ter a sensação de estar sozinho. Era uma demonstração dessa necessidade patética que todos nós temos (ou se não todos, “somente os normais”, como diria Nelson Rodrigues) de em algum momento nos isolarmos da multidão, da presença incômoda dos olhares alheios.

Pois bem: como diria o pessoal das Organizações Tabajara, “seus problemas acabaram!”. O saite “Cool Hunting” anuncia uma singela invenção intitulada “Esconderijo Urbano” (City Hideout), projetada pelo estúdio belga OOOMS. Trata-se de uma caixa de metal desmontável, como essas caixas de papelão que usamos para embalar material. O sujeito pode levá-la na mala do carro, ou, se não for a uma distância muito grande, pode levar embaixo do braço, pois não é muito pesada. Se em qualquer momento ele for acometido pelo “pânico da multidão” é só colocá-la no chão, junto da parede, armar com ela um cubículo de um metro e meio de altura, entrar ali dentro e puxar a tampa sobre si. Vista do lado de fora, parece apenas mais uma dessas caixas metálicas usadas para proteger instalações elétricas ou telefônicas.

É pena que esta coluna não seja ilustrada, etc e tal, mas dê uma olhada no endereço: http://www.coolhunting.com/archives/2005/06/how_to_disappea_1.php#more. O saite comenta que a caixa, por outro lado, possui algumas fendas horizontais pelas quais o ocupante poderá olhar para fora sem ser percebido, o que para alguns pode ser uma forma de compensação. Ver sem ser visto! Tem gente que daria um olho para poder desfrutar deste prazer.

Os modernos escritórios das corporações substituíram as salas individuais pelos tabiques separatórios. São salas sem teto, por onde vazam conversas, ruídos, toques de telefone. Reduz a solidão, mas acaba com a privacidade. Entrar num desses escritórios é deparar-se com um enorme vão, com teto muito alto, e um labirinto de paredes pré-moldadas, coberto por um enorme “balloon” comunitário onde se misturam os diálogos, telefonemas e reuniões de todo mundo que trabalha ali. Indivíduos mais introspectivos não suportam esse tipo de zum-zum-zum, de colméia em polvorosa. Vão ao banheiro de meia em meia hora, só para poder se fechar atrás de uma porta.

Minha teoria é de que assim como na questão dos grupos sanguíneos existem “doadores universais” e “recebedores universais”, existem pessoas que necessitam constantemente do estímulo psíquico da presença e da atenção de outras pessoas, porque recebem energia com isto; e existem pessoas para que essa presença é debilitante, porque “doam” energia, e precisam se isolar de vez em quando para recuperar a normalidade. Mergulhá-las num ambiente coletivo 24 horas por dia é como matá-las de hemorragia.





domingo, 18 de janeiro de 2009

0761) A fábrica de chocolate (26.8.2005)




Não gostei tanto quanto esperava de A Fantástica Fábrica de Chocolate, em cartaz na Paraíba. Acho que me acostumei a esperar sempre de Tim Burton aquela mistura típica de terror “light”, inventividade visual, comédia, e ritmo alucinado. Está quase tudo presente neste filme, mas o que faz falta é o ritmo alucinado. É o filme mais lento do diretor, muito distante da narrativa febril de Beetlejuice, das surpresas incessantes de A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça. E é uma lentidão que não parece opção narrativa, e sim um desacordo de tom entre roteiro, direção e atores. Nas cenas em que a câmara e a montagem tomam as rédeas, o filme cresce. Quando as pessoas começam a interagir umas com as outras, o filme pára de acontecer.

Johnny Depp, um ator que admiro, parece estranhamente deslocado. Não gostei do modo como ele interpreta o personagem de Willy Wonka, o cientista amalucado que fabrica os melhores chocolates do mundo. Não posso comparar este filme com o anterior de 1971 (como Gene Wilder no papel principal), que não vi, nem com o livro de Roald Dahl, que nunca li. Mas fico com a impressão de mais um daqueles filmes em que toda a energia é despendida desenhando e construindo cenários, e fazendo coreografias digitais com imagens multiplicadas de um mesmo ator, e ninguém acha que valha a pena cuidar da parte “realista”.

Pelo menos quatro críticos acharam a caracterização de Johnny Depp uma citação direta a Michael Jackson (Ed Park no Village Voice, Roger Ebert no Chicago Sun Times, David Edelstein em Slate, e Peter Travers na Rolling Stone). O rosto emaciado e de cor artificial, o cabelo que parece uma peruca, os enormes óculos escuros, a voz aguda e infantilóide, tudo isto num sujeito que vive dentro de um paraíso açucarado de balas e doces, uma gigantesca isca para criancinhas... Se isto é coincidência, aquelas caracterizações de políticos que eu vejo no “Cassete & Planeta” também são.

O mais interessante é o aspecto ficcientífico dos cenários: as engrenagens que fabricam e empacotam os chocolates na abertura do filme, o teleportador que coloca uma barra de chocolate no lugar do monolito de 2001, o elevador de vidro que voa em todas as direções. Burton tem uma imaginação visual infatigável, e neste aspecto a Fábrica nada deve a Edward Mãos de Tesoura, Batman e outros filmes seus. O filme também tem marcas daquela leve crueldade física das histórias de Roald Dahl, que faz tanto sucesso entre as crianças. Elas adoram ver personagens antipáticos sendo sugados por máquinas, arremessados num triturador de lixo, encolhidos, esticados. Deve ser um processo terapêutico de exorcização do medo à dor física, e Tim Burton, ele próprio uma criança grande que mantém à tona esse sadismo (como o eram Lewis Carroll, Henfil, Jonathan Swift) mergulha de cabeça nesses ritos de brutalidade virtual. Burton e Dahl prometiam ser uma dupla ideal; se o presente filme fica devendo, quem sabe no próximo.

sábado, 17 de janeiro de 2009

0760) O teste de Turing do sexo (25.8.2005)



(Alan Turing)

Alan Turing foi um matemático britânico que teve um papel crucial na II Guerra, decifrando códigos alemães. Em qualquer guerra, uma das principais atividades é a de interceptar mensagens inimigas, decodificá-las e usar as informações assim obtidas (posição de tropas, local e data de prováveis ataques, etc.). O grupo de que Turing fazia parte, instalado num local chamado Bletchley Park, fez milagres. Uma parte dessa história está contada num ótimo filme (e livro) inglês chamado “Enigma”. 

Entre muitas contribuições fundamentais à teoria da informática, Turing foi o autor de um experimento teórico para decidir se computadores podem ou não pensar igual a um ser humano (v. “O teste de Turing da arte”, 4.6.2004). Ele propôs que um computador e um homem fossem colocados em salas separadas, e pessoas “de fora” fariam perguntas a ambos, por escrito (num teclado), sendo que o homem se faria passar por um computador. Se as pessoas de fora não soubessem distinguir, lendo as respostas, quem era quem, isto seria uma prova de que um computador pode pensar igual a um ser humano. (O teste é muito mais complexo do que este resumo; quem quiser saber mais, vá aqui: http://cogsci.ucsd.edu/~asaygin/tt/ttest.html). 

Turing teve a idéia baseado num jogo de salão inglês, “The Imitation Game”, em que um homem e uma mulher iam para um quarto, e as pessoas faziam perguntas por escrito para saber se quem estava respondendo era o homem ou a mulher – sendo que ambos deveriam fingir ser a mulher. 

Recentemente, alunos de uma universidade em Massachusetts puseram em prática uma variante do Teste de Turing. Freqüentadores de um saite foram convidados a fazer perguntas a um homem e uma mulher, ambos fingindo ser a mulher. E depois, noutra rodada, quem respondia eram uma mulher e o computador chamado ALICE, uma máquina projetada para conversar e responder perguntas. 

Cada perguntador tinha cinco minutos e podia perguntar o que quisesse: Você usa batom? Você usa saia? De que tamanho é seu cabelo? E assim por diante. Depois de três horas, entre 42 pessoas 23 jamais suspeitaram que ALICE não fosse uma mulher e sim uma máquina. (Eles não sabiam que havia um computador na jogada.) 

Ao que parece, a única pergunta que deixou os homens e ALICE numa “saia justa” (valha o termo!) foi: “Qual o número de meia-calça que você usa?” Todos responderam S (small), M (medium) ou L (large) – nenhum deles sabia que no caso os tamanhos são A, B, C e Q. As respostas erradas a esta pergunta botaram tudo abaixo. 

O teste, inspirado no fingimento de papéis sexuais, tem una ironia amarga pelo fato de Alan Turing ter sido homossexual, o que na Inglaterra da época era considerado uma aberração. Foi parar na cadeia em 1952, depois foi obrigado a fazer um tratamento hormonal “para virar homem”, e suicidou-se em 1954. Foi um dos homens mais inteligentes do século, morreu aos 42 anos e até hoje não há um teste que meça a estupidez de quem o matou.







0759) O Paradoxo de Zenão (24.8.2005)



Jorge Luís Borges diz que seu pai usou um tabuleiro de xadrez para ensinar-lhe “este pedacinho de escuridão grega”. Eu o conheci por volta dos doze anos, no excelente livro Nós e a Natureza – O Romance da Física de Paul Karlson, cuja reedição recomendo à Editora Globo. Zenão de Eléia (às vezes chamado “Zenon”, de onde veio o nome daquele grande armador do Guarani de Campinas e do Corinthians), que viveu no quinto século antes de Cristo, era um especialista em “botar terra” nas idéias aparentemente óbvias dos outros. Quem quiser conhecer melhor suas idéias pode olhar em: http://www.iep.utm.edu/z/zenoelea.htm.

Na verdade, Zenão propôs uma série de paradoxos, o mais famoso dos quais é conhecido como “Aquiles e a tartaruga”. Suponhamos que Aquiles decide apostar carreira com uma tartaruga numa pista de um quilômetro, e dá a ela uma pequena vantagem de cem metros. Aquiles está no ponto zero, a tartaruga no ponto 100. Ao sinal, os dois partem. Quando Aquiles cruza os primeiros cem metros, a tartaruga andou (digamos) dez. Aquiles transpõe estes dez, mas não a alcança porque no mesmo intervalo ela andou mais um metro. Quando ele transpõe este metro, ela andou dez centímetros. Ele transpõe os dez centímetros, mas aí ela andou mais um centímetro. Ele transpõe este centímetro, mas aí ela andou dez milímetros. Ele cruza esta distância, mas a tartaruga andou um milímetro a mais. Quando ele atravessa esse milímetro, a tartaruga andou um décimo de milímetro. E assim por diante. Aquiles jamais alcançará a tartaruga.

Este parábola finge provar que, se considerarmos que o Espaço e o Tempo são infinitamente divisíveis em unidades cada vez menores, precisaremos de um Tempo infinito para transpor qualquer distância de Espaço. É claro que a função de uma historieta assim é apenas ilustrar uma questão puramente matemática, porque salta aos olhos de qualquer pessoa que se você botar uma tartaruga para disputar uma corrida com um sujeito, mesmo com cem metros de vantagem, ele a ultrapassará sem problema algum. Não precisa nem ser Aquiles; pode ser até Jô Soares.

Releia o segundo parágrafo, camarada. “Aquiles” e “Tartaruga” são engodos, para dar a impressão de que basta um deles ser mais rápido do que o outro. E bastaria, se a velocidade de ambos fosse constante. O que importa a Zenão é que depois de cada etapa transposta, a velocidade dos dois na etapa seguinte diminui proporcionalmente, e a distância entre os dois continua proporcionalmente a mesma. Daí a pouco estaremos dizendo que enquanto “Aquiles” transpõe um milésimo de milímetro a “tartaruga” já avançou um décimo-de-milésimo de milímetro, e assim por diante. A esta altura, ambos estão em ultra-super-câmara-lenta. O Paradoxo de Zenão não tem relação com o movimento real dos corpos. O que ele demonstra é nossa possibilidade de inventar um número infinito de obstáculos (ou de etapas a serem percorridas) para que uma tarefa mental seja cumprida.

0758) Eu era feliz e não sabia (23.8.2005)




Quando eu era pequeno, Ataulfo Alves era um dos compositores mais conhecidos no país, algo como Martinho da Vila hoje em dia. Suas músicas tocavam o tempo todo, todo mundo queria gravá-las. 

Uma das mais conhecidas é a canção nostálgica em que ele relembra sua cidade natal, Miraí (MG), com versos simples e emotivos: “Eu daria tudo que tivesse pra voltar ao tempo de criança... Eu não sei por quê que a gente cresce, se não sai da mente essa lembrança”. 

Ele recorda o ambiente da cidadezinha, as pessoas que sumiram no tempo: “Que saudade da professorinha que me ensinou o b-a-ba... Onde andará Mariazinha? Meu primeiro amor, onde andará?” E termina: “Eu igual a toda meninada, tanta travessura que eu fazia! Jogo de botão sobre a calçada... Eu era feliz e não sabia!”

Este verso final incorporou-se à nossa linguagem cotidiana, virou uma parte do falar brasileiro, e não sei de honra maior para um verso escrito por um indivíduo. Dizemos isto a propósito de tudo, a propósito de qualquer situação passada que na hora não parecia grande coisa mas que, quando a vemos em retrospecto, a gente sente uma falta danada. 

Certa vez, quando participei da criação de motes para o Congresso de Violeiros de Campina Grande, propus o mote: “A gente só é feliz / quando não sabe que é”. Era no tempo em que o Congresso lotava o Ginásio da AABB com milhares de estudantes. Éramos felizes, e não sabíamos.

Ataulfo parece sugerir que existe um certo conflito entre a felicidade e a consciência desta felicidade. Quando estamos totalmente absorvidos por êxtases ou epifanias, não sobra muito tempo para botarmos as mãos nos bolsos e pensarmos, “puxa vida, que momento legal este!” 

Parece sugerir também que esse tipo de felicidade só existe na infância, naquele momento em que já somos grandes o bastante para fruir com intensidade as coisas boas da vida (Mariazinha, o jogo de botão, etc.), mas não sabemos ainda das desilusões e dos sofrimentos que nos aguardam mais adiante.

Basta pegarmos a máquina-do-tempo, no entanto, para percebermos que não é bem assim. Lá está Ataulfinho, de calção, sentado na calçada, jogando botão em cima de uma tábua e vendo Mariazinha pular corda ali perto: a saia subindo e descendo... 

Esta é a imagem que lhe ficará na memória meio século depois, mas ao retornar àquele instante específico ele sente virem à tona uma horda de coisas ruins que já esquecera. A prova de Geografia amanhã, para a qual não estudou nada. A ameaça feita por Zezim da esquina de dar-lhe uns cascudos por causa de uma guerra aérea de corujas. O pai, que vive adoentado, gemendo, recusando-se a tomar remédio e dizendo que “não é nada”. Os dez tostões a mais que pegou do troco da bodega e que a mãe anda procurando em altas vozes por dentro de casa. 

Felicidade? Claro. A felicidade é a memória passada a limpo, expurgada dos “quatrocentos golpes” que nos ferem e nos magoam a cada dia. Só se é feliz hoje muito tempo depois.





quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

0757) Eu blogo, tu blogas (21.8.2005)



O caro leitor ou a cara leitora tem um blog na Internet, ou já teve? Então está devendo um dólar a Jorn Barger, e se cada um desses numerosos devedores comparecesse na caixinha quebraria o maior galho para esse sujeito que é mais um dos heróis anônimos do ciberespaço. Já falei aqui nos blogs (“Blog”, 17.2.2005) e já homenageei Scott Fahlman, o cara que inventou o emoticon, aquela carinha engraçada tipo :-) feita com sinais de pontuação (“Os emoticons”, 15.8.2003). Pois agora quero tirar um chapéu metafórico para o sujeito que inventou a palavra “weblog” para esta mistura de diário íntimo e manifesto público, de caderneta de anotações e de discurso-numa-caixa-de-sabão no meio da praça, este sucedâneo da poesia mimeógrafo, do jornal mural e da carta pros amigos.

Barger tinha uma página na World Wide Web, “a rede do tamanho do mundo”, intitulada “Robot Wisdom”, onde ele colocava todas as coisas interessantes que achava na Internet, onde garimpava o dia inteiro. Isto era no final de 1997, e o título da página era “Robot Wisdom WebLog”. Vejam a colocação da maiúscula: ela indica que se trata de uma palavra composta de “web + log”, sendo que “log” significa diário, livro de anotações periódicas. Coube a Peter Merholz, em 1999, quebrar a palavra de maneira diferente: “we + blog”, criando um verbo novo: “nós blogamos”. Blogar virou sinônimo de manter uma página da Web onde o titular “posta” (verbo típico do jargão dos blogueiros) textos periodicamente, às vezes todos os dias e até várias vezes por dia, o que dá aos blogs adolescentes essa equivalência aos diários ou agendas onde registram suas emoções e os fatos do seu cotidiano. Um blog, tipicamente, permite a colagem de fotos e ilustrações, permite que se coloquem links para outras páginas da Web, e permite também que os leitores postem os seus comentários a qualquer material incluído no blog, os quais podem ser lidos por todo mundo. Um blog é um empreendimento pessoal, mas interativo.

Jorn Barger ainda mantém o seu “Robot Wisdom”, que pode ser acessado em: http://www.robotwisdom.com/ . Ele não é de postar comentários longos, e seu blog hoje é uma infindável coleção de links com descrições breves. Barger é um típico nerd da geração Internet (hmmm, acho que acabei de inventar uma palavra nova, “internerd”). Leitor de filosofia, de misticismo oriental, de James Joyce e de informática, sempre teve um problema danado com essa coisa irritante que é ganhar dinheiro (“mon semblable, mon frère!”). Bateu cabeça pra lá e pra cá, e meses atrás um jornalista o encontrou na rua com um cartaz: “Inventei a palavra blog e nunca ganhei um centavo”. Morava na casa de amigos, e sobrevivia com um dólar diário. Vamos, pessoal. Nós todos que usamos estes troços não ficamos comprando produtos da Microsoft? Vamos mandar um dólar para Jorn Barger. Alguma coisa me diz que estamos financiando a América errada.

0756) “The Waste Land” (20.8.2005)



Ele já foi chamado “o maior poema do século 20”, e embora eu seja inimigo declarado de conceitos como “o maior, o melhor, o mais importante” não se pode negar que é um texto utilíssimo para entender o sentimento apocalíptico e sombrio da civilização ocidental na década de 1920. “The Waste Land”, de T. S. Eliot (título que Paulo Leminski, brilhantemente, sugeriu traduzir por “Devastolândia”) é um poema que fala de ruína, vazio espiritual. Algumas de suas expressões viraram citações recorrentes: “Abril é o mais cruel dos meses”, “Beladonna, Lady of the Rocks”, “ó doce Tâmisa, flui devagar, até que eu encerre minha canção...” É um belo poema, embora crivado demais de citações poliglotas para meu gosto. Fico pensando como seria a tal versão original que, reza a lenda, Eliot mostrou a Ezra Pound, e na qual Pound meteu a caneta, reduzindo o poema à metade e dando-lhe sua forma atual.

Mas quem sou eu para gostar ou não gostar? Textos assim dão à literatura algo do mundo alucinatório das artes plásticas, onde quadros famosos (pense Da Vinci, Van Gogh, Picasso) são objeto de análises químicas, raios-X, tomografias computadorizadas. Recentemente, um professor de literatura chamado Lawrence Rainey decidiu reconstituir o processo de escritura de “The Waste Land”. Em 1971, foi localizado um maço de páginas do manuscrito original, e Rainey decidiu compará-las com outros documentos escritos por Eliot no mesmo período. Ele recorreu ao FBI, que lhe repassou técnicas de identificação de máquinas de escrever. Usou micrômetros para medir e comparar a espessura de cada folha do manuscrito, agrupando-as. Visitou 22 bibliotecas e coleções de documentos sobre Eliot durante dois anos. Examinou um total de 1.200 páginas originais, incluindo 638 páginas de cartas escritas por Eliot entre 1912 e 1922.

A conclusão final de Rainey é de que Eliot escreveu “The Waste Land” entre janeiro de 1921 e janeiro de 1922, e não escreveu seguindo um plano, mas improvisando fragmentos que depois foram cuidadosamente encaixados uns aos outros. (E cá pra nós, é justamente a impressão que o poema dá) Com isto, ele contesta a interpretação dos críticos da época de Eliot, de que o poema era fruto de um meticuloso planejamento.

O livro de Rainey, Revisiting The Waste Land saiu pela Yale University Press, e mostra o quanto o valor de uma obra literária se mede pela reação que desperta nos que a lêem. Borges dizia que um clássico é um texto que se lê “com prévio fervor e misteriosa lealdade”. Não vejo melhor exemplo disto do que empreitadas como a do Prof. Rainey, que tem algo do detalhismo de um Sherlock Holmes misturado à obstinação de um Champollion e ao irracional amor (perdoem o pleonasmo) desses fãs dos Beatles como Mark Lewisohn, capazes de ouvir e anotar milhares de quilômetros de fita magnética para reconstituir todos os “takes” não usados em cada canção de cada disco.