quinta-feira, 26 de agosto de 2010

2329) Drummond: “Construção” (25.8.2010)


(Drummond, por Beatrix Sherman) 

Estou comentando nesta coluna os poemas de Carlos Drummond de Andrade em seu livro de estréia Alguma Poesia, que está comemorando 80 anos de lançamento. Embora a obra de CDA seja variadíssima e cheia de fases, é possível dizer, sem cometer absurdo, que todos os traços principais desta obra já estão presentes em seu primeiro livro. (Não se pode dizer o mesmo, por exemplo, dos livros de estréia de João Cabral ou de Jorge de Lima.) 

Dos poemas iniciais pegarei hoje dois que se aproximam pela temática. Não sei se a construção civil era um tema habitual na época, mesmo entre os Modernistas. Haverá alguma coisa assim em Mário, em Oswald? Talvez haja em Bandeira, que já era moderno e urbano antes de todos os demais. Em todo caso, há dois poeminhas aqui que são quase que um só. “A rua diferente” diz: “Na minha rua estão cortando árvores / botando trilhos / construindo casas. // Minha rua acordou mudada. / Os vizinhos não se conformam. /Eles não sabem que a vida / tem dessas exigências brutas. // Só minha filha goza o espetáculo / e se diverte com os andaimes, / a luz da solda autógena / e o cimento escorrendo nas fôrmas”. 

 A filha é Maria Julieta, nascida em 1928. A cidade não é Itabira, é Belo Horizonte, que na época do livro de Drummond tinha metade da população que Campina Grande tem hoje. Drummond registra a entrada dolorosa da cidade na puberdade urbana, num poema em que o “eu” só aparece indiretamente (“minha rua”, “minha filha”). O poeta não toma partido, fala da melancolia dos vizinhos e da alegria da garota. O bota-abaixo da cidade é como o bota-abaixo da poesia modernista. Os apegados à paisagem velha ficam assustados; os jovens se divertem. Drummond, neste poema, rigorosamente não toma partido, apenas constata. (E quem constata uma mudança sem tomar partido é porque é a favor.) 

O outro poema, “Construção”, prefigura a canção homônima de Chico Buarque, ao falar que “um grito pula no ar como um foguete”. Não diz se é a queda de um operário, embora ela seja sugerida pelo verbo em outro verso mais adiante: “o sol cai sobre as coisas em placa fervendo”. A palavra “andaimes” liga este poema ao anterior, pendura os dois no mesmo varal temático. 

“Construção” emprega imagens sonoras (valha o oxímoro) ao dizer que “o sorveteiro corta a rua”, porque isto me sugere mais o som (não sei se o grito, a buzina, sineta, ou que diabo um sorveteiro usava naquele tempo) do que a imagem do sorveteiro passando. E também imagens térmicas (é verão, indicado pela placa fervendo e pelo sorvete). 

A frase final (“E o vento brinca nos bigodes do construtor”) é uma sinédoque (a parte pelo todo) ou um plano de detalhe cinematográfico: o tranquilo sorriso de triunfo do capitalismo em expansão, indiferente à temperatura ou aos acidentes de trabalho. É talvez parente do “homem atrás dos óculos e do bigode” do “Poema de Sete Faces”. É um sujeito sólido, frio, de poucos amigos. É o Mundo Moderno.