sexta-feira, 17 de agosto de 2012

2953) A Casa da Colina (18.8.2012)





Onde os escritores vão buscar suas idéias? Às vezes, com perdão do clichê, são as idéias que os procuram. 

Shirley Jackson (1916-1965) conta, num ensaio de 1958,  que decidiu escrever um romance sobre fenômenos parapsicológicos, e, “como tantas vezes ocorre, assim que eu comecei a pensar em fantasmas e casas assombradas todo tipo de coisa começou a chamar minha atenção, ou talvez eu estivesse tão concentrada no livro que tudo que eu via adquiria relação com ele”. 

Ela conta que viajou com o marido a Nova York e numa parada de superfície do metrô avistou um prédio, “escuro e horrível no crepúsculo”, e de aparência tão desagradável que não conseguiu tirar os olhos dele. Isso estragou seu passeio, porque toda noite ela tinha um pesadelo com o prédio. 

Quando voltou para casa, ela escreveu a um amigo de NY e pediu-lhe que se informasse a respeito dele. O amigo respondeu que teve dificuldade em localizar o prédio, porque ele só podia ser visto da parada do metrô. Tinha sido destruído por um incêndio, no qual morreram nove pessoas, e seus três outros lados eram meras “cascas” arruinadas. E era considerado assombrado, na vizinhança.

Jackson continuou a ler e pesquisar sobre fantasmas, e encontrou numa revista a foto de uma casa que lhe pareceu equivalente ao prédio de Nova York. Tinha o mesmo ar doentio e decadente. A única informação sobre a casa era o nome da cidade onde ficava, na Califórnia. 

Ela escreveu à mãe, que vivia naquele Estado, para que procurasse alguma pista da casa. A mãe lhe respondeu, surpresa. Sim, ela conhecia aquela casa; tinha sido construída pelo próprio bisavô de Shirley Jackson. Depois de ficar abandonada durante anos, tinha sido destruída por um incêndio, e a crença geral é que tinha sido propositalmente incendiada pelos moradores da cidade.

Dias depois, Jackson achou em sua escrivaninha um papel, com sua caligrafia, onde estava escrito: “Dead Dead” (morto, morto). Não se lembrava de ter escrito aquilo, mas achou que era mais um sinal. 

O livro dela foi publicado no ano seguinte, com o título de  The Haunting of Hill House (1959). É um clássico do romance de terror, que foi filmado por Robert Wise como Desafio ao além (1963; é o filme de terror preferido de Martin Scorsese) e por Jan de Bont como A Casa Amaldiçoada (1999, com Liam Neeson e Catherine Zeta-Jones). 

E dá uma resposta (parcial) à pergunta sobre de onde vêm as idéias. Às vezes o escritor está casualmente na “linha de fogo” entre alguma coisa que existe em sua memória inconsciente e alguma coisa com que ele se depara no mundo exterior. Acontece um relâmpago ligando essas duas coisas, e o livro é a foto desse relâmpago.






2952) Literaturas leves (17.8.2012)




Existem formas pesadas e formas leves de literatura. Entre as formas pesadas estão o romance e, talvez surpreendentemente, o conto, que à primeira vista pareceria ser leve, pelo mero fator do tamanho.  Mas ambas são igualmente pesadas pelo grau de intensidade que requerem: criação de ambientes, de personagens, de trama, etc.  Um romance pode ser mais “pesado” do que um conto, mas uma página de um e uma página de outro devem ter o mesmo peso.

Existem formas leves que não necessitam de tanta imaginação e elaboração, pedem apenas cultura, estilo, sensibilidade.  Muita gente pode não achar que uma carta, uma mera carta pessoal dirigida a um amigo, possa ser uma obra literária.  As cartas publicadas de muitos grandes escritores contradizem de certo modo essa expectativa.  As cartas de H. P. Lovecraft e de Raymond Chandler são, em alguns aspectos, superiores à obra de ficção que produziram. Cartas são literatura de não-ficção, tal como os Diários, outra forma de literatura leve que foi brilhantemente cultivada por muitos romancistas.  Há mesmo autores que se celebrizaram pelos Diários que escreveram, e que em alguns casos foi tudo que publicaram.  Diários como os de Anne Frank, Anaïs Nin e outros são obras que acabam tendo um alcance muito superior ao de muitas obras de ficção.

As memórias e autobiografias são uma extensão disso. São gêneros leves, porque dispensam a criação de enredos e de personagens, e têm valor apenas pelo poder de observação do autor, pelo interesse que possa ter o seu estilo, e pelas que suas digressões e reflexões possam ter de enriquecedor.  Nunca li um romance inteiro de Simone de Beauvoir, mas a considero uma grande escritora apenas pela sua meia dúzia de volumes de memórias.

Ainda mais leve do que estes parece ser a crônica, e eu diria que a diferença entre escrever um conto e escrever uma crônica é da mesma natureza que a diferença entre cantar e cantarolar.  O conto requer mais esforço imaginativo e mais intensidade de expressão, mais intenção criadora; a crônica é mais superficial (no bom sentido), informal, descontraída. Claro que existem mil gradações entre uma coisa e a outra, e são essas mínimas diferenças de ênfase que nos fazem tantas vezes ficar sem saber se um texto pertence a um ou ao outro grupo. A crônica tanto pode ser um conto onde não há história, somente reflexões e digressões, como também pode ser um conto onde há somente a história reduzida ao meramente narrativo, sem maior elaboração, sem reflexão alguma.  O conto é como uma canção cantada num palco num show que cobra ingresso; uma crônica é como uma canção cantarolada entre amigos.