sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

1463) “Flicker” (21.11.2007)



Ainda estou um pouco zonzo após a leitura deste romance, que é descrito pela editora como uma História Secreta do Cinema, e é exatamente isto. É um thriller de mistério, uma sátira à cultura-de-massas, um romance teológico sobre a luta do Bem contra o Mal, uma descrição jornalisticamente precisa do ambiente cultural da Califórnia nos anos 1960, uma história de amor e erotismo, e muitas coisas mais. Além disso, é um livro de cinéfilo para ser lido por cinéfilos, porque é uma história de amor ao Cinema, e não me refiro apenas a entender e gostar de Filmes de Arte, mas entender e gostar de projetores, cabines, sessões da meia-noite, filmes B de diretores obscuros, cópias de filme em 16mm, e da arte de ver um filme três vezes seguidas, sendo a última delas em exibição quadro-a-quadro.

Algumas dessas descrições se auto-justificarão quando eu revelar que o autor do livro é Theodore Roszak, que escreveu A Contracultura, livro que um clichê jornalístico me compele a referir como “uma das Bíblias da minha geração”. Roszak foi um dos que melhor destrincharam a curiosa mistura de elementos culturais contraditórios em que consistia a Contracultura, onde se reuniam o rock, o misticismo oriental, as drogas alucinógenas, o sexo livre, a poesia simbolista, o xamanismo, e por aí vai.

Flicker (Summit Books, 1991) é uma história de conspiração que se estende pelo mundo inteiro ao longo de vários séculos, e neste sentido só posso compará-lo ao Código da Vinci de Dan Brown e ao Pêndulo de Foucault de Umberto Eco. O narrador é Jonathan Page, um jovem cineclubista da Califórnia (se bem que o conceito de “cineclube” como temos no Brasil não se aplica à cultura cinéfila dos EUA) que descobre meio por acaso a obra de Max Castle, um diretor de filmes B de terror, uma espécie de Roger Corman ou Terence Fisher que fazia filmes de vampiros ou de zumbis com baixos orçamentos, mas obtinha resultados perturbadores. Investigando a técnica que permitia a Castle a inserção de mensagens subliminares em seus filmes (o chamado “flicker”, ou “pisca-pisca”), Page acaba se metendo numa conspiração de uma organização secreta que coloca o Priorado do Sião no chinelo.

Mais não posso revelar sem estragar o prazer da leitura dos possíveis candidatos, mesmo sabendo que são poucos, pois não me consta que o livro tenha sido traduzido em português. Em todo caso, Flicker vai para a estante da História Secreta do Cinema juntinho de Suspeitos de David Thomson, este sim traduzido no Brasil, no qual o autor encadeia uma complicada conspiração de personagens de filmes B norte-americanos. Profetizo que nas próximas décadas o imaginário cinematográfico, principalmente dos EUA, invadirá cada vez mais a literatura, em obras com este perfil: ritmo e suspense de thriller policial, exaltação ao mistério do cinema, e fartas doses de cultura-de-almanaque para deliciar os aficionados.

1462) Os dois críticos (20.11.2007)


(João Alexandre Barbosa)

Participei neste fim-de-semana da “Balada Literária” que aconteceu em São Paulo, organizada por Marcelino Freire e Maria Alzira Brum Lemos. Foram numerosos lançamentos, shows, debates, recitais poéticos, etc., mas para mim o ponto alto foi a mesa do domingo, uma homenagem póstuma ao crítico João Alexandre Barbosa que reuniu Antonio Cândido, Davi Arrigucci Jr. e Boris Schnaidermann. Fiquei feliz (e um pouco intimidado) ao ver pela primeira vez em carne e osso, à minha frente, esses três indivíduos cuja obra leio (desorganizadamente, confesso) há cerca de quarenta anos.

Antonio Cândido declarou, a certa altura, que João Alexandre Barbosa foi um personagem da transição do crítico literário de jornal para o crítico literário acadêmico. Ele lembrou que até a década de 1930 não existiam cursos superiores de Letras no país, e os críticos de literatura, quando formados, vinham de áreas como o Direito, e exerciam a crítica através dos jornais. Críticos de jornal foram figuras ilustres como José Veríssimo, Sílvio Romero e tantos outros, até que pouco a pouco começaram a surgir gerações sucessivas de indivíduos formados em Letras, cuja atividade crítica e teórica se dava nas revistas universitárias, nos congressos, nas coletâneas de artigos acadêmicos, e no magistério propriamente dito.

Para Cândido, João Alexandre foi um dos primeiros grandes nomes dessa transição entre a crítica de jornal (mais ensaística, mais “literária”) e a crítica acadêmica, mais rigorosa e investigativa. A geração de Cândido começou publicando em jornal, e depois ascendeu à Universidade; a geração de Barbosa já estreou na crítica acadêmica.

Cândido fez um elogio singelo e respeitoso à atividade crítica de jornal, que ele classificou como “crítica de risco”, porque é feita no calor da batalha, avaliando, meio de improviso, obras de estréia assinadas por autores desconhecidos. O crítico acadêmico, disse ele, muitas vezes se refugia sob o manto protetor de um Camões ou de um Machado. Corre o risco de erro de avaliação, mas não de erro de escolha. Já o crítico de jornal recebe um livro hoje, de alguém de quem nunca ouviu falar, e tem alguns dias para ler e dar seu diagnóstico.

Cândido recordou o dia em que recebeu um livro com o título Perto do Coração Selvagem e não sabia se “Clarice Lispector” era de fato uma mulher ou um homem escrevendo sob pseudônimo. A obrigação de julgar o livro em si pode levar a erros, a arrependimentos futuros (por ter elogiado, ou por ter descido o sarrafo), mas este é um perigo que o crítico acadêmico raramente corre, porque em geral pode escolher seus objetos de estudo. E o mestre da USP criticou uma certa mentalidade que ainda vigora em setores da academia, a de que a Universidade só pode estudar autores mortos, “porque o autor vivo ainda é uma incógnita”. É um recuo estratégico para o terreno do lugar comum; um medo de correr riscos defrontando-se com um texto inclassificável de um autor desconhecido.

1461) “As rosas não falam” (18.11.2007)


(Cartola)

Cartola é considerado um dos nossos compositores mais elegantes. Os historiadores contemporâneos do samba ressaltam o lado nobre, elegante, refinado de muitos sambistas. Essa atitude vem reparar uma das injustiças críticas que se faz com a música negra, de considerá-la sempre primitiva, meio selvagem, inculta, impondo-se mais pela exuberância dos ritmos e pelo espírito dionisíaco do que por qualidades que inconscientemente assimilamos à cultura branca e européia: a inteligência, a delicadeza, o refinamento. Daí que muitos analistas do samba procurem, com justiça, ver essas qualidades em artistas como Pixinguinha, Ataulfo Alves, Moacir Santos, Paulinho da Viola, Paulo Moura. Além de Cartola.

Tomarei como exemplo uma das suas canções mais conhecidas: “As rosas não falam”. É uma canção épica, gigantesca, definidora de nossa nacionalidade? De jeito nenhum. É uma pequena canção de amor, com tudo de positivo que a palavra “pequena” implica: justamente a delicadeza, o refinamento, o equilíbrio e a elegância de que falei acima.

A letra descreve a situação de um sujeito encalhado entre o abandono e a esperança: “Bate outra vez / com esperanças o meu coração / pois já vai terminando o verão / enfim. // Volto ao jardim / com a certeza que devo chorar / pois bem sei que não queres voltar / para mim.” A situação recorrente (“outra vez”, “volto”) é reforçada pela mudança melódica – o primeiro trecho, até “enfim”, tem uma melodia redonda, tranquila; o segundo, a partir de “volto ao jardim”, tem uma melodia mais angustiada, numa tensão dada principalmente pelas três notas das sílabas de “com a cer-TE-za que DE-vo cho-RAR”.

Vêm a seguir os versos mais famosos: “Queixo-me às rosas. / Que bobagem, as rosas não falam. / Simplesmente as rosas exalam / o perfume quer roubam de ti”. A elegância de Cartola surge toda neste trecho, pelo uso de um verbo rebuscado que pareceria pretensioso e artificial na maioria dos contextos. Imagino que a primeira idéia do poeta foi dizer algo como “que bobagem, as rosas não falam, simplesmente as rosas se calam...” Mas teve que repelir uma redundância desse tipo. Ousou empregar o verbo “exalam” sabendo que a aceitação do leitor/ouvinte seria recompensada por uma imagem de grande força lírica, a de que o perfume das rosas é roubado à mulher amada.

Nos versos seguintes (“Devias vir / para ver os meus olhos tristonhos / e quem sabe sonhavas meus sonhos / por fim”), Cartola inverte o processo. Usa propositalmente uma rima clichê (sonhos/tristonhos), mas em troca de outra bela imagem: “e quem sabe sonhavas meus sonhos / por fim”. Esta imagem me lembra o filme A Hora do Lobo de Ingmar Bergman, em que uma mulher ama um homem com tal intensidade e desprendimento que passa a ver também as alucinações que o acometem. Quando dizemos “sonhe comigo” não estamos pedindo “tenha um sonho em que eu apareça”. Estamos propondo: sonhemos em uníssono, sonhemos juntos o mesmo sonho.

1460) Os mandamentos do caubói (17.11.2007)




(Gene Autry)

No saite “BoingBoing”, um dos meus habituais fornecedores de assuntos, encontrei um curioso decálogo que, segundo Cory Doctorow, dono do saite, foi elaborado em 1930 por Gene Autry, famoso cowboy do cinema americano. (Se não foi por ele foi por um grupo de redatores pagos por ele, o que dá no mesmo.) 

É uma espécie de decálogo de mandamentos éticos do Cowboy, visto aqui não apenas como o vaqueiro que cuida do gado, mas como uma imagem polivalente em que se fundem o Vaqueiro, o Herói Solitário (vide Os Brutos Também Amam) e o Xerife Incorruptível (vide Matar ou Morrer).

Vejamos os mandamentos de Gene Autry. 

1) Um Cowboy nunca deve atirar primeiro, nem bater num indivíduo de menor estatura, ou tirar qualquer tipo de vantagem desleal. 

2) Um Cowboy nunca deve faltar com a palavra dada, ou trair a confiança que depositaram nele. 

3) Um Cowboy deve sempre falar a verdade. 

4) Um Cowboy deve ser sempre gentil com as crianças, os idosos e os animais. 

5) Um Cowboy nunca deve manter ou defender pontos de vista que envolvam preconceitos raciais ou religiosos. 

6) Um Cowboy deve socorrer pessoas que estão em situação difícil. 

7) Um Cowboy deve ser trabalhador. 

8) Um Cowboy deve manter-se sempre limpo em pensamento, fala, ação e hábitos pessoais. 

9) Um Cowboy deve sempre respeitar as mulheres, os seus pais, e os ideais de seu país. 

10) Um Cowboy deve ser patriota.

É visível que o ideal de Cowboy que Gene Autry tinha em mente era alguém como ele próprio, ou cowboys clássicos do cinema como alguns interpretados por Henry Fonda ou Gary Cooper. Nada a ver com cowboys mais problemáticos, mais niilistas, mais nietzschianos como Clint Eastwood. 

O conceito de cowboy contido nesse decálogo está muito próximo dos cavaleiros medievais. É a filosofia do “noblesse oblige”: a nobreza, nossa principal qualidade, nos obriga a proceder de maneira elevada, com ideais nobres, princípios altruístas. A nobreza consiste em tratar de maneira nobre até mesmo aqueles que não são assim. Consiste em proteger os fracos, não compactuar com os desonestos, servir como modelo de conduta. 

Ser nobre, para os verdadeiros cavaleiros medievais, não era afirmar-se como superior aos demais. Era afirmar-se como seguidor de um modelo superior de conduta ao qual todos os indivíduos deveriam se amoldar.

Este modelo de conduta é também muito próximo de um ideal ético que nos é bem familiar: o do Sertanejo, que é antes de tudo um forte, e que antes até de ser um forte é um honesto. Não tenho dúvida de que muitos autores dedicados ao Sertão, de Euclides da Cunha e Ariano Suassuna até Guimarães Rosa, subscreveriam, sem reler, a maioria dos itens do decálogo daquele modesto vaqueiro do cinema dos EUA. 

Cavaleiro medieval, samurai japonês, cowboy americano, sertanejo do Brasil, tudo isto são mutações de um ideal de conduta cada vez mais corroído pelo cinismo e pela despersonalização do chamado Mundo Moderno.