quinta-feira, 30 de setembro de 2010

2360) A palavra texto (30.9.2010)




Para mim, esta é uma das palavras mais importantes e onipresentes do idioma. Gosto de pesquisar etimologias (passatempo tão interessante quanto jogar Sudoku ou Tetris), e fico sabendo que sua raiz indo-européia mais remota é a partícula “teks”, que significa “tecer”. O que já nos projeta no território recursivo da autodefinição, pois sem dúvida a própria palavra “tecer” vem da mesma raiz. 

Por isso, quando ouvimos falar, por exemplo, que “em Campina Grande sempre floresceu com ímpeto a indústria têxtil”, estamos nos referindo não só à confecção de roupas, mas também à prosa e à poesia.

Um verbete do saite A Word A Day comenta a palavra “subtile”, que à primeira vista parece significar “sutil”, mas acontece que “sutil” em inglês é “subtle”. O que seria esta outra? Seria talvez o que em português distinguimos como “sútil”: “composto de pedaços cosidos uns aos outros; costurado”. Basta lembrar a palavra “inconsútil”, que significa “algo inteiriço, que não foi costurado”, como a túnica de Jesus. 

Como dizia Emílio de Menezes: “Anda! Beija-me aos pés a clâmide inconsútil...” Uma coisa sutil é uma coisa que é sútil de tal maneira que é necessário um esforço para distinguir as costuras ou urdiduras do tecido.

Tecido, por sinal, é sinônimo etimológico de texto. Um pedaço de pano e um poema são a mesma coisa. Assim como um tecido, um texto não é um mero aglomerado de fios, porque se o fosse se desfaria com facilidade, mal o erguêssemos nas mãos. 

(É o que acontece com os livros mal escritos – mal a gente acaba de ler um parágrafo e passa para o seguinte, tem a sensação de que o anterior está se desmanchando e sendo levado pelo vento.) 

Assim como num pano existem a trama e a urdidura (os fios horizontais e os verticais) num texto há estruturas transversais umas às outras, que se engancham apertadamente entre si e se dão firmeza.

O interessante é que o A Word A Day indica as seguintes palavras que também vêm da raiz “teks” (tecer): arquitetura (em que o “tecer” não se dá através de fios, mas de macroestruturas), tectônico (a arte de construir, mas aplica-se especificamente às placas geológicas que suportam os continentes), tecnologia (o conjunto de instrumentos e procedimentos que se interligam para produzir uma transformação no mundo físico). 

Em tudo existe a ideia básica, que não se diluiu, de um conjunto de elementos concretos que se apóiam uns aos outros.

Não sei se algum leitor já visitou a cidade paraibana de São Bento, no alto Sertão, um pouco pra lá de Brejo do Cruz. Durante o dia inteiro escuta-se o traque-traque (ou seria melhor dizer o tek-tek?) de centenas de teares artesanais fabricando redes. 

Passei uma semana lá fazendo um trabalho e nada me fascinou tanto quanto o modo como os tecelões faziam as lançadeiras correr de um lado para outro, por entre as trocas de posição das armações da madeira, enquanto as crianças enchiam de fios as espôlas. Não percebi que todos estavam escrevendo um texto.





quarta-feira, 29 de setembro de 2010

2359) A estética do Meu Passado Me Condena (29.9.2010)




O título brasileiro deste dramalhão de Basil Dearden (Victim, 1961) virou clichê. 

 Títulos como Assim caminha a humanidade, Suplício de uma saudade ou Adeus às ilusões, que não têm nada a ver com o título em inglês do filme, são produto da imaginação das distribuidoras nacionais, e acabam se tornando pequenas jóias onde se cristalizam idéias fundamentais do gênero folhetinesco.

No folhetim há sempre alguém que tem um passado misterioso, uma culpa escondida, um esqueleto no armário, um conflito mal resolvido, uma identidade deixada para trás. 

Em inglês há uma expressão sintomática. Quando se diz “he is a man with a past”, “ele é um homem com um passado”, subentende-se logo que é um passado especial e problemático, um passado que (como disse indelevelmente William Faulkner) até hoje não passou. 

Já vimos isto no horário nobre, não é mesmo? 

É o filantropo de cabelos brancos que de repente alguém reconhece como um traficante de escravos quando tinha cabelos pretos. 

É a dama de sociedade que numa festa é reconhecida pelo frequentador de um bordel. 

É o morador obscuro de uma pensão cuja foto aparece nos postes da rua num cartaz de “Procura-se”.

Todo mundo tem um passado que é como um fogo de monturo: parece extinto mas continua a fumegar lá dentro, esperando o momento certo de fumegar cá fora. Nas telenovelas ou nos romances surgem a todo instante homens incorruptíveis ou esposas de honestidade a toda prova que, não obstante, estremecem de maneira inexplicável ao escutar o nome de uma cidade, ou à simples menção de um episódio rumoroso ocorrido no passado. Por que esse susto? O que têm eles a esconder?

O romance policial, que tanto deve ao folhetim, vive em grande parte deste recurso dramatúrgico básico, o de que todo indivíduo consiste em camadas de tempo superpostas, de tal modo que mesmo por baixo do mais imaculado dos presentes pode estar se abrigando um passado infestado de cupins ou cânceres. 

Ninguém é perfeito, e ainda menos aqueles que parecem ansiar por uma perfeição pública, por uma reputação inatacável. 

Cedo ou tarde o beneficente milionário é assassinado em sua biblioteca, e descobrimos que quem lhe cravou a espátula nas costas foi o homem cuja vida ele arruinou na Tasmânia ou em Bornéu. 

Cedo ou tarde o vagabundo ou mendigo encontrado morto nos arredores da mansão é identificado como um reles chantagista que vivia a extorquir a família inteira, sob a ameaça de revelar as atividades da matriarca durante a ocupação nazista em Paris. 

Todo mundo tem um passado que preferiria que não viesse à tona, e muitos são capazes de chegar ao crime para que isto não aconteça. No folhetim ocorre às vezes que o vilão mais repugnante acabe se revelando um homem de princípios nobres, que procedia daquela forma por estar preso a um juramento ou um compromisso. Ocorre mais frequentemente, porém, que um indivíduo impoluto se revele vilão. O passado mais condena do que absolve.






terça-feira, 28 de setembro de 2010

2358) Inventores de palavras (28.9.2010)




Guimarães Rosa, compulsivo criador de neologismos, comenta no segundo prefácio de Tutaméia (são quatro ao todo!), intitulado “Hipotrélico”, a nobre arte de inventar palavras. 

Dá exemplos ilustres: Cícero inventou “qualidade”, Comte “altruísmo”, Stendhal “egotismo” (ou “egoísmo”), Guyau “amoral”, e por aí vai. 

Na vereda aberta pelo mestre, tenho anotado também inventores e invenções como Oliver Wendell Holmes (“anestesia”), Santos Dumont (“aeroporto”), Sir Francis Galton (“eugenia”), Goethe (“morfologia”), Thomas Huxley (“agnóstico”, “biogênese”), John W. Campbell (“hiperespaço”), William Gibson (“ciberespaço”), Montaigne (“ensaio”, no sentido literário), Gelett Burgess (“blurb”, aqueles textozinhos de propaganda, bem chamativos, que surgem nas capas e contracapas dos livros).

Dito assim até parece que é função dos escritores, e somente deles, a criação de palavras novas. Ilusão trêda! Os exemplos acima são em sua maioria de cientistas ou filósofos que precisam de um termo novo para batizar uma atividade (mesmo que apenas mental) nova. Surgem numa esfera superior do raciocínio e do discurso. Mas não são de jeito nenhum o único laboratório em que palavras novas são forjadas ou são renascidas por desvio de contexto. 

E o próprio Rosa (visitem Tutaméia, tem mais coisas do que no Louvre) dá numerosos exemplos de como as palavras são geradas por gente comum, gente do povo, inclusive citando termos divertidos criados pelos doidos de quem ele cuidou em Barbacena, nos seus tempos médicos. 

E compare-se esse extenso levantamento com o famoso parágrafo de “São Marcos”, em Sagarana onde ele fala que “as palavras têm canto e plumagem”, e dá uma Golconda de exemplos.

Quem inventa as palavras, então? Os dicionaristas? Os filósofos? Os doidos? Direi eu que algumas pessoas nascem com o dom de inventar palavras plausíveis (atentem para esta importante distinção). 

Eu posso inventar a palavra “ductopesgante” para descrever a sensação de pegar um pedaço de fita durex enrolado sobre si próprio; mas quem me garante que essa palavra vai grudar? Provavelmente não, porque foi feita aleatoriamente, no teclado, ao invés de seguir as maneiras formativas intuitivas do idioma. 

Quando um camelô diz que um filme em 3D é em trimensão, quando um sindicalista diz que uma lei é imexível, quando um futebolista propõe uma solucionática, quando um poeta diz que está expondo coisas num monstruário, todos estão instintivamente lançando mão da alquimia interna da língua brasileira, e é por isso que reconhecemos essas palavras novas como palavras legítimas, e algumas delas se impõem.

Há escritores e eruditos que não conseguem inventar uma palavra, por mais que tentem, e há inventores de palavras que são meros lavradores, radialistas, estudantes, comerciantes, taxistas, garçons, seja lá o que for. 

Não tem nada a ver com erudição ou literatura. É uma arte em si, e graças a ela nossa Língua Geral cresce e se aperfeiçoa.





segunda-feira, 27 de setembro de 2010

2357) A situação e o desfecho (26.9.2010)


("Meu caro Watson, talvez fosse melhor a gente esperar o inspetor Lestrade")

O desenhista Gahan Wilson é um dos mestres do cartum fantástico. Este gênero talvez não esteja consignado nos compêndios, mas existe e prolifera nas revistas e jornais, alicerçado na obra de artistas como Edward Gorey, Charles Adams (criador da “Família Adams”), e muitos outros. 

Wilson ficou famoso por seu traço que alterna linhas de simplicidade aerodinâmica com áreas do desenho festivamente coberta de detalhes (muitas vezes horripilantes e hilários). Publicou em revistas de grande circulação como Collier’s, The New Yorker, Playboy e outras, mas foi através das páginas do The Magazine of Fantasy and Science Fiction que o conheci (bem como na edição brasileira dessa mesma revista, e da saudosa Galáxia 2000). 

O universo temático de Wilson é instantaneamente familiar a quem aprecia a obra de Ray Bradbury, Tim Burton, Roger Corman, Robert Bloch, Roald Dahl.


Wilson afirma (em http://graphicnyc.blogspot.com/2009/09/creepy-funny-absurdist-world-of.html): 

“O que é importante é escolher um tópico e apegar-se a ele. Digamos, duas pessoas numa mesa de restaurante. Não abandone isto para pensar noutra cena, porque se o fizer você vai ficar andando e não chega a lugar nenhum. Você tem que manter a decisão de achar algo engraçado naquele restaurante. E acaba achando”.


Numa entrevista à Locus em março de 1999, Wilson fez um comentário interessante sobre a arte do cartum (não necessariamente do cartum fantástico). Disse ele: 

“Um cartum é uma forma maravilhosamente complexa de arte visual e arte literária. É o único meio de expressão em que as duas coisas estão inteiramente entrelaçadas. Num cartum com legenda, um cartum realmente bem feito, se você remover a legenda o desenho não faz mais sentido, e se você remover o desenho a legenda não faz mais sentido. Eles são interdependentes. Mas acima de tudo um cartum é algo literário. Se ele é rico de significado e bem feito, o leitor pode imaginar o que vai acontecer em seguida ou como foi que aquela situação veio a acontecer. Ele é um momento dentro de uma história”.


Um cartum de Wilson mostra uma loja de animais empalhados, o cliente junto ao balcão onde há dois homens. Um deles aponta para o outro e apresenta: “Meu falecido sócio”. Só então a gente percebe que o outro está numa posição excessivamente comportada, mãos cruzadas sobre o balcão, olhar fixo. 

Se víssemos apenas a imagem talvez achássemos que ele estava distraído, indiferente à conversa. Por outro lado, a legenda sozinha não diz muita coisa. 

É um pouco o contrário do que Hitchcock preconizava para o uso do diálogo. O diálogo deveria ser meio irrelevante em relação à cena, para que essa própria irrelevância destacasse o que realmente importa, ou seja, o que estamos vendo. São receitas diferentes, mas importantes. Wilson: O diálogo deve ser complemento. Hitchcock: O diálogo deve ser contraste. O que não pode ser é redundância.








sábado, 25 de setembro de 2010

2356) O Ulisses galês (25.9.2010)




Ao listar os equivalentes ao Ulisses de James Joyce em diferentes países, o escritor Joshua Cohen usa de vez em quando o que poderíamos chamar de licença poética. Por exemplo: quando considera que o Ulisses do País de Gales é a peça radiofônica Under Milk Wood escrita por Dylan Thomas em 1954. 

Afinal, se falamos no Ulisses estamos falando no gênero romance e no livro que redefiniu (ou, segundo alguns, avariou para sempre) as regras do gênero. O livro de Joyce expandiu as possibilidades do romance como gênero canibalizante de todos os outros: prosa literária, ensaio, poesia, dramaturgia, o escambau. 

Assim Cohen justifica sua escolha: 

“É também, além do Ulisses galês, o Ulisses dramatúrgico. Under Milk Wood era de início uma peça radiofônica e foi depois adaptada para o palco. Vozes misteriosas convidam a platéia a espreitar a vidas-em-sonho e os monólogos interiores dos habitantes de um vilarejo no País de Gales chamado Llareggub (“bugger all” ao contrário, algo como “que todos se danem”). Depois desta introdução, os habitantes despertam e a plateia, agora conhecendo quais são as motivações e os sonhos de todos eles, começa a acompanhar a história de suas vidas. Under Milk Wood é uma das tentativas mais abrangentes de dramatizar o universo mental de um mundo provinciano”. 

Como se vê, há duas conexões principais entre a peça de Dylan Thomas e o livro de Joyce. 

A primeira é essa utilização do monólogo interior, o qual aliás não foi inventado por Joyce, assim como a guitarra não foi inventada por Jimi Hendrix. Joyce psicografou os pensamentos erráticos que fluem nas bordas semiconscientes da mente. Imagino (nunca li nem escutei a peça) o que um poeta como Dylan Thomas (criador de imagens espantosas, quase surrealistas, e manejador de um vocabulário dos mais surpreendentes) pode fazer com os recursos do rádio e do teatro. 

A segunda conexão é o fato de que Joyce era irlandês e Thomas galês. Dentro da cultura da Grã-Bretanha, irlandeses e galeses são meio nordestinos, ou seja, pertencem a uma cultura menor dentro de uma maior, cuja língua compartilham, mas parecem se alternar o tempo todo entre ímpetos separatistas e estratégias de subversão mítica e verbal. 

A comparação feita por Cohen é surpreendente mas acaba rendendo uma boa linha de análise quando faz a equação entre a prosa de Joyce e a poesia de Thomas como eclosões do Modernismo em língua inglesa. Há mais coisas em comum entre os dois do que se imaginaria a princípio. 

Thomas deu ao seu volume semiautobiográfico o título de Portrait of the Artist as a Young Dog (1940), o que parece a todos uma referência ao A Portrait of the Artist as a Young Man (1917) de Joyce. Mas ele afirmou que a expressão “retrato do artista quando jovem” designa um subgênero da pintura e serve de título a numerosos quadros. 

Em todo caso, Dylan Thomas e James Joyce são como duas montanhas diferentes, feitas do mesmo basalto, que se contemplam à distância.








sexta-feira, 24 de setembro de 2010

2355) A palavra show (24.9.2010)




É uma silabazinha onipresente a partir do instante em que a gente aperta o botão do controle remoto. Assistir TV é escutar esse vocábulo que, como um Aleph, comprime no grão de si mesmo um universo de significação. 

Não se trata apenas do Fantástico, o Show da Vida mas de qualquer coisa que a TV esteja mostrando: é um show de calouros, um show de prêmios, tudo é um show de cobertura, um show de imagens, um show de transmissão... 

A TV é um show permanente, e neste sentido essa palavra pertence muito mais ao universo televisivo do que ao universo musical (“vou assistir um show de MPB”). O que chamamos de “show business” não se refere propriamente à música, embora instintivamente associemos estas duas coisas. Refere-se à televisão, a Máquina Mostradora por excelência.

“To show” significa “mostrar”, e é isso que a TV faz melhor do que ninguém. A TV não analisa, não interpreta, não questiona, nem mesmo quanto tenta fazer isso, ou quando parece estar conseguindo. A função orgânica da TV é mostrar. 

Ela mostra uma coisa, depois mostra outra coisa, depois mostra outra coisa, depois mostra outra coisa, depois mostra outra coisa, depois mostra outra coisa, e assim por diante, ao infinito. Foi criada para isto, e pense num produto que correspondeu à intenção! 

Mostra qualquer coisa, e, como as chamadas e os plimplins da Globo nos lembram o tempo inteiro, mostra acima de tudo a si mesma.

A expressão inglesa “to show off” significa “exibir-se, pavonear-se”, ou, mais paraibanamente, “se amostrar”. Dizemos que “o time do Santos ganhou a partida e deu um show”; isto não quer dizer apenas que jogou bem, mas que fez a costumeira exibição de firulas e pedaladas. 

O sujeito que se amostra está tentando ser-e-parecer mais do que é, está exagerando a si mesmo, está fingindo uma imagem um passo além da realidade; lamentavelmente, todo show tem um pouco disto. É da natureza do espetáculo de massas parecer que está mostrando algo quando na verdade se está mostrando uma versão mais colorida, mais ruidosa, mais luminosa e mais rica daquele algo. 

Em inglês, a palavra “show” no sentido de “exibição, espetáculo” data de 1561; no sentido de “ostentação exibicionista”, de 1713 (http://www.etymonline.com/index.php?term=show).

Ariano Suassuna, notoriamente ranzinza para com tudo que tenha cheiro de Bom Ar norte-americano, costuma chamar as apresentações musicais de “espetáculos”, e justifica: “Na minha terra, xô é uma palavra que se usa para espantar galinha”. 

Muita gente nem chama de “shows” aqueles espetáculos discretos, tipo voz-e-violão, de artistas como Elomar ou João Gilberto. Chama-os de concertos ou recitais, ou coisa equivalente. Porque é da essência do “show” musical o exibicionismo, as plumas e paetês, os naipes de sopros, as bailarinas, a fumaça de gelo seco... 

Uma tradução extremamente liberal da expressão “show business” nos daria “mostrar serviço”, e, no frigir dos ovos, é disso mesmo que se trata.





quinta-feira, 23 de setembro de 2010

2354) “Contos Obscuros de Poe” (23.9.2010)


A imprensa já divulgou, mas se eu registrar aqui talvez acabe atingindo uma meia dúzia que lê a mim e não lê a imprensa. Hoje à noite estarei lançando em João Pessoa meu livro mais recente, a coletânea Contos Obscuros de Edgar Allan Poe, publicado pela editora Casa da Palavra, do Rio de Janeiro. É o quarto volume de uma série de antologias do fantástico, que já inclui Páginas de Sombra: Contos Fantásticos Brasileiros (2003), Contos Fantásticos no Labirinto de Borges (2005), Freud e o Estranho: Contos Fantásticos do Inconsciente (2007). O lançamento terá lugar no Centro Cultura Zarinha, na Avenida Nego, a partir das 19 horas, com uma palestra, e depois sessão de autógrafos. (Os leitores de Campina não pensem que serão desprestigiados – estou organizando o lançamento daí, que deverá acontecer no mês que vem).

A intenção deste livro é chamar a atenção para a obra sempre atual de Edgar Allan Poe, que é uma espécie de Augusto dos Anjos norte-americano, com a diferença de que tornou-se mais famoso como contista, não como poeta. Assim como Augusto, Poe teve uma vida cheia de problemas, entre eles uma saúde frágil, um temperamento neurastênico, e uma penúria crônica. Ambos morreram relativamente moços: Augusto com 30 anos, Poe com 40. E viveram, cada um, num contexto literário regionalista, que não compreendia aquela sua fixação com o Universo, as galáxias, a evolução futura da Humanidade.

Talvez o traço mais distintivo de Poe seja sua fusão entre a racionalidade analítica e a alucinação obsessiva. Muitos de seus contos são narrados por indivíduos desequilibrados que se auto-analisam sem parar, e isto era decerto um traço do próprio autor. Poe ficou órfão desde a infância (era filhos de um casal de atores ambulantes) e foi adotado por um comerciante rico, que o criou como um jovem aristocrata sulista (algo equivalente a ser o filho de um fazendeiro nordestino rico). Dos 6 aos 11 anos de idade ele estudou na Inglaterra, o que influenciou não apenas seus modos como a sua literatura. Chegando à idade adulta brigou com o pai adotivo, foi embora de casa e passou a viver na pindaíba, pedindo dinheiro emprestado, conseguindo empregos como jornalista e perdendo-os logo depois, devido ao seu temperamento desabrido e a sua arrogância intelectual. Poe era um desses sujeitos inteligentes que têm pouca paciência para com quem é menos inteligente do que eles.

Sua personalidade peculiar identificou-se com o “conto de Blackwood”, gênero literário popularizado na época pelo famoso Blackwood Magazine, que consistia num pequeno ensaio introdutório explicando um fato espantoso da natureza ou da ciência, seguido de um episódio fictício com aparência de relato verdadeiro. Usando esta fórmula da época, Poe criou as bases do conto de terror moderno, do conto analítico-detetivesco, e da ficção científica. Inventou sozinho, no começo do século 19, a literatura do século 20 que se prolongou até o século 21.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

2353) A arte da definição (22.9.2010)



Sempre que falo em ficção científica, alguém me pede uma definição do gênero, e eu respondo que há uma fartura delas, centenas e centenas à escolha – e todas me parecem plausíveis. Nos meus tempos de movimento cineclubista, principalmente quando atrelado ao movimento estudantil, havia uma fase inicial da discussão que era chamada de “definição de conceitos”. O que é cinema? O que é mercado cinematográfico? O que é arte? O que é cultura? O que é povo? O que é povo brasileiro? O que é cinema brasileiro? E seguia nesse caminho. Em geral, as definições de conceitos levavam tanto tempo que o debate propriamente dito não começava nunca.

Responder essas perguntas não é tão fácil quanto parece. O que é cinema brasileiro? Ora, pensará alguém, são os filmes feitos no Brasil. Mas um filme feito no Brasil por uma equipe argentina e com dinheiro argentino é brasileiro? E um filme feito no Chile, com tema chileno, por uma equipe brasileira e com dinheiro brasileiro? Uma co-produção Brasil/EUA pode ser chamada de “filme brasileiro”? Se um filho de franceses roda em São Paulo uma adaptação de uma peça de Sartre ambientada na França, isso é cinema brasileiro? E assim por diante.

Uma definição é uma pequena utopia mental: o sonho de uma chave que abre todas as portas. Uma frase que descreve com exatidão centenas, milhares de exemplos. Suficientemente abstrata para poder abranger as características gerais de todos eles, e ao mesmo tempo suficientemente específica para poder dar conta do perfil único e peculiar de cada um. Definições precisas são um instrumento útil nas ciências, mas em se tratando de arte ou literatura é outra história. Como observou Todorov em sua análise da literatura fantástica, “a evolução segue aqui um ritmo completamente diferente: toda obra modifica o conjunto dos possíveis, cada novo exemplo muda a espécie”.

Uma definição pode ser definida como uma lista de características que incluem um conjunto de objetos numa categoria abstrata. Essas características devem ser necessárias, ou seja, um objeto só pertence à categoria se apresentar todas elas. Ela deve se situar a meio caminho entre dois perigos: o da definição excessivamente vaga, que acaba incluindo objetos que não pertencem à categoria, e o da definição demasiado restritiva, que acaba deixando de fora objetos que pertencem a ela.

Em literatura, uma definição nunca é conclusiva, porque toda obra literária é heterogênea. Se cada obra fosse uma coisa só, como as formas geométricas, seria fácil criar uma definição que cobrisse todos os exemplos de um gênero e não incluísse nenhum que aparenta pertencer a outro. Mas a existência de, digamos, O Homem Demolido, um romance policial ambientado num futuro em que existem telepatas, anula essa possibilidade. Qualquer definição de romance policial ou de FC que o inclua estará incluindo uma obra de, num certo aspecto, é “um estranho no ninho”.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

2352) Obscuridade (21.9.2010)




Os artistas sonham com a fama, em parte, por uma questão banal de carência afetiva (querem ser elogiados, aplaudidos, paparicados) e em parte porque acreditam que ela lhes proporciona onipotência, superpoderes. Como se dissessem: “De agora em diante, vou fazer somente o que eu quero, e do jeito que eu quero”. 

Lamento informar que, daqui de onde vejo os famosos, não é bem assim. A fama multiplica as oportunidades, mas essa própria multiplicação subdivide o tempo e a energia do famoso. 

Uma vez vi uma entrevista da empresária de Caetano Veloso explicando a alguém que teve um pedido recusado: “Caetano recebe vinte pedidos por dia para shows ou participações em eventos. Não pode aceitar todos”. 

Numa entrevista à revista Wired, George Lucas explicou por que não costuma surfar na Internet: “Meu trabalho exige que eu me reúna com grupos que somam cerca de 250 pessoas por dia, todos os dias, e quando tenho algum tempo livre eu o dedico a minha família”.

Quando o sujeito fica famoso começa a ser chamado para coisas que sempre teve vontade de fazer, mas também para centenas de coisas que não lhe interessam nem um pouco, e que querem apenas contar com um famoso a mais em sua galeria de fotos e em sua “área VIP”. 

Essa industrialização da fama para qualquer um e a qualquer preço é uma das forças mais massacrantes que a estupidez humana botou em movimento através da imprensa. Para os carentes que citei nas primeiras linhas, é o Paraíso. São paparicados porque são famosos, e são famosos porque são paparicados. Para um sujeito que quer continuar trabalhando a sério, a fama traz mais atrapalhos do que soluções.

Poucas leituras serão tão depressivas quanto as cartas de Robert Heinlein sobre o assédio dos fãs, em seu volume póstumo de correspondência, Grumbles from the Grave. No auge da fama, Heinlein não escrevia mais literatura, porque tinha de viajar o tempo inteiro para dar palestras, participar de convenções, etc., e o tempo que podia dedicar à escrita era para responder dezenas de cartas de leitores todo dia. Para não falar nas centenas de visitantes implorando uma ou duas horas de papo. 

Aos 74 anos, doente, cortou os laços com o mundo exterior, e em poucos anos escreveu Friday (1982), Job (1984), The Cat Who Walks Through Walls (1985) e To Sail Beyond the Sunset (1987). Talvez não sejam seus melhores livros, mas, dane-se, são os livros que ele queria escrever e ninguém deixava.

Virginia Woolf, autora do célebre Um quarto só para si, disse: 

“Enquanto a fama bloqueia e constringe, a obscuridade envolve uma pessoa como se fosse uma névoa; a obscuridade é escura, ampla, e livre; a obscuridade permite que a mente trace seu caminho sem encontrar obstáculos. Sobre o indivíduo obscuro pousa a impregnação suave das trevas. Ninguém sabe onde ele vai nem de onde está vindo. Ele pode ir em busca da verdade e pode proclamá-la; ele é o único que é de fato livre; o único que é verdadeiro, o único que experimenta a paz”.










domingo, 19 de setembro de 2010

2351) Página aleatória (19.9.2010)


Suponhamos que Diane Rafelstein era uma jornalista de origem judia nos EUA. Tinha origem pobre; seu pai foi um imigrante que após anos de trabalho duro na Austrália, em New South Wales, resolveu emigrar para a América. Diane, nascida em 1928, cresceu num ambiente sombrio, pois a Grande Depressão atingiu o país logo após a chegada da família. Conseguiu emprego como telefonista num jornal, e sua inteligência e habilidade com as palavras logo a levaram a uma mesa na redação, de onde não mais saiu, embora mudasse de cidade e de jornal várias vezes pelo resto da vida, até se estabelecer na Louisiana.

Diane amava as revistas de “pulp fiction”, que conheceu na infância, e que lhe despertaram um gosto pelo insólito. Quando era redatora-chefe do “Clarion”, de Nova Orleans, uma série de notícias anódinas atraíram sua atenção. Boletins informativos de sociedades científicas locais estavam registrando fenômenos invulgares que ocorriam nos pântanos e “bayous” daquele região, sempre em época de lua nova. Ao que parece, nesse período do mês havia um aumento do número de incidentes com salamandras, envolvendo crianças feridas de algum modo, donas-de-casa que se queixavam de infestação de répteis, etc. O fato começou a chamar a atenção, e certos evangélicos fervorosos, com o Novo Testamento em punho, alertavam o mundo para a aproximação do Apocalipse. Emissões de rádio e de TV tocavam no assunto a todo instante. As bancas de revistas exibiam, ao lado do novo exemplar da “Weird Tales”, manchetes sobre algum novo achado de répteis em locais improváveis.

Diane encarregou Bob Hassler, um jovem repórter, de trazer-lhe uma matéria a respeito. Sentia com angústia que algo estava para acontecer, mas achava que estava imaginando coisas; talvez uma investigação feita por Bob, um rapaz do Novo México, sensato e pouco imaginativo, pudesse manter uma neutralidade que ela sabia não possuir. Uma noite, Bob ligou para sua casa e afirmou saber do que se tratava. Tinha a voz trêmula, e mencionou algumas vezes “O Anel dos Nibelungos”, a ópera de Wagner. Diane não entendeu do que se tratava. “O crepúsculo dos deuses”, balbuciou Bob, numa voz que ela custou a reconhecer. Ele parecia estar falando consigo mesmo, e insistia em falar num “filão rastejante da medula viva” que se aproximava do “mundo superior”. Diane achou que o rapaz estava bêbado e estressado; sentiu-se culpada, avisou que estava indo para lá e pegou um táxi. Bob Hassler morava numa pensão no Bairro Francês. Ela bateu à porta, subiu ao andar de cima, tocou. Ele abriu a porta com o rosto em desordem, barba por fazer, cabelos revoltos. Mandou-a entrar, fechou a porta e apagou a luz. Parada no meio da sala, Diane agradeceu aos céus por não estar vendo o que produzia aquele som ciciante de milhares de patas macias emergindo das frestas, das fendas, dos ralos, dos esgotos, das torneiras, os milhares de corpos triunfantes que se desprendiam do filão da medula viva.

sábado, 18 de setembro de 2010

2350) A estética do Mas Não É Possível (18.9.2010)


(Lou Brooks)

No romance folhetim ou na novela de televisão esta exclamação surge de maneira recorrente. Ao ver ou ouvir algo, ao ler uma jotícia de jornal ou abrir uma carta, o personagem exclama estupefato: “Mas não é possível!”. Algo surpreendente acaba de lhe suceder, algo que ele jamais imaginou que sucedesse, e agora virou um fato concreto, ali, diante dos seus olhos. O folhetim tem baixa imunidade para com o vírus da surpresa, do inacreditável, do imprevisto. Todos sabemos que em toda telenovela existe o “núcleo rico” (tipicamente uma família dona de uma grande empresa e cheia de ramificações, muitos filhos, cônjuges, ex-cônjuges, netos, etc.), o “núcleo pobre” (empregados e suas famílias; vizinhos; amigos suburbanos), o “núcleo jovem” (tem que ter uma turma de adolescentes, para atrair essa faixa da audiência), às vezes um “núcleo rural” (quando há fazendas envolvidas), etc. O que é normal num desses universos é às vezes impossível em outros. E haja gente de olhos arregalados e queixo caído.

Quem diz muitas cabeças diz muitas sentenças, porque todos nós vivemos em mundinhos particulares de crenças, opiniões e paradigmas. E a vida nos obriga a viver esbarrando em pessoas de crenças e paradigmas totalmente diversos. Mundos em colisão, como dizia Velikovsky, o apocalíptico. Quem está se abalroando não são planetas, são estilos de vida.

“Mas não é possível!”, exclama a advogada chique, ao ver a filha adolescente trazer para dentro de casa um namorado que é a cara de Neymar do Santos. “Mas não é possível!” exclama o torneiro mecânico ao ver no Jornal Nacional a notícia de que a indústria onde trabalha foi vendida para os chineses e vai demitir 2 mil trabalhadores. “Mas não é possível!” reage com pasmo o aposentado quando o gerente do Banco lhe informa que alguém usou seu cartão e limpou suas economias. Para todos esses personagens, o mundo se rasgou numa costura que jamais será refeita. O equilíbrio do Universo sofreu um certo abalo, e talvez nunca mais retorne.

Achamos que algo não é possível, em geral, porque avaliamos mal o caráter de outras pessoas, não calculamos do que ela são capazes. Folhetins e telenovelas estão cheias de lobos em pele de cordeiro, de heróis que se transformam em vilões ou vice-versa, de personagens insípidos que num momento de crise revelam recursos insuspeitados. Um velho preceito dos roteiristas de cinema ensina que um personagem deve ser suficientemente complexo para poder nos surpreender, mas suficientemente coerente para que essa surpresa, um segundo depois, seja aceita pelo público. A surpresa não pode ser gratuita, não pode ser extraída do nada. A reviravolta, quando acontece, já deve estar plantada desde antes, para que o leitor possa voltar atrás, reler certos detalhes, como tantas vezes ocorre no romance policial, e reconhecer: “É, tem razão, havia algumas pistas. Parecia impossível, mas estava ali, o tempo todo”.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

2349) O Ulisses turco (17.9.2010)



Considerado pelo escritor Joshua Cohen como o equivalente turco ao romance de James Joyce,
Huzur (1949) de Ahmet Hamdi Tanpinar, foi traduzido em inglês como “A Mind at Peace”. É, como o Ulisses, uma história que transcorre ao longo de 24 horas, recheada de flash-backs que a expandem até cerca de 400 páginas. Diz Cohen: 

“O grande romance de Tanpinar também se desenrola em 24 horas, mas em Istambul às vésperas da II Guerra Mundial. A Turquia está dividida entre o Oriente e o Ocidente, assim como Mumtaz, um órfão que planeja ser autor de romances históricos, está dividido entre uma tradição decadente e o seu amor por uma mulher mais velha e divorciada, Nuran, cujos defeitos e seduções são completamente do mundo moderno”. 

O livro é dividido em quatro partes, intituladas a partir de personagens. Na primeira, “Ihsan”, o menino Mumtaz fica órfão e é adotado pelo primo mais velho Ihsan, que o envia para estudar na França e se encarrega de sua educação humanística e literária. Na parte II, ele conhece Nuran e se apaixona por ela; os dois conversam extensamente sobre a modernização da Turquia e a necessidade de aceitá-la sem perder o vínculo com sua cultura tradicional. A parte III tem o nome de Suad, um antigo namorado de Nuran que reaparece em sua vida, gerando uma tensão sobre Mumtaz e fazendo-o reavaliar sua própria vida. A parte IV tem o nome de Mumtaz e corresponde, mais ou menos, a um rito de passagem para a maturidade, no momento trágico em que as tropas nazistas invadem a Polônia, deflagrando a guerra. 

Numa resenha no saite do Los Angeles Times (http://tinyurl.com/bt3cay), Richard Eder observa que a tradução inglesa é cheia de excentricidades e dá a impressão de um inglês falado com sotaque, mas ao mesmo tempo observa que isto “tem a qualidade arrebatadora de um tal sotaque, comunicando ao leitor a pulsação de um mundo que lhe é estranho”, e pergunta, com espírito: “Será que recordaríamos Marleme Dietrich se ela falasse com sotaque britânico?”. 

A Literary Fiction Review (http://tinyurl.com/25pmzw6) destaca a dualidade de Istambul, metade na Ásia, metade na Europa, e os percursos incessantes de Mumtaz e Nuran através do Bósforo. E cita um trecho do romance: 

“É somente para a Humanidade que o Tempo, monolítico e absoluto, se divide em dois; e porque o Tempo, essa fosca lanterna, essa luz fuliginosa, luta para continuar a arder dentro de nós, porque ele introduz um cálculo tão complexo no seio das coisas mais simples, porque nós medimos a sua passagem pelas nossas sombras projetadas no chão, ele separa a vida e a morte, e, como o pêndulo de um relógio, nossa consciência oscila entre dois polos criados pela ela mesma. A humanidade, prisioneira do tempo, desespera-se tentando escapar dele. Ao invés de se entregar ao tempo, ao invés de fluir ao longo dele, com todas as outras coisas, nessa corrente imensa como um continente, a humanidade tentar enxergar o Tempo pelo lado de fora”.







2348) “Pesquisas sobre a sexualidade” (16.9.2010)



Adolescentes se reúnem num terraço, numa noite de sábado, tomando cerveja. Alguém propõe: “Vamos jogar o Jogo da Verdade!”. Arrumam-me em círculo e sorteiam um deles, que jura responder as perguntas dos outros dizendo somente a verdade. O mais interessante é que nessas brincadeiras ninguém pergunta se ele colou na prova, ou se já furtou dinheiro dos pais, ou se já fumou maconha. Perguntam sobre sexo. “Você já fez sexo oral?...” E antes mesmo da resposta todos riem: kkkkkkkkk...

Não sabem, mas estão praticando um dos muitos jogos que o grupo Surrealista praticou em Paris na década de 1920, sob a batuta de gênios da poesia como André Breton e Paul Éluard. Os Surrealistas não sorteavam os respondedores, mas promoviam reuniões em que faziam perguntas, sobre as respectivas vidas sexuais, que tinham de ser respondidas por todos com franqueza absoluta. Não era preciso jurar. A ética surrealista, a paixão surrealista, o fulgor surrealista que os iluminava fazia com que essa franqueza não fosse um problema, e sim uma forma de êxtase, de exaltação. Outros tempos.

Doze dessas reuniões (entre janeiro de 1928 e agosto de 1932) foram registradas por escrito. Duas delas foram publicadas na revista oficial do movimento, La Révolution Surrealiste, sob o título geral de “Recherches sur la sexualité”. Anos depois, as anotações manuscritas das doze sessões foram encontradas nos arquivos pessoais de André Breton e publicadas sob o mesmo título, com organização de José Pierre (Ed. Gallimard, 1990). A edição que li é uma tradução inglesa, sob o título Investigating Sex – Surrealist Discussions 1928-1932 (Verso, 1992). Entre os participantes estão Breton, Éluard, Max Ernst, George Sadoul, Man Ray, Antonin Artaud, Louis Aragon, Yves Tanguy, Jacques Prévert, Benjamin Péret, etc. Entre as mulheres (uma previsível minoria), Nusch Éluard, Jeannette Tanguy, Katia Thirion, Simone Vion e outras. A maioria deles participa apenas de poucas sessões; Breton é o único que está presente em todas.

Os Surrealistas discutem sexo e amor por todos os ângulos, falam de perversões, de fantasias, discutem a mecânica do orgasmo, a diferença entre o gozo do homem e o da mulher. Interrogam-se sobre os aspectos quantitativos das relações sexuais, discutem sonhos eróticos, questionam-se sobre sexo coletivo, homossexualismo, masturbação, infidelidade, íncubos e súcubos... O conceito de “Amor Louco” (“amour fou”), que tanto exploraram na poesia, no romance e no cinema, surge insistentemente. O conceito de amor surrealista era o sonho de encontrar, como disse Rimbaud, “a verdade num só corpo e numa só alma”. O amor era “um fato manifesto que nada fizemos para produzir e que, num dia específico e diante de um rosto específico, encarnou-se misteriosamente”. Ou, como disse Aragon: “O milagre: como pensar no que não é o milagre quando o milagre está em seu vestido noturno?”.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

2347) A Hora do Homem (15.9.2010)



No ensaio “The Hour of Man”, Henry Miller comenta trechos da um ensaio homônimo publicado em 1951 por seu amigo Walker Winslow, que, como ele próprio, se horrorizava com o grau de despersonalização, frieza e indiferença que a sociedade industrial consumista (“o Pesadelo com Ar Condicionado”) impõe às pessoas. 

A certa altura, diz Winslow: 

“Eu gostaria de ver o rádio e a TV serem desligados durante uma hora por semana, a revista e o jornal jogados no chão, o carro trancado na garagem, a mesa de churrasco dobrada, a garrafa de bebida arrolhada, os sedativos mantidos dentro das embalagens. Gostaria de ver tanto a produção quanto o consumo de coisas sendo suspensos durante uma hora. A política seria esquecida, fosse nacional ou internacional. 

Essa hora que proponho se chamaria A Hora do Homem. Durante essa hora, os homens se interrogariam, e aos seus vizinhos, sobre o propósito de sua presença na Terra, sobre o que é a vida, sobre o que um homem e uma mulher têm o direito de pedir à vida, bem como o que têm para oferecer em troca.” 

Miller endossa esse sonho quimérico do amigo, lembra que nos países islâmicos os fiéis são convocados para rezar em uníssono cinco vezes por dia. E ele diz: 

“Arrisco-me a dizer que se esse procedimento viesse a ser adotado, iríamos receber da boca das nossas crianças as observações e sugestões mais sagazes , mais práticas e mais fecundas”. 

O que me chamou a atenção no texto – e despertou uma associação de idéias imprevista – foi que ele me lembrou, por vias transversas, um detalhe de um livro de ficção científica de Clifford Simak, O Planeta de Shakespeare (1976). 

Nesse romance insólito e humanista, um astronauta se vê naufragado num planeta semideserto, onde descobre vestígios de um náufrago anterior, que tinha consigo livros de Shakespeare. Ele percorre o planeta, passa por várias aventuras, mas a mais estranha delas é uma espécie de visão psicodélica que o ataca de maneira imprevisível, aleatória. 

Em alguma hora do dia ou da noite, sem aviso prévio, ele sente sua mente sendo invadida por uma torrente avassaladora de emoções indizivelmente grandiosas, emoções que o transportam para um estado de êxtase e beatitude que ele não tem palavras para descrever. Quando aquilo passa (e às vezes dura minutos, às vezes horas inteiras), ele está exausto mas gratificado, porque se sentiu em contato com alguma força poderosa e benéfica, mesmo que inexplicável. 

Ele sente que aquele influxo de emoções é produzido à distância por algum ser que “varre” o planeta ao acaso como a luz de um farol varre o espaço, e quando por coincidência ele está no trajeto dessa “luz”, o fenômeno acontece. E o personagem chama aquilo A Hora de Deus. 

O mais interessante é que a Hora de Deus, de Simak, é uma bela alegoria poético-científica do que talvez sentíssemos se a modesta e possível Hora do Homem, de Miller e Winslow, fosse posta em prática. Mas sendo o mundo o que é, ambas me parecem igualmente impossíveis.





terça-feira, 14 de setembro de 2010

2346) Drummond: Lagoa (14.9.2010)



Este é um poema despretensioso e discreto do livro Alguma Poesia de Drummond, que está completando 80 anos de lançamento. Nunca lhe dei maior atenção, certamente porque o via ladeado por poemas de muito maior peso e ressonância, e isto reflete uma distorção no conceito estético de “livro de poemas”. Em tese, um poema devia ser uma obra de arte autônoma, podendo (e até devendo) ser lido à revelia de todos os demais poemas do autor. No melhor dos mundos, livros de poemas só existiriam quando esses poemas fossem seriais, fossem mutuamente necessários para existir e significar, como é o caso (com diferentes perfis) de livros como A Educação pela Pedra de João Cabral, Doze Noturnos da Holanda de Cecília Meireles, etc. Para que um poema fosse lido, respeitado e valorizado no que é, cada um devia ser publicado sozinho, num livro à parte. O que, é claro, é impraticável. (Era. O mundo está mudando. Eletronicamente, a gente pode publicar as coisas no formato que bem entender.)

“Lagoa” tem uma linguagenzinha tão beabá e direta que soa, no livro do poeta de 28 anos, como a voz de um menino amuado: “Eu não vi o mar. / Não sei se o mar é bonito. / Não sei se ele é bravo. / O mar não me importa”. Por que um poema sobre uma lagoa começa negando o mar? Talvez porque entre os mineiros exista uma inveja do mar do mesmo jeito que entre as mulheres, segundo Freud, existe uma inveja do pênis. Não ter um mar é, por alguma razão oceânica, amniótica e profunda, não ter algo essencial à vida, e cada um se compensa disto como pode (os bolivianos, por exemplo, têm lá seu Ministério da Marinha). O menino, casmurro por não ter um mar, dá-lhe as costas.

“Eu vi a lagoa. / A lagoa, sim. / A lagoa é grande / e calma também”. Que beleza essa frase-que-contém-tudo: “A lagoa, sim”. Pronto. O que vem depois é mera ilustração. “Na chuva de cores / da tarde que explode, / a lagoa brilha. / A lagoa se pinta / de todas as cores. / Eu não vi o mar. / Eu vi a lagoa...”

Que lagoa será essa? Alguma lagoa doméstica, por trás dum quintal de Itabira? A da Pampulha, ainda bravia e pré-Juscelino, pré-Niemeyer? Uma lagoa meramente mental? Drummond só se transferiu para o Rio de Janeiro em 1934, mas eu, por vício de contiguidade, sempre li este poema com os olhos da memória na Lagoa Rodrigo de Freitas, que fica a dois ou três quarteirões do mar, protegida por uma selva de arranha-céus ipanemenses. Poucas visões do “meu” Rio são tão belas quanto a que temos ao rodear de carro a Lagoa ao anoitecer, porque os prédios em volta dela acendem-se em luzes azuis, amarelas, violetas, verdes, laranjas, e essas luzes refletem-se no espelho descansado das águas. O roxo do céu, a luz das estrelas, a iluminação branquicenta dos postes de mercúrio e as formas dos morros mudam esse panorama de cem em cem metros. Natureza e civilização fazem uma urdidura de beleza e complexidade urbana. Mar? Quem precisa de mar? Eu sou mineiro.

domingo, 12 de setembro de 2010

2345) O futebol segundo Jairzinho (12.9.2010)



Minha convicção, até prova em contrário, é de que jornalismo se aprende na redação, natação na água e futebol no campo. Este último merece detalhamento. Campo não é um gramado impecável, onde um garoto calça chuteiras e ganha intimidade com uma bola de couro, jabulani ou não. Campo é o campinho, o campinho de terra ou de capim, ou mesmo uma rua calçada de pedras, onde garotos descalços jogam com qualquer coisa que possa ser imaginada como uma bola.

Numa entrevista recente ao Globo, Jairzinho, campeão do mundo em 1970, resume essa raiz popular do futebol de maneira irretocável: “O futebol moleque acabou, o futebol formado num ambiente livre, natural. Eu mesmo fui formado assim. Nas praias, Urca, Praia Vermelha, Praia do Leme; nos terrenos baldios, que ainda existiam; nas praças também. E na própria rua, numa época em que não havia congestionamento de carros. Comecei brincando com laranja, depois com bola de meia, depois com bola de borracha, toda essa evolução natural, entende? Hoje, para você encontrar um espaço é muito difícil. Não tem mais o campo natural, onde o garoto possa jogar sem cobrança. Se os garotos não forem para praia, vão para o futebol, o futsal e com isto perdem a naturalidade. Porque já tem um professor ali e a bola já é bem diferente. O importante é você começar a ter o contato (com a bola) com o pé descalço.”

O que faz o jogador brasileiro ser diferente? (Não só brasileiro, claro. O que acontece aqui pode acontecer em praticamente qualquer lugar do mundo. Mas aqui ocorre de maneira maciça e generalizada – ou pelo menos acontecia.) Primeira coisa: jogar na rua, aprender a correr em qualquer tipo de espaço, cercado pelos obstáculos mais imprevisíveis. Carros estacionados, carros em movimento, muros, árvores, postes, tocos de pau, buracos, pilhas de tijolos... Garotos jogam, há um século, em lugares assim, e é lá que aprendem a correr com ou sem a bola nos pés, a negacear, a fugir, a perseguir o atacante, a chutar, a defender, a passar, a cruzar. O senso de espaço é enriquecido de maneira espantosa.

Segundo: jogar sem cobrança, por vontade própria, diversão, espírito lúdico. Profissionalismo é importante, mas vem depois, e tem que vir sobre um alicerce prazeroso. Tudo que um garoto ou adulto faz por mero prazer ele fará incansavelmente, repetidamente, incessantemente, variadamente, concentradamente, dedicadamente.

Terceiro: o pé descalço e a bola de meia. Os músculos, o sistema motor e os reflexos se enriquecem ao serem testados de mil maneiras diferentes, preparando-se para as meras 100 ou 150 maneiras que lhes serão exigidas na vida adulta, na mordomia da grama, da chuteira e da bola de couro. Futebol profissional tem uma faixa de probabilidades mais estreita do que a de uma pelada de rua. Um garoto se torna PhD em futebol jogando com laranja chupada num campinho de terra, e a maestria assim adquirida será o alicerce para o profissional em que um dia se tornará.

sábado, 11 de setembro de 2010

2344) “A Eva Futura” (11.9.2010)



Como já referi aqui, o primeiro uso oficial da palavra “andróide” foi em 1863, numa patente em nome de J. S. Brown. O primeiro uso literário do termo, no entanto, surgiu numa obra peculiar em que parecem se cruzar variadas tendências da literatura e do pensamento de sua época: A Eva Futura (“L’Ève Future”, 1886), de Villiers de l’Isle-Adam, mais conhecido como o autor dos Contos Cruéis (1883). Villiers, filho de uma família nobre arruinada, fez amizade nos cafés parisienses com autores tipo Baudelaire, Mallarmé, Alexandre Dumas Filho, etc., e começou sua carreira publicando poemas e peças teatrais.

A Eva Futura (há uma tradução brasileira pela Edusp, 2001) foi um romance que Villiers tentou publicar por duas vezes entre 1880-81, em forma de folhetim de jornal (no Le Gaulois e no L’Étoile Française), sendo a publicação interrompida, possivelmente, por reclamações dos leitores. A publicação completa se deu em La Vie Moderne entre 1885-86, quando por fim saiu o livro. A esta altura Villiers já tinha publicado sua primeira coletânea de “contos cruéis”, já tinha aparecido como personagem no clássico decadentista À Rebours de J.-K. Huysmans, e publicava também Axel, sua peça simbolista que seria tempos depois analisada com brilhantismo por Edmund Wilson em O Castelo de Axel. Villiers viveu numa lamentável pindaíba a vida inteira. Era um desses indivíduos que ostentam título de nobreza, moram numa água-furtada tomando café requentado e escrevendo poemas requintados. A França está cheia de gênios assim (não é ironia), que levaram Edgar Allan Poe totalmente a sério.

O livro de Villiers é um sintoma da norte-americanização (no bom sentido) da literatura francesa, por ter como um dos seus principais personagens Thomas Alva Edison, o inventor. Villiers faz uma “Advertência ao Leitor”, na qual pede licença para usar como personagem um cientista ainda vivo, pelo fato de ele ter se tornado uma lenda em sua própria época; e o compara com o Doutor Fausto, pessoa real usada literariamente por Goethe.

No livro de Villiers, o termo francês usado é “andreïde”, e se refere à mulher artificial criada por Edison para Lord Ewald, um nobre que se decepcionou com a noiva. O andróide (ou melhor, “a ginóide”) de Edison é uma réplica perfeita da noiva de Lord Ewald, mas com uma mente “em branco” na qual este poderia fazer “upload” (o termo é meu, não do autor) das idéias, valores, referências culturais e vocabulário que bem entendesse. Uma utopia machista, mas (se a observarmos sem paixões ideológicas) um retrato da crise angustiada desses artistas do século 19. Afinal, os artistas dessa época (de qualquer época) queriam o mesmo que as mulheres dessa época (de qualquer época): alguém a quem amar e com quem conversar em pé de igualdade. Os universos mentais de homens e mulheres da Europa de 1880 eram muito mais distantes entre si do que são em 2010. Como esperar outro tipo de literatura? De fantasia, de desabafo?

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

2343) Os melhores artigos da imprensa (10.9.2010)



Pulando de link em link vim cair nesta página assinada por KK (Kevin Kelly), sob o nome de CoolTools (http://www.kk.org/cooltools/the-best-magazi.php), em que ele relaciona (com links diretos) os 100 melhores artigos jornalísticos publicados na imprensa (de língua inglesa). Seria interessante que alguém igualmente bem informado e bem assessorado (Kelly no final agradece as dicas de umas 50 pessoas) fizesse uma lista parecida com os melhores artigos da imprensa brasileira. Material não falta.

Isto tem a ver com uma crise que já abalou a imprensa com o surgimento da TV nos anos 1950, e agora de novo com o surgimento da Internet nos anos 1990. O que pode fazer a imprensa impressa (valha a redundância) para sobreviver? A resposta tem sido sempre algo tipo: ser mais profunda, mais extensa, preocupar-se menos com a informação e mais com a interpretação, caprichar mais no aspecto literário para sobreviver como texto estético mesmo depois de sua importância factual esmaecer um pouco. Os 100 artigos listados por Kelly são bons exemplos disso.

Quando vi a página, fiquei meio animado, achando que iria reencontrar velhos conhecidos, mas dos 100 só me lembro de ter lido quatro. Li o clássico ensaio de Susan Sontag “Notes on Camp”, publicado na Partisan Review em 1964 (li em livro, claro). Li (anos depois) a entrevista que Nat Hentoff fez com Bob Dylan para a Playboy em 1966. Li a matéria, na revista Wired (1995), em que Gary Wolf narra a luta quixotesca de Ted Nelson, o homem que inventou o hipertexto, para criar o projeto Xanadu, uma utopia internética que não deu certo. E li o texto de Neal Stephenson, também na Wired (1996) sobre a instalação dos cabos trans-oceânicos de fibra ótica, uma verdadeira odisséia tecnológica narrada pelos olhos de um autor de ficção científica.

Cada um destes valeu, linha por linha, o preço eventualmente pago. Mas lendo a lista completa vi referências a matérias que os coleguinhas jornalistas citam de vez em quando como exemplos do que se pode fazer juntando o melhor da literatura e do jornalismo. Por exemplo: a clássica reportagem de Gay Talese, “Frank Sinatra has a cold” (Esquire, 1966), em que Talese fez um retrato do cantor sem que este se dignasse a falar com ele (mais ou menos como Ruy Castro, que escreveu Chega de Saudade à revelia de João Gilberto). Tem os artigos clássicos de Hunter Thompson, “Fear and Loathing in Las Vegas” e “The Great Shark Hunt”, que li parcialmente, e por isso não conto, mas recomendo. Tem o artigo de Ron Rosenbaum sobre J. D. Salinger (“The Man in the Glass House”, 1997), que voltou a ser citado agora quando da morte do escritor. Tem o texto de Cameron Crowe que certamente inspirou seu filme Quase Famosos: “The Allman Brothers Story” (Rolling Stone, 1973). E muita coisa mais. Por que a gente não monta um saite com indicações (e links) para os melhores artigos brasileiros de revista e jornal? Que tem, tem.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

2342) “Os Cronolitos” (9.9.2010)




The Chronoliths (2001) é um romance de ficção científica do canadense Robert Charles Wilson, que tem uma premissa admirável. 

Numa certa madrugada de 2021, numa região rural da Tailândia, ouve-se uma explosão que parece a queda de um meteoro. Na manhã seguinte, polícia, exército e uma multidão de curiosos aflui para o local, e encontra ali, erguido magicamente da noite para o dia, um maciço obelisco com dezenas de metros de altura, no meio de uma tremenda devastação provocada pela onda de choque. 

Na base do monumento, feito de uma matéria desconhecida, lê-se uma inscrição, num misto de inglês e mandarim, celebrando a vitória de um tal de Kuin numa batalha que teve lugar em 2041 – vinte anos no futuro.

Este é apenas o primeiro dos cronolitos, que nos anos seguintes começam a aparecer por toda a Ásia e a se espalhar pelos continentes. Fica óbvio que num futuro próximo esse líder chinês adquiriu tamanho poder militar e científico que é capaz de enviar para o passado os monumentos celebrando suas conquistas. 

Hitler dizia que o III Reich se estenderia mil anos no futuro; Kuin vai mais além, estende seu império na direção do passado.

O romance de Wilson acompanha Scott Warden, um norte-americano cuja complicada vida pessoal vai sendo marcada (e seriamente avariada) pelo surgimento dos cronolitos e do culto fanático que surge em torno deles – porque (muita gente pensa) se um imperador é poderoso o bastante para fazer isso, é melhor aliar-se a ele desde o começo, e ajudá-lo a fundar seu império. 

Assim, dentro da costumeira lógica em “loop” das histórias de FC com paradoxos temporais, os monumentos à grandeza de Kuin ajudam a fazê-lo emergir do anonimato e, pouco a pouco, alastrar seu império pelos continentes até chegar, no final do livro, aos EUA. E ele se vale, principalmente, dos cultos e das milícias kuinistas formadas por gangs de jovens marginais, insatisfeitos e agressivos das grandes cidades, do tipo que se deixa fascinar por um líder violento.

The Chronoliths foi publicado em 2001, meses antes do ataque ao World Trade Center, criando um sutil paradoxo entre ficção e vida: o aparecimento de monumentos fantásticos e a destruição de monumentos reais. 

A aparente megalomania da imaginação de Wilson é bruscamente reduzida pela megalomania real dos atentados. O invisível e onipresente Kuin do romance acaba sendo refletido no onipresente e invisível Osama Bin Laden do mundo pós-2001; a ameaça chinesa se transforma em ameaça islâmica. 

Poucas vezes um romance de FC estabeleceu essa relação de simetria e sincronicidade com fatos do mundo real na época do seu lançamento. O livro de Wilson cresce ainda mais de importância quando vemos que ele não se centra nos cronolitos, mas na vida de Scott, seu casamento desfeito, sua filha problemática, sua relação com a mãe de um adolescente kuinista. 

As catástrofes coletivas vistas pela ótica das tragédias individuais que deixam no seu rastro.





quarta-feira, 8 de setembro de 2010

2341) O "Jornal do Brasil" (8.9.2010)



"E vejam meu azar: comprei um Jornal do Brasil, emprego tinha mais de mil... e eu não arranjei um só!" O drama não é meu, é do personagem cantado por Jackson do Pandeiro no clássico "Meu Enxoval", em que o "paraíba" desempregado, depois de não achar uma colocação, acaba dormindo em frente em Teatro Municipal, na Cinelândia, aconchegado pela imprensa carioca: "O meu travesseiro é um Diário da Noite, e o resto do corpo fica na Última Hora".

O humor de Almira & Gordurinha, autores da música, fala de uma época em que a imprensa impressa carioca tinha titãs da informação, da polêmica e da cultura. Diário da Noite e a Última Hora deixaram as bancas para repousar no silêncio das bibliotecas; agora foi a vez do Jornal do Brasil, que para muita gente continua sendo o símbolo de um jornal moderno e modernizador, na diagramação, no visual, no estilo, na abordagem, na prosa, no tratamento da cultura. Sem ele, teria sido muito diferente a história da música popular brasileira, do cinema brasileiro, da poesia, do teatro, dessa coisa toda enfim. Sem ele, aliás, não existiria sequer o Jornal Dobrabil de Glauco Mattoso.

Todo jornalista em atividade no Rio tem sua história com o JB; eu tenho a minha. Entrei lá em 1987 por obra e graça do escritor Sérgio Sant'Anna, que me indicou para substituí-lo numa página de comentários sobre TV, na Revista de Domingo, intitulada "Conversa ao Pé do Vídeo". Fiquei ali durante dois anos, fazendo duas colunas por mês (revezando-me com Ingo Ostrovsky). Meus editores eram Alfredo Ribeiro e Joaquim Ferreira dos Santos. Tempos pré-Internet, em que às vezes eu tinha de pegar um ônibus para levar as laudas datilografadas até o prédio do jornal. Meu último texto publicado ali foi uma entrevista que fiz com Ariano Suassuna, em 2007.

O JB encerrou sua edição de papel. Procurei um exemplar em vão, no derradeiro dia, mas tinha esgotado. Se o público viesse demonstrando tanto interesse assim, o jornal não teria acabado nunca. Mas, ao contrário do Diário da Noite e da Última Hora, o JB não morreu. Sublimou-se! Transcendeu-se! Virtualizou-se: deixou de gastar papel mas continua vivo, nos pixels luminosos e coloridos de uma edição on-line. E isto mostra as vantagens da Internet, amigos, que pode ajudar a extinguir os dinossauros de papel, mas também lhes proporciona um novo planeta, onde esses pesadíssimos e onerosos órgãos de imprensa veem-se metamorfoseados em criaturinhas mais ágeis, uma espécie de velociraptors céleres e dribladores. Morreu o JB? Não creio. Passou da página para a tela, o que não é muito diferente de passar da lauda datilografada para a página em off-set. Porque - e chegamos agora ao Q.E.D. desta conversa toda - jornalismo (como literatura) é texto. Os jornais dos brasis agora têm como sobreviver, sem precisar de papel e tinta, porque o texto, este sim, não morre nunca. O texto é uma alma imortal que a humanidade inventou para si própria.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

2340) Drummond: “Europa, França e Bahia” (7.9.2010)




(charge de J. Carlos em O Malho)

Minha primeira lembrança desta expressão foi no famoso poema de Ascenso Ferreira, “Oropa, França e Bahia”, do livro Xenhenhém (1951). 

Só depois de algum tempo percebi que ela já estava neste poema de Drummond em Alguma Poesia (1930), e bastou-me esfregar a lâmpada do Google para o Gênio emergir, de braços cruzados, e me informar que a frase já surgia no Macunaíma de Mário de Andrade, que é de 1927. Não pedi ao Gênio que buscasse mais longe; meu assunto se detém aqui.

O Modernismo brasileiro foi mais um de tantos movimentos (do Romantismo ao Tropicalismo, do Regionalismo ao Armorial) que tentou definir a brasilidade num país onde todos se sentiam estrangeiros e, ao mesmo tempo, diferentes de todos os estrangeiros que conheciam. 

Este drama de conceituar o que é ser brasileiro, claro, só ocorre às nossas elites, aos brasileiros que leem livros e discutem abstrações. O povo, mesmo, fala a sua Língua Geral, trabalha, brinca seu samba ou seu fandango, brasiliza 24 horas por dia, pratica o Brasil sem conhecê-lo de fora.

O poema de Drummond é uma contemplação irônica da Europa com que nossos “mazombos” sonham, felizes na sua ilusão de exílio, no seu consolo de serem elite no único lugar do mundo onde seriam elite: este continente exótico de gente escura e sem modos. 

Drummond faz caricaturas da França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Suíça, Rússia... Seus versos são um equivalente verbal às charges políticas de Ângelo Agostini, J. Carlos ou Raul Pederneiras, aos cartuns políticos de revistas como O Malho, Careta e Fon-Fon

A Europa ilustre aparece aqui distorcida e cômica, vista pelo olho desafiador do “humour” (Drummond já usou a palavra assim, indicando sua conotação britânica, distanciada, cheia de “understatement”). Uma coleção de clichês sarcásticos em que a velha Europa aparece despida da grandiosidade colonial, reduzida à condição de Império em crise.

Drummond é quase profético, neste poema pós-I Guerra Mundial, ao descrever a Alemanha como um lugar onde “homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça dos outros / dentro de alguns anos”, cabendo apenas a ressalva de que a II Guerra foi, claramente, uma continuação da primeira, após uma pausa para rearmamento. 

E demonstra uma simpatia de cineclubista-de-esquerda pelos “sujeitos com um brilho esquisito nos olhos (que) criam o filme bolchevista”, o que me lembra um soneto de Vinicius de Morais em homenagem a Eisenstein, talvez o único soneto da poesia brasileira cuja chave-de-ouro é em russo.

É um dos primeiros poemas em que Drummond define uma brasilidade às avessas: não descrevendo o Brasil, mas descrevendo o mundo lá fora e através disto criando, implicitamente, um olhar brasileiro, um modo brasileiro (irônico, deslizante) de encarar a Europa que nos criou e nunca deixou de nos fascinar. 

“Olhos brasileiros sonhando exotismos”: os exóticos são eles, o centro do mundo somos nós, mesmos que não saibamos quem somos.