quarta-feira, 20 de março de 2019

4448) Terra Plana ou Terra Oca (20.3.2019)





O presente texto tinha um nariz-de-cera maior do que o de Cyrano de Bergerac, e acabou virando um texto independente, que publiquei há pouco no blog: “Os Filhos do Barro”.

E chego ao xis da matéria: a idéia de que a Terra é plana.

Vou logo avisando que acho essa idéia tão absurda e tão interessante quanto a de que a Terra repousa sobre quatro elefantes estacionados sobre o casco de uma tartaruga gigantesca (“Discworld”). Quais as provas que tenho para achar que o mundo não é assim? Nenhuma. É pura fé, baseada numa quase unanimidade de opiniões em tudo que li desde que aprendi a ler.

Nem sempre foi desse jeito.

Um dos momentos de conceptual breakthrough (ver: http://www.sf-encyclopedia.com/entry/conceptual_breakthrough) da minha infância foi por volta dos sete anos. Recordo de abrir uma revista (podia ser O Cruzeiro) na casa dos meus pais, e ver uma imagem de página inteira de um planeta gigantesco ocupando todo o céu escuro, e por baixo dele um oceano estendendo-se para todos os lados, a perder de vista. Acho que perguntei o que era aquilo, e alguém me respondeu: “É o Oceano Atlântico”.

Acho que a pessoa esqueceu de me explicar que o planeta ali representado era (provavelmente) a Lua. Eu pensei que era a Terra. A Terra, então, era redonda, flutuava no “espaço sideral” (eu já conhecia este termo) e por baixo dela, infinitamente, se estendia esse Oceano Atlântico. Concebi então um Universo infinito onde os astros flutuavam no vácuo e por baixo deles, em todas as direções, existia esse oceano sem fim, esse cósmico mar.

Não durou muito esse meu surto. Logo depois me lembro de ter colecionado o álbum de figurinhas Maravilhas dos Espaços Siderais, e depois o Céu e Terra, onde as coisas ganharam uma versão mais plausível, a versão da Ciência.


E havia (para a minha geração) livros de divulgação científica ou histórica, como Maravilhas do Conhecimento Humano de Henry Thomas, E a Luz se Fez de Rudolf Thiel, Nós e a Natureza e A Magia dos Números de Paul Karlson, Biografia da Terra de George Gamow, O Livro da Natureza de Fritz Kahn, pegando pela ordem em que puxo a linha da memória.


Eram livros baratos, cheios de ilustrações, e com prosa variada e acessível. Ninguém falava em Terra Plana. Não lembro nem sequer de histórias de FC com Terra Plana. O que havia de interessante na época, e eu prefiro até hoje, é a hipótese da Terra Oca.  Talvez por ser mais barrocamente pseudocientífica.

(A hipótese da Terra Plana não é mais absurda ou infundada do que tantas outras suposições pseudo-científicas que circulam por aí há séculos. Ela simplesmente está sendo usada, hoje em dia, como um dos “gatilhos” para corroer a credibilidade da Ciência e substituir o conhecimento científico por um fundamentalismo qualquer. Só neste sentido, o sentido político, ela tem importância, uma importância negativa.)

A Terra Oca foi usada por Edgar Allan Poe em pelo menos um conto clássico: o “Manuscrito Encontrado Numa Garrafa”, história de um navio fantasmático que tudo indica estar se dirigindo para uma abertura geológica no Extremo Norte do globo, um abismo onde a água desce revoluteando como num Maelstrom onde é preciso penetrar.



Lembro de um romance da coleção “Jovens do Mundo Todo” chamado Plutonia, e que era uma expedição russa à Terra Oca. Havia uma descrição que na época me impressionou, dos caras que vão avançando numa abertura geológica, sólida, e eles chegam à borda, não da Terra, mas do chão que pisam, porque o nosso solo rochoso é como uma casca de fruta, sólida mas fina, e eles que vinham caminhando pela face externa da casca deram a volta na borda e agora estão caminhando de volta pela face interna da carapaça geológica do planeta.

O terceiro livro que deitou e rolou com esse tema foi The Hollow Earth (1990) de Rudy Rucker, que pega Edgar Poe como um dos protagonistas durante o livro quase todo, e fazendo sua turma de exploradores mergulhar até o abismo central do planeta. Há uma sucessão feérica de ambientes cosmológicos, e um dos náufragos nesse mergulho no espaçotempo chama-se Reynolds. (Nas suas últimas horas de vida Poe, delirante, gritou sem parar, em desespero, chamando um tal de Reynolds, que ainda não se sabe quem foi. Há várias hipóteses.)

A Terra Oca geralmente implica num sol central e imóvel, parcialmente ocultado com regularidade por algum fator natural ou artificial. É o interior de uma enorme esfera, e ali o personagem precisa se acostumar à noção de um horizonte que se afasta cada vez mais, até desaparecer subindo. Ele se “dobra” para dentro, sobre si mesmo, e some lá no alto. É o contrário dos horizontes secos daqui, cortados a foice.

Lembrei uns títulos ali em cima e agora me veio na cabeça outro clássico, Manias e Crendices em Nome da Ciência (“Fads and Fallacies in the Name of Science”), de Martin Gardner, que saiu aqui no começo dos anos 1960 e tem um capítulo intitulado “Plana e Oca”. Gardner era um colunista veterano da revista Scientific American e publicou inúmeros livros de enigmas matemáticos e de divulgação científica.

Não vou discutir a plausibilidade científica da Terra Oca. A sua fantasia topológica de um mundo envelopando-se a si mesmo foi reconstituída com norrau científico e visão cinemascope-barroco (como dizia Brian Aldiss) por Arthur C. Clarke em Encontro Com Rama (o mundo oco é uma mega-espaçonave) e visualmente por Christopher Nolan em trechos de Interstellar (uma estação orbital em forma de rosquinha.)

Sobre a Terra Plana e a Terra Oca já foi dito que há uma certa coerência em algumas das concepções. Aceitando certas premissas matemáticas, seria difícil distinguir, matematicamente, se estávamos numa Terra como a atualmente descrita ou numa Terra da hipótese de algum deles. De certo modo, os cálculos seriam opostos, mas simétricos. As evidências matemáticas não bastam: é preciso colher provas experimentais. (Há inúmeras.)

A Terra Oca é necessariamente um mundo fisicamente e visualmente muito diferente do nosso, e este é um dos trunfos do ficcionista que quer imaginar uma história assim. Pode haver oceanos inteiros na face interna da esfera terrestre, pendurados neste mesmíssimo instante por cima das nossas cabeças, do lado oposto do Sol. Mantidos no lugar pela força centrífuga, já que a esfera está rodando.



Onde seria a entrada? A primeira aventura de Poe, a do “Manuscrito...” se passa nos arredores do Polo Norte. Já A narrativa de Arthur Gordon Pym, que ficou inacabada (mas diz-se que conduziria à Terra Oca) se passa no Hemisfério Sul, rumo à Antártica. Em todas as teorias daquele começo de século 19 a entrada para o Oco Central ficava nas priximidades do Polo, para concentrar ali a dinâmica da rotação, criando o torvelinho que leva (em tese) a embarcação para o lado oposto, geralmente adernando-a, devido à troca brusca de vetor gravitacional.

Para quem se interessa pela literatura da imaginação, essas teses pseudo-científicas são instrutivas porque nos mostram de que maneira a mente humana procurar criar “modelos” que expliquem a realidade à sua volta. Não são mais absurdas do que a crença antiga e medieval de que a Terra está no centro de várias esferas concêntricas de cristal onde os astros estão engastados.

O problema é quando uma dessa concepções, sem outro argumento senão a palavra dos seus participantes, toma o poder e começa a mandar os discordantes para a fogueira.