terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

4438) A estória de Lélio e Lina (26.2.2019)




(capas da primeira edição)

É um dos textos mais longos de Guimarães Rosa, e se fosse enviado para uma editora de hoje certamente alguém tentaria convencer o autor a publicá-lo como um volume só, pois dependendo do tamanho da fonte, ilustrações, diagramação etc. daria um bom livrinho de umas cem páginas.

Vai aqui uma comparação, usando a segunda edição do livro Corpo de Baile, a única que reuniu os sete “contos” num único volume, nesta ordem:

1. Campo Geral ................................ 77 páginas
2. Uma estória de amor .................... 69   “
3. A estória de Lélio e Lina ............. 86   “
4. O recado do morro ....................... 50   “
5. Lão-Dalalão .................................. 56   “
6. “Cara-de-Bronze” ......................... 44   “
7. Buriti ............................................  124  “

Essa mesma edição (e acho que somente ela) incluiu nas orelhas do livro pequenos resumos de cada estória, provavelmente escritos pelo autor. Eis aqui o resumo fornecido para este conto:



III – A Estória de Lélio e Lina
O fazendeiro do Pinhém e seus doze vaqueiros. A mocinha lisa de Paracatu. Dona Ruth, a mais formosa. Lélio descobre o sofrer de amor. Jiní, a mulata cor de violeta. O amigo que teve de partir. O amigo que endoideceu. A velhinha que ensina outra existência. O boi incendiado pelo raio. Manuela seduzida. Desafio de duelo. Os fechadores de pastos. Ódio do filho. O pranto de Mariinha. Ver o fim da noite. Rumo do longe. A mãe raptada.

Como tudo em Guimarães Rosa, suscita mais perguntas do que respostas. Todos os detalhes dessa lista estão de fato no conto, com diferentes graus de importância. E nada revelam.

É a história de um vaqueiro jovem, Lélio, que chega à fazenda do Pinhém depois de se largar pelo mundo em busca de trabalho. Quem de certa forma o traz até ali é um cachorro que ele achou no caminho e seguiu: o cachorro é da fazenda, e lhe serve de guia. Ele conversa com o dono, Seu Senclér, chegam a um acordo e ele fica ali trabalhando com o gado.

Todo o conto é a narração de como Lélio, um rapaz quieto e observador, amadurece lentamente ao longo de um ano, convivendo com os homens e principalmente com as mulheres do Pinhém. É uma das histórias menos “de-enredo” de Rosa; a narrativa é apenas um suceder de fatos comuns, sem nada de fantástico, heróico, extraordinário.

São várias moças que circulam na fazenda: Mariinha, Manuela, Jiní, Adélia Baiana, sem falar nas duas “tias”, as prostitutas simpáticas (Conceição e Tomázia) que moram juntas e atendem os vaqueiros. Lélio cria relações diferenciadas com cada uma delas, enquanto tenta, de si para si, esquecer uma moça bonita e rica por quem se apaixonou algum tempo atrás, sem muita esperança.

Em diferentes momentos da história, Lélio resolve que está apaixonado por uma delas, mas logo acontece algo que o faz mudar de idéia. Isso dá verossimilhança psicológica ao conto, e ao mesmo tempo o deixa numa instabilidade em que qualquer direção parece possível.


(ilustração de Poty para "Sagarana")

Ele fica conhecendo Dona Rosalina, uma mulher idosa que “podia ser sua avó”, cabelo todo branco, mas com olhos lúcidos e fala precisa. Ela meio que adota Lélio, chama-o de “Meu Mocinho”, e estabelece com ele uma relação de amor mãe-filho. Mesmo que perpassada por uma certa tensão erótica, um certo charme de parte a parte. Ela comenta: “Ou fui eu que nasci de mais cedo, ou você nasceu tarde demais.

Os dois convivem próximos. Cada vez que Lélio sofre um buleversamento amoroso corre à casa dela para se aconselhar. O filho da velhinha não vê com bons olhos aquele xamego, aquela amizade tão pegada. Ameaça tomar providências, mas fica tudo por isso mesmo. Lélio circula entre as moças, cerca uma, conversa outra, tem uma paixão carnal intensa com uma terceira...

E no fim da história, ele e Dona Rosalina, que ele agora chama “Lina”, arrumam a bagagem dela e partem juntos, para longe, um lugar chamado o Peixe Manso, onde ela tem amizades e parentes.

Guimarães Rosa costura essa história simples com a fartura de detalhes de sempre, detalhes que às vezes a gente só capta em segunda ou terceira leitura. A prosa dele é como um mato, não dá pra ver tudo ao mesmo tempo.

Quem traz Lélio ao Pinhém, no comecinho do conto, é um cachorro fugido: pois a dona dele é justamente D. Rosalina. O que nos lembra o conto “Sequência” (em Primeiras Estórias, 1962), onde um rapaz viaja léguas perseguindo uma vaca fugida, a qual retorna à fazenda de onde foi tirada. Quando o rapaz é recebido na fazenda conhece a moça com quem irá amar e casar. Seguir um animal é seguir o inconsciente. É dar parceria ao Acaso.


(ilustração de Luís Jardim para "Sequência": na tradução em inglês, "Cause and Effect")

O amor platônico entre um homem jovem e uma mulher idosa pode ter para alguns um perfil freudiano, edipiano. Eu prefiro ver em Lina uma espécie de anima junguiana, um arquétipo de mulher idosa, sábia, compassiva, que vai percebendo coisas e dando delicados toques. Ela é como uma lente através da qual Lélio se acostuma a ver os outros vaqueiros, e todo o pessoal da fazenda.

Pequenos detalhes remetem a outras histórias. Em noite de festa, e no dia da partida final, Lina usa “vestido verde-escuro, chapéu da mesma cor”. O verde sugerindo juventude e atenuando a idade, mas lembrando também o conto curtinho “Fita Verde no Cabelo (Nova Velha Estória)” (em Ave Palavra, 1970).


Este conto é uma paródia de “Chapeuzinho Vermelho” em que uma menina, a mandado da mãe, cruza a floresta e vai visitar a avó. Quando chega lá, tendo perdido no caminho a fita verde, consegue ainda trocar umas palavras com a avó moribunda antes que ela se torne um “frio, triste e tão repentino corpo”. O Lobo é a morte, a morte na vida real. Vestida de verde, a idosa Rosalina parece recuperar a fita e tornar-se menina de novo, anterior ao conhecimento da morte.

O primeiro encontro entre Lélio e Lina se dá quando ele, voltando pelo mato, a vê colhendo lenha e a princípio se engana:

E, vai, a solto, sem espora, seu coração se resumiu: vestida de claro, ali perto, de costas para ele, uma moça se curvava, por pegar alguma coisa no chão. Uma mocinha. E ela também escutara seus passos, porque se reaprumou, a meio voltando a cara, com a mão concertava o pano verde na cabeça. (...) Mas: era uma velhinha! Uma velha... Uma senhora. (p. 187)

Os contos populares e orais são tão presentes na obra de Guimarães Rosa que até os personagens percebem essas alusões:

Lélio já tinha levantado o manojo de gravetos, e demorou para responder que morava ali mesmo no Pinhém. Porque aquela voz acordara nele a idéia – próprio se ele fosse o rapazinho da estória: que encontrava uma velhinha na estrada, e ajudava-a a pôr o atilho de lenha às costas, e nem sabia quem ela era, nem que tinha poderes. (p. 188)

Nos contos, é claro, a velhinha ajudada com tanto altruísmo se revela como sendo Nossa Senhora ou alguma fada poderosa, capaz de retribuir um dia o favor recebido, ou de entregar ao rapaz algo precioso que o fará conhecer sua futura amada, como na versão da “Moura Torta” recolhida por Câmara Cascudo nos Contos Tradicionais do Brasil.

Tem um certo simbolismo o fato de Lélio só conhecer D. Lina no dia em que está voltando da casa das “Tias”, onde teve relações com a negra Conceição e depois com a branca Tomázia. Como se, apaziguado, estivesse pronto para o conhecimento de um amor que não envolve o sexo. Porque pela diferença de idade (“podia ser sua avó”) o corpo de Lina lhe está tão proibido, por tabu social, quanto para Riobaldo estava o corpo de Diadorim.



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As notas são todas do volume "No Urubuquaquá, no Pinhém", Ed. Nova Fronteira, 7ª. edição, 1994)