terça-feira, 14 de outubro de 2008

0600) A carta traz o carteiro (19.2.2005)




Há uma expressão muito usada em inglês, “the tail that wags the dog”, o rabo que balança o cachorro. Usa-se muito para indicar qualquer caso em que o efeito produz a causa, ou o empregado manda no patrão, ou algo que devia ser um mero complemento acaba ganhando mais importância do que a parte principal. 

O livro Partículas de Deus de Scott Adams (o criador das tirinhas de “Dilbert”, de sátira ao mundo da informática) tem um episódio que ilustra de forma interessante este conceito. 

Nele, um entregador dos Correios leva um pacote até o endereço de destino, onde é recebido pelo dono da casa. “Trouxe este pacote para o sr.”, diz o carteiro. O homem retruca: “Você tem certeza de que foi você que trouxe o pacote? Pois eu acho que foi o pacote que trouxe você até aqui, porque sem esse pacote e esse endereço escrito nele você jamais teria vindo até a minha casa.”

É a mesma inversão que sempre me chamou a atenção nos versos iniciais do poema “Indicações”, de Carlos Drummond: 

“Talvez uma sensibilidade maior ao frio, 
desejo de voltar mais cedo para casa. 
Certa demora em abrir o pacote de livros 
esperado, que trouxe o correio.” 

Os coleguinhas de pendores mais gramaticais podem argumentar que se trata apenas de uma inversão, aceitável, da ordem normal da frase (“...que o correio trouxe”), mas este verso, escrito desta forma, me chamou a atenção para o fato indisputável de que, se os carteiros trazem as cartas do ponto de vista físico, são as cartas que trazem os carteiros num sentido mais amplo do termo.

Podemos visualizar essa dupla questão com mais facilidade se pensarmos numa imagem mais simples. Um homem viaja a cavalo. É ele quem leva o cavalo, ou o cavalo quem o leva? Mais uma vez temos as duas respostas, ambas verdadeiras. Ou um motorista que dirige um carro – o que dá um nível a mais à velha frase de pára-choque: “Dirigido por mim, guiado por Deus”.

Talvez isto possa nos ajudar a encarar a velha questão do livre arbítrio. Somos livres para decidir, ou Deus já decidiu por nós? Fazemos a nossa vontade, ou já está tudo escrito-nas-estrelas? 

Permitam-me os coleguinhas religiosos fazer uma comparação meio herética – o Livre Arbítrio Cósmico e o Futebol. 

Digamos que o Livro do Destino prevê tudo que vai acontecer, mas apenas numa escala “macro”, enquanto que nós temos a ilusão de estar fazendo o que nos dá na telha. 

O Livro do Destino, meus camaradinhas, diz qual vai ser o resultado da partida. Treze 3, Campinense 1. A correria, os esbarrões, o esforço, o esfalfamento dos jogadores, tudo isto lhes dá a ilusão de que são eles que estão decidindo os acontecimentos, mas na verdade o Livro do Destino está preocupado apenas com o placar final de cada jogo. Quem faz o gols, a que hora, de que jeito... são bobagens irrelevantes para o Grande Plano Cósmico. 

E é nessa dimensãozinha irrelevante que funciona nosso limitado livre arbítrio, que se define nossa vida, e que acontece nossa felicidade.





0599) O surfe e o hip-hop (18.2.2005)



A julgar pelo que a gente vê nas revistas, nos jornais e na TV do país, todo adolescente brasileiro pratica o surfe e escuta hip-hop. Estas atividades parecem ser o “default”, o padrão, o piso-base obrigatório para os 50 ou 60 milhões de adolescentes (não sei quantos são, tou chutando) do Brasil. É um daqueles raciocínios perversos em que se toma uma parte para representar o todo, mesmo quando esta parte é uma exceção. Juntam-se, aí, a imposição de modismos da indústria cultural, o desconhecimento prático do que é o país (e o desinteresse em conhecê-lo), a preguiça, e aquilo que eu chamo “a plausibilidade do clichê”. Todo clichê mental só gruda se for plausível. Se você disser que senhoras de 60 anos gostam de fazer tricô e ler Agatha Christie, todo mundo acredita sem questionar, porque é plausível, mesmo se não for verdade. Parece verdade, e, para 90% das pessoas, parecer verdade é o bastante.

Daí que parece plausível a noção de que o surfe e o hip-hop são os hábitos preferidos dos jovens urbanos brasileiros. A toda hora vemos a propaganda, as telenovelas ou as revistas para adolescentes insistindo nestas duas teclas. Já participei de dezenas de reuniões em que as pessoas diziam: “Para atingir o jovem, tem que falar a linguagem do jovem. Se a gente quer dizer ao jovem para usar camisinha, tem que dizer isso em ritmo de hip-hop”. Ou seja: o jovem é um sujeito tão burro, tão tapado, que só é capaz de entender uma única linguagem. Ao mesmo tempo, é um cara inteligente, porque a única linguagem que ele entende é uma linguagem que vem de outro país. Os redatores de TV e de publicidade estão projetando no jovem a sua própria preguiça mental, e a sua própria falta de disposição para sair do ar condicionado e passar alguns meses convivendo com diferentes grupos de jovens de verdade.

Estou usando o surfe e o hip-hop como amostra, mas vou logo avisando que nada tenho contra estas duas atividades em si. Porque uma outra distorção (reflexo contrário na anterior) é que se criou também a noção de que quem pratica surfe é burro, e quem pratica hip-hop é delinqüente. Eu acho o surfe uma das atividades mais saudáveis que existem no planeta. Quem me dera poder fazer aquilo uma vez por semana! Tem surfistas que ficam somente pegando onda 12 por dia, 365 dias por ano, e aí acabam ficando meio burrinhos. Mas, vamos e venhamos, se alguém ficar esse mesmo tempo somente lendo Física Quântica ou somente ouvindo Música Barroca, vai acabar meio burrinho também.

O hip-hop é uma cultura nascida dos bairros negros de Nova York; é a cultura dos excluídos da cultura oficial, a arte de quem não pode fazer arte, a voz de quem não pode falar. Como acontece com todo movimento de contestação, foi assimilado pelo mercado, transformado em via fácil de enriquecimento, e em clichê comodista para descrever pelo lado de fora uma comunidade que não se tem interesse (ou coragem) de conhecer por dentro.

0598) Blogs (17.2.2005)




Eu estava conversando com um grupo de amigos quando falei que tinha lido não-sei-o-que num blog, aí uma amiga minha disse: “Eu não acredito que você perde o seu tempo lendo essas coisas de menininhas adolescentes.” Eu falei: “Não, é um blog dum jornalista.” E outro falou; “Pois deve ser um jornalista muito desocupado – o cara tem tempo de fazer blog!” Isto tudo revela o tipo de preconceito de muita gente que ouve o galo cantar mas não sabe onde. Embora eu reconheça que existem hoje milhões de garotinhas adolescentes que fazem blogs para falar da briga que tiveram com o namorado, ou da sandália nova que compraram, ou do garoto com quem pretendem “ficar” na próxima festa.

Esses blogs na Internet estão substituindo aquelas agendas (cheias de adesivos, escritas com hidrocor); estão substituindo também os famosos livrinhos “Meu Diário” que tantas mocinhas já cultivaram, aqueles com uma fechadurazinha que qualquer mãe mais traquejada abre com um “biliro”. Mas é um grande erro imaginar que blog é apenas isto. Existem blogs literários onde escritores e críticos comentam livros. Existem blogs eróticos onde pessoas anônimas contam suas atividades e fantasias sexuais com um detalhismo que faria Henry Miller e Pierre Louys parecerem escritores evangélicos. Existem blogs feitos por escritores de ficção científica onde se debatem as possibilidades de novas engenhocas eletrônicas ou teorias cosmológicas. E assim por diante.

Em 4 milhões de blogs pesquisados recentemente, mais de 60% pertenciam a mulheres. A revista Time chamou o blog de “um quarto só seu no século 21”, aludindo ao livro de Virginia Woolf A Room of One´s Own, em que ela defende o direitos das mulheres de terem um aposento para ler, pensar, escrever, longe do tumulto doméstico e familiar. A Internet possibilita colocar um texto à disposição de milhões de pessoas. A tecnologia da maioria dos portais que oferecem blogs é rápida e sem mistérios. Qualquer dona-de-casa que saiba mandar um email consegue achar um tempinho para sentar ao teclado, digitar por meia hora, dar um clique, e fazer com que seus desabafos ou seus devaneios fiquem expostos nos muros da cidade virtual, à disposição de quem por ali navega.

Blogs pessoais estabelecem um hibridismo curioso entre o íntimo e o público. Eu fico estarrecido com o grau de franqueza e de auto-revelação que vejo em alguns blogs. Maridos ou esposas confessam nos menores detalhes suas brigas domésticas, suas separações, seus conflitos. Homens ou mulheres contam nos mínimos detalhes as práticas sexuais pouco ortodoxas a que se entregam com seus parceiros, ou com gente anônima pegada na rua. Basta olhar o cabeçalho, no entanto, para perceber que esses “diários públicos” continuam íntimos e privados, porque não se sabe o nome do autor (é sempre um pseudônimo), e, se ele não quiser, nem sequer o país de onde ele escreve. É o máximo de exibicionismo unido ao máximo de privacidade: o melhor de dois mundos.

0597) “Meu tio matou um cara” (16.2.2005)



Alguns anos atrás a TV-Globo exibiu Luna Caliente, uma mini-série de Jorge Furtado que, com alguns cortes, poderia resultar num longa-metragem para cinema. Seria um dos melhores filmes policiais brasileiros. É a história de um cara (Paulo Betti) que comete um crime arrastado por uma mulher fatal (no caso, uma ninfeta diabólica) e começa a se enredar numa teia de mentiras mal-contadas e de testemunhas incômodas que precisam ser silenciadas. E o filme tem uma tintura de sobrenatural que o torna ainda mais arrepiante.

Não vi o primeiro longa de Furtado, Houve uma vez dois verões, mas o segundo, O Homem que Copiava é também uma espécie de filme policial: dois rapazes (Lázaro Ramos e Pedro Cardoso) se juntam para dar um golpe, e o primeiro crime acaba obrigando-os a cometer o segundo, o terceiro, e por aí vai. Na época, o diretor foi acusado de amoralismo, de fazer propaganda da transgressão e da marginalidade, num filme que era claramente destinado ao público adolescente. Parece que isto direcionou um pouco o enredo deste Meu tio matou um cara, onde o simpático trio de protagonistas (Darlan Cunha, Sophia Reis e Renan Gioelli) faz o papel de detetives, e procura esclarecer um nó de histórias mal-contadas que levou o tio de um deles à prisão por assassinato.

Na verdade, os méritos dos filmes de Furtado não estão no terreno da “mensagem” ou da “moral da história”. Eles mostram, por exemplo, casais interraciais, mas não discutem a questão, o que na minha opinião é um dado positivo. Não que não valha a pena discutir se um negro pode casar ou não com uma branca, ou vice-versa; mas é igualmente positivo dar uma situação assim como fato consumado, como uma coisa normal da vida, e ir adiante. É isso que o filme faz, com o mérito adicional de se passar em Porto Alegre, onde casamentos e namoros desse tipo devem ser bem mais raros do que em Salvador ou Recife.

O mais interessante dos filmes de Jorge Furtado é a fluência de seus roteiros, onde há sempre a voz do protagonista lembrando, contando e comentando tudo que acontece. A narração em “off” é muitas vezes usada para explicar ao público coisas que o roteirista e o diretor não conseguiram mostrar. Nos filmes de Furtado, este recurso faz a narrativa fluir mais rápida, com transições e reviravoltas bruscas, sem que o público perca o fio da meada. O ponto de vista de Duca (Darlan Cunha) é o olho crítico com que os adolescentes vêem e julgam os adultos. “Teu tio é um idiota,” comentam eles o tempo inteiro. Os jovens deste filme tem lá seus problemas, dão suas mancadas, mas não perdem os adultos de vista do começo ao fim. É diferente, por exemplo, de coisas como Malhação, um típico programa onde adultos escrevem sobre como os adolescentes se comportam estatisticamente, procurando “refletir o pensamento dos jovens”, ou seja, procurando ampliar e perpetuar todos os piores clichês da Zona Sul carioca sobre o jovem brasileiro em geral.

0596) O K, o W e o Y (15.2.2005)



O Brasil é o país das leis que não pegam. Se isso ocorre com as leis que regem nossa vida civil e interessam a todos (dinheiro, família, Código Penal, etc.), avaliem vocês as leis que regem a língua, uma coisa de que nossa sobrevivência depende tão pouco. Respeito a gramática, mas me permito discordar dela de vez em quando. As leis da gramática não são da mesma natureza que as leis da Ciência. Estas exprimem certas propriedades fundamentais da Natureza: o mundo é assim, e pronto, o jeito é a gente entender e se adaptar. As leis da Gramática, contudo, são leis que têm origem social, que têm origem no uso e na prática da língua pelas pessoas. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, como dizia Camões, e as leis da língua podem muito bem mudar.

A Reforma Ortográfica baniu de nosso alfabeto as letras K, W e Y, consideradas estrangeiras. Foi o mesmo que banir a maconha, o candomblé ou o jogo-do-bicho, ou seja: não deu em nada. Essa reforma a que me refiro foi uma limpeza providencial no idioma, eliminando coisas supérfluas como as letras duplas mudas (“offerecer”, “ella”, etc.), o famigerado “ph” no lugar do “F”, etc. . Não há dúvida de que é um grande avanço escrever “tísica” em vez de “phthysica”. Se teve uma coisa que não colou, no entanto, foi o banimento dessas três simpáticas turistas.

Acho que cada pai e mãe, a certa altura do campeonato, passa por esta cena. A criança, já capaz de ler uma revistinha ou um livrinho, pergunta: “Pai, que letra é essa?” O pai: “É um dáblio.” A criança aponta para o quadrozinho-negro que tem o alfabeto, o ábaco e o mostrador-de-relógio: “Mas cadê?” O pai: “É porque é uma letra que não existe no Brasil.” Grave problema filosófico se instala no juízo do pirralho. Dias atrás resolvi dar uma checada no “Dicionário Houaiss”, o meu preferido. A letra “K” tem três páginas e meia de verbetes. A letra “W” tem duas. A letra “Y” tem meia. Parece pouco, concordo. Mas para quem não existe oficialmente, está de bom tamanho. E olhe que isto computa apenas as palavras iniciadas pela letra, deixando de lado sua incidência no interior da palavra.

Não, não quero deflagrar aqui um Movimento de Anistia Ampla, Geral e Irrestrita para as letras deportadas. Não quero que elas pulem as barreiras de nossa alfândega, favorecidas pelos ventos da globalização, e venham disputar o nosso mercado de trabalho, causando ondas de desemprego entre o Q, o U, o V, o I... Claro que precisamos de uma reserva-de-mercado para a mão-de-obra nacional, a qual precisa manter os espaços conquistados. Só peço é que essas letras deixem de ser consideradas não-existentes, percam esse status absurdo de imigrantes ilegais. Reconheçamos sua origem alienígena, cubramo-las de ressalvas e barreiras, mas que elas pelo menos sejam consideradas parte oficial do nosso alfabeto. Senão as crianças vão começar a perceber, desde muito cedo, que uma coisa é o que o Governo diz, e outra o que ele permite acontecer.