domingo, 17 de julho de 2016

4135) "Submissão" de Michel Houellebecq (17.7.2016)




Este romance foi lançado na semana do atentado ao “Charlie Hebdo” em Paris, quando vários desenhistas foram assassinados por fanáticos jihadistas. (É esta a versão vigente na época em que escrevo; sei lá o que já terão descoberto sobre esse fato daqui a 50 anos.)  

Houve uma certa saia justa, porque podia ser até o livro certo, mas era na hora errada. Numa hora em que o Islã, ou pelo menos uma parte ruidosa e pungitiva do Islã, praticava uma carnificina, ninguém que tivesse lido ou tomado conhecimento deste livro deixaria de ligar as duas coisas, sabe-se lá com quantas arrobas de preconceito.

Soumission (2015) saiu no Brasil pela Alfaguara, com tradução de Rosa Freire d’Aguiar. É quase uma ficção científica, um romance de antecipação ambientado no ano de 2022, num futuro-próximo em que um candidato muçulmano se elege presidente da França. 

Ben Abbes, o candidato da Fraternidade Muçulmana, vai para o segundo turno contra um candidato de direita, e com isso consegue o apoio da esquerda, e se elege. A França adere ao véu, ao Corão, iniciando um movimento de islamização da Europa.  Alguns personagens anunciam a substituição de uma civilização decadente por outra em ascensão.

Foi estranho estar lendo este livro justamente agora. Comprei por acaso, na calçada, e já estava mais ou menos na metade quando ocorreu o atentado que matou dezenas de pessoas em Nice (e que ainda não se sabe se foi atentado jihadista ou gesto pessoal de loucura). E depois a tentativa de golpe contra o presidente da Turquia, uma história ainda confusa no momento em que escrevo, mas onde houve um componente de atrito entre presidente islamizador e forças armadas “laicas”.

Não tinha lido outras coisas de Michel Houellebecq, que conheço apenas das entrevistas onde ele parece ser um excêntrico, desbocado, cheio de opiniões idiossincráticas, vasta erudição e verve verbal temível. O livro tem tudo isso. Ele também é meio chegado a temas de FC, provavelmente pertence àquela geração de intelectuais franceses que há 40 anos estavam lendo traduções de Philip K. Dick.

O narrador, François, é um professor da Sorbonne, solteirão, sem família alguma, que vive da fama dos seus trabalhos sobre a obra de J.-K. Huysmans, o autor decadentista de À Rebours (1884), Là-Bas (1891) e outros. 

François narra sua rotina, seus namoros com as alunas, suas saídas com garotas de programa, sua frustração profissional, etc., aquela tradicional crise da meia-idade do personagem do mainstream literário do Ocidente. Tudo se encaminha para mais um romance existencialista-realista-parisiense, mas chegam as eleições e Ben Abbas sobe ao poder. 

É uma guinada philipkdickiana na História, e François, a França, os franceses, todo mundo é jogado para uma realidade paralela.

Em momento algum (preciso reconhecer) Houellebecq faz uso de algum tipo de jargão, figura narrativa ou clichê da FC; também não dá aquelas piscadelas cúmplices para certo grupo de leitores de gênero (“prestem atenção neste nome próprio, é para mostrar que eu já li Fulano”). 

Seu livro é para os franceses seus contemporâneos. Pelo uso maciço de personalidades reais (políticos, pessoas da mídia, etc.) deve ser uma leitura divertida onde podemos ver políticos de verdade enredados, mesmo que à distância, numa realidade meio fantástica.

Digo meio à distância porque o narrador de Houellebecq só fala de si mesmo, é um simpático e patético poço de solipsismo. Ele só fala dos próprios problemas, mesmo sendo uma testemunha viva de um momento histórico mais importante do que, por exemplo, a Passagem do Milênio. 

É o Retorno do Reprimido, de certo modo. O refluxo dos colonizados, como uma flecha no coração do colonizador. A Europa invadida pelo Oriente; não pelos seus exércitos, mas pelos seus estudantes, pelos seus profissionais do subemprego, pelos seus carregadores do piano alheio, pelos seus biscateiros e pelos seus operários-padrão, pelos seus refugiados de guerra. 

Um exército que invade em paz. Invade querendo agradar a cidade invadida. Invade não num movimento bélico, mas numa onda geopolítica somada a um vagalhão demográfico. Não é o “uh-tererê!” da guerra.  É o tsunami silencioso dos tempos daquilo que chamamos paz.

E vejam só, na França islamizada-do-dia-para-a-noite de Submissão ninguém pega em armas, os mosqueteiros do rei não saem à rua, os filhos da pátria não formam seus batalhões, a guilhotina não fica fazendo traco-traco até o dia amanhecer. A França de Houellebecq parece aceitar passivamente essa troca de civilizações, quase como se estivesse cansada de ser o centro do mundo. (Sim, a França pensa que é o centro do mundo, e quem pode censurá-la por isso?)  Quase como se a submissão fosse o relaxamento final de uma tensão custosamente mantida; como se entregar-se ao inimigo trouxesse ainda mais prazer do que lutar contra ele.

E no entanto o livro continua a ser um romance existencialista. O leitor com perfil FC ou de romance histórico fica querendo saber o papel dos EUA e da Rússia nesse cataclismo, saber o delicado balanço político de potências vizinhas como Inglaterra, Alemanha, sei lá... Nada. Sabemos pouco do que acontece fora do quarto-e-sala de François.  Do que acontece fora da cabeça de François. 

Ele se deixa progressivamente atrair para o Islã, cuja Sorbonne privatizada lhe promete um salário três vezes maior e o direito a casamento poligâmico. Quem hesitaria? Diante de uma oferta dessas proporções, a França de Houellebecq não hesita, parece entregar-se de graça e sem luta, deixa-se tomar pelo inimigo, descobre na última frase que ama o Grande Irmão.