sábado, 24 de abril de 2010
1950) “Versos Íntimos” de Augusto (9.6.2009)
É o soneto mais conhecido de Augusto dos Anjos e um dos mais populares de nossa língua. Não é um soneto impecável como os dos parnasianos. Como toda obra de Augusto, é o registro sismográfico de emoções intensas e idéias espantosas. Vai, num salto, do abismo ao Everest, e volta, e vai de novo.
O primeiro quarteto, por exemplo. Nada me tira da cabeça que Augusto primeiro imaginou dizer: “Ninguém assistiu ao formidável enterro...” Mas o verso estava quebrado. Faltava uma sílaba. Ele poderia ter colocado um rípio (palavra “tapa-buraco”) qualquer e ter dito: “Se ninguém assistiu ao formidável...” ou “Pois ninguém assistiu ao formidável...” Mas optou pelo: “Vês?” E conseguiu muito mais impacto.
Em geral, quem faz versos rimados prepara primeiro os últimos. Augusto queria dizer: “Somente a ingratidão – esta pantera – / foi tua companheira inseparável!”. Usou como preparação “formidável” (adjetivo supérfluo, pouco enriquecedor) para efeito de rima. Mas rimar “pantera” com “quimera”, monstro real e monstro imaginário (neste caso um sinônimo de “sonho, fantasia”) é um belo achado.
Eu acho que “Acostuma-te à lama que te espera!” é um dos maiores decassílabos (e um dos mais amargos conselhos) da poesia brasileira. Por mim o soneto acabava aí. Felizmente ele prossegue e nos derruba ao chão com outra verdade de 200 toneladas: “O Homem, que, nesta terra miserável, vive entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera”.
A “fera” é uma rima além-do-sonoro para a dupla “pantera/quimera” do quarteto anterior. E essa repetição monótona de sufixos em adjetivos grandiloquentes (“Formidável! Inseparável! Miserável! Inevitável!”) acaba nos impondo, pelo exagero, a sensação de verdades definitivas, esmagadoras.
O verso do cigarro no primeiro terceto parece ter entrado apenas para rimar com o “escarro” que Augusto planejou para o verso seguinte. Mas... dêem uma geral, vejam como cigarros e fósforos aparecem em toda a obra do poeta, que nem sei se fumava ou se apenas se maravilhava com esses pequenos e mortais milagres químicos.
E o “toma” (como o “Vês?” inicial) restaura o tom coloquial, “íntimo”, que o poeta tanto empregou, para desconforto dos puristas do seu tempo. O desfecho do soneto, então, pode não ser impecável (o verso “Se a alguém causa inda pena a tua chaga” é mera preparação), mas é inesquecível, com seus pares complementares e/ou opostos: mão/boca, beija-escarra, afaga-apedreja.
A poesia de Augusto, reconhecidamente difícil, tem seus momentos fáceis, como este. Não digo “fáceis” com desdém. Fácil porque cheio de imagens vívidas, que o leitor assimila no mesmo instante. Imagens com poder de choque, de comunicar verdades poderosas e sofridas. Um desabafo de revolta e de autoafirmação nietzschiana, que ainda hoje, cem anos depois, é recitado em mesas de bar por motoristas, mecânicos de oficina, comerciários, bêbados anônimos cujas mãos e bocas acendem o mesmo fósforo e fumam o mesmo cigarro.
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