No prefácio da recente reedição das aventuras de Sherlock Holmes (Jorge Zahar Editor, com notas de Leslie Klinger), John Le Carré afirma: “Ninguém escreve sobre Holmes e Watson sem amor”. Mulheres são vulneráveis a este amor (está aí minha filha Maria que não me deixa mentir), mas eu ouso afirmar que o universo sherlockiano é acima de tudo um universo masculino, ainda que não machista. As mulheres são tratadas com respeito e reverência, à maneira vitoriana, mas aquele é um mundo moldado pelos sonhos de homens autoritários, intelectuais, reunidos numa espécie de clube fechado onde sentam diante da lareira, bebem, fumam, jogam xadrez e decidem o destino do mundo.
A Inglaterra de Holmes e Watson é o símbolo do colonialismo no que ele tem de admirável. O que ele tem de desumano e terrível já o sabemos, nós, povos morenos do Terceiro Mundo, que estudávamos o marxismo e torcíamos pela guerrilha latino-americana. O lado admirável do colonialismo do século 19 pode ser cristalizado em dois tipos humanos a quem eu chamo os ícaros e os dédalos. Os ícaros são os aventureiros, os que gostam de enfrentar perigos, correr risco de vida, mergulhar no desconhecido, desbravar regiões selvagens. Os dédalos são os que gostam de se trancar em enormes bibliotecas onde estão acumulados os tesouros do saber, gostam de investigar o passado, solver enigmas, construir intrincados labirintos de idéias.
A fascinação que Sherlock Holmes desperta em todos nós é pelo fato de ele ser, ao mesmo tempo e alternadamente, um dédalo e um ícaro. E diante dele nós somos o Dr. Watson, o “homem comum” fascinado por aquele indivíduo (por aquela nação) que concilia aspectos tão opostos. Holmes é capaz de se enrolar num roupão velho e passar duas semanas encolhido numa poltrona, fumando e pensando, enquanto junta as peças de um quebra-cabeças que está tentando desvendar. No momento em que ele entende o que está acontecendo, e o que é preciso fazer, ele se transforma. Agarra o companheiro pelo ombro, com a frase famosa: “Come on, Watson! The game is afoot!” (frase que pode ser traduzida como “A caça está à solta” ou “O jogo começou”) Daí em diante, Holmes é outra pessoa: disfarça-se até ficar irreconhecível, enfrenta adversários de mãos limpas ou de revólver em punho, cruza e recruza Londres em caçadas frenéticas, pratica incríveis façanhas de coragem e de resistência física.
O escritor e diplomata Richard Francis Burton é uma figura histórica que também reúne estes dois lados (erudição e aventura) que caracterizaram a peculiaríssima forma de civilização que foi a Inglaterra vitoriana e, por extensão, a Europa colonialista do século 19. São personagens e histórias de um tempo em que o mundo tinha centro, e este centro era de raça branca, de sexo masculino, de mentalidade científica e materialista, exibia títulos de nobreza, e acreditava que sua civilização tinha por fim alcançado o Fim da História.
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