Osman Lins diz em algum livro seu que (os termos não são bem estes, mas vá lá) não existe produto literário mais reles do que o Fragmento.
Sempre tenho um pouco de remorso quando discordo de meus autores preferidos. Por mais que os respeite, nunca me passa pela cabeça que eles possam estar certos e eu errado, mas discordar deles me constrange tanto quanto me constrangia contradizer meu pai em público (coisa que nunca fiz, embora às vezes a língua coçasse que era uma beleza, pelos despautérios que de vez em quando ele dizia).
Eu entendo a idéia de mestre Osman. Ele era um desses indivíduos que têm um vislumbre do Universo e permanecem fiéis a essa idéia de grandeza, à missão de reproduzir o que entreviram dessa enorme Máquina de Idéias. As imagens recorrentes no discurso de Osman são imagens de estruturas monumentais (a Catedral, a Cidade) ou complexas (o Relógio, a Tapeçaria, o Labirinto). Quem desenha ponte-pênsil desdenha quem faz ponta de lápis.
É natural que um arquiteto assim tenha um leve menosprezo pelo fragmento literário, pelo rabisco bem-intencionado que não chegou a se concretizar em obra, por esse embrião de idéia cuja evolução foi sustada pela indolência ou pela inépcia de quem o concebeu.
Quando o fragmento de texto é medíocre, e sua existência parece sobrecarregar o mundo, não é grande problema, basta descartá-lo e esquecê-lo. Mas o fragmento de texto brilhante nos incomoda porque deixa entrever o talento que o produziu e as alturas a que este talento teria podido chegar, se tivesse tido coragem para encarar a Guerra da Criação.
Osman Lins sempre exigiu o máximo de si e dos outros. Não deve ter sido um sujeito de convivência fácil, porque seus parâmetros estéticos eram muito altos. Os parâmetros éticos também, como vemos em seus demolidores ensaios sobre literatura e mercado editorial (Guerra sem Testemunhas) e sobre o sistema educacional e a indústria cultural no Brasil (Problemas Inculturais Brasileiros, Evangelho na Taba).
Não admira que ao tratar a criação literária ele fosse impiedoso com o pedacinho, o trechinho, o rascunho, o esboço, a coisa deixada pela metade, o quase-texto.
Se existem muitas obras prontas no mundo, maior ainda deve ser a quantidade das obras abortadas no meio do caminho. Sinfonias inacabadas, capítulos iniciais de romances inconclusos, primeiros-atos de peças que nunca viram o palco, músicas sem letra, letras sem música, filmes encalhados para sempre no copião.
Em muitos desses fragmentos vemos o relampejar do gênio, e esta é uma razão a mais para lamentarmos a perda da Obra. Artistas que nos deixam mais fragmentos do que obras nos fazem pensar naquilo que Manuel Bandeira descrevia como “a vida inteira que poderia ter sido e não foi”, ou lamentar, com Augusto dos Anjos, “a dor da Força desaproveitada, o cantochão dos dínamos profundos, que podendo mover milhões de mundos jazem ainda na estática do Nada!”.
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