Faleceu semana passada Shelley Winters. Confesso que ao ver a notícia minha reação foi como a dos amigos de Dorothy Parker ao ver seu obituário nos jornais: “Oi, e ainda era viva?” Somos tão acostumados ao círculo vicioso da exposição à mídia, da indústria de fofocas, do tráfico de eventos, da política dos divulgadores e assessores de imprensa, que quando passamos alguns anos sem ouvir falar de alguém... bem, se não está aparecendo na TV, é porque deve ter morrido, não é mesmo?
Grande Shelley Winters, atriz rubicunda e desabusada. Nunca a considerei uma beldade, se bem que olhando agora algumas fotos suas com 20 ou 30 anos reconsiderei este julgamento. Não importa. Era boa atriz e, curiosamente, tinha algo de atriz brasileira ou italiana. Era aquela loura sem papas na língua que faz excelentes papéis de sogra atemorizante, de vizinha encrenqueira, de matriarca mão-de-ferro, de solteirona lamurienta. Suas interpretações às vezes passavam do limite, por excesso de veemência. Seu erro nunca era a falta de talento, mas o descontrole dele, o transbordamento, o desperdício de energia naquelas situações em que a metade teria produzido o dobro.
A única vez que vi uma estátua do Oscar em “carne e osso” foi quando visitei o Museu Anne Frank, em Amsterdam,. Não era réplica: era a estátua que Shelley Winters (de ascendência judaica) doou ao museu, depois de tê-la ganho em O Diário de Anne Frank, de George Stevens. Vi este filme aos 16 anos e me tornei um fã de Anne Frank até hoje. Shelley fazia a mãe de Peter Van Daan, o garoto que Anne parece ter amado em sua curta vida. Ela interpretou também a mãe da ninfeta no Lolita de Kubrick, e fez uma impagável mãe judia em Próxima Parada: Bairro Boêmio de Paul Mazursky.
Shelley brilhou mesmo, para mim, como Ma Barker, a matrona incestuosa que chefia os próprios filhos numa quadrilha durante a Depressão, em Bloody Mama (1970), um daqueles filmes-demo de Roger Corman, feitos em dez dias e com dez tostões. Irascível, desbocada, furibunda, ela rouba o filme inteiro. Ajudou Corman a escolher o elenco, inclusive mostrando-lhe um teipe de um jovem e pouco conhecido ator chamado Robert De Niro. Diz Corman que antes de rodar suas cenas ela ouvia, em todo volume, árias de ópera cantadas pelas grandes divas. Quando o diretor gritava: “Ação!” ela desligava o toca-discos e entrava triunfante no cenário.
Era o que nos EUA chamam de “uma atriz do Método”, discípulos do método de Stanislawski, muito usado no famoso Actor’s Studio de Nova York. Mergulhava de cabeça no personagem. Para filmar em Bloody Mama o enterro do filho viciado em drogas, rodado ao amanhecer, passou a noite num velório de verdade, olhando para o defunto desconhecido e vendo cenas do Vietnam na TV. Quando Corman preparou a cena, e perguntou por ela, viu-a irromper em prantos, descomposta, gritando pelo filho. Corman mandou rodar, e a cena estava pronta. Ela cultivava a estética do trapézio-sem-rede.
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