sexta-feira, 1 de agosto de 2008

0484) O Homem do Fuzil (7.10.2004)



 (Agatha Christie)

Toda criança tem um amigo imaginário; vai ver que todas têm também um inimigo imaginário. Agatha Christie conta em suas memórias que um dos seus pesadelos mais constantes durante a infância envolvia um personagem que ela chamava O Homem do Fuzil. Era uma espécie de soldado francês, com chapéu de tricórnio e um mosquetão antiquado ao ombro. Aparecia nos momentos mais inesperados: quando a família estava reunida para o chá, ou quando as crianças brincavam no jardim. De repente, a pequena Agatha começava a sentir uma inquietação crescente. Olhava em volta, e acabava vendo-o sentado à mesa, ou caminhando na direção delas, na praia. Ele se aproximava, com os olhos fixos nela, e eram olhos de um azul muito pálido. Ela acordava gritando; “O Homem do Fuzil! O Homem do Fuzil!” Ela não temia que o homem disparasse o fuzil, que era apenas uma parte de sua indumentária, como o chapéu ou as botas. Era a simples presença dele, e seu olhar cruel, que a amedrontava.


Com o passar dos anos, o pesadelo foi se sofisticando, e o Homem do Fuzil passou a fazer aparições mais sutis. Diz ela: “Algumas vezes estávamos sentados ao redor de uma mesa de chá, eu olhava para um amigo ou para um membro da minha família e, de repente, tinha consciência de que não era Dorothy, ou Phyllis, ou Monty, ou minha mãe, ou qualquer outra pessoa. Nesse rosto familiar, os pálidos olhos azuis encontravam-se com os meus. Era o Homem do Fuzil.”


É um pesadelo notável para uma garota de cinco anos, mas é mais notável ainda quando refletimos em quem essa garota se tornou. Agatha Christie está entre os autores que melhor exploraram um tipo de história que os analistas do romance policial chamam de “cozy mystery” (“mistério aconchegante”), ou de “country house murders”. São histórias geralmente ambientadas numa casa de campo (ou mais raramente casa de praia) onde um grupo de pessoas amigas se reúne para passar um feriado ou fim-de-semana, e ali, no meio daquele ambiente tranqüilo, acaba acontecendo um assassinato.


O “cozy mystery” é tipicamente a descrição de como a harmonia num círculo de pessoas amigas, ou numa família, é rompida subitamente por um crime brutal. Segue-se uma investigação, no curso da qual o detetive (geralmente Hercule Poirot) começa a desvendar segredos, conflitos, ódios reprimidos, ressentimentos acumulados, e começa a perceber que todo mundo ali poderia ter motivo para matar a vítima. Ele vai reunindo as pistas, confrontando os depoimentos, e o livro culmina com uma sessão em que todos os suspeitos são reunidos numa sala, com a presença da polícia. Ali, Poirot faz uma reconstituição de como o crime foi cometido, elimina de um em um os suspeitos, até que o funil vai-se estreitando, e ele aponta o verdadeiro criminoso. Porque mesmo num ambiente de aparente harmonia um parente nosso, ou um amigo da família, de quem menos se suspeitava, pode ser O Homem do Fuzil. 




(Este texto está incluído no livro A Arte de Olhar Diferente, São Paulo, Editora Hedra, 2012.)




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