sexta-feira, 1 de agosto de 2008

0479) Elites versus Povão (1.10.2004)



(Obama em Berlim, julho 2008)

Elitista é um sujeito que acha que uma nota de dez vale mais do que duas de cinco; populista é o sujeito que acha que é o contrário. Millôr Fernandes disse certa vez que toda a discussão ideológica entre esquerda e direita poderia ser reduzida a uma disputa básica: a Esquerda acha que quem deve governar é a maioria da população, e a Direita acha que quem deve governar é uma minoria. As palavras de Millôr não eram estas, estou parafraseando, mas acho que a idéia era por aí. O pior nesta discussão é que ambas as posições parecem estar certas.

Vejamos a Direita. “O Povo não sabe o que quer. O Povo é uma massa bestializada, uma horda de gente embrutecida, gente reduzida ao egoísmo-de-sobrevivência daqueles a quem sempre foi negado tudo, e que quando têm qualquer vislumbre de possibilidade são capazes de pisar no pescoço da mãe para agarrar-se a essa migalha. O destino das massas poderia ter sido outro, se lhes tivessem sido dadas as devidas chances, mas não foi isto que ocorreu. A população é analfabeta, animalizada, incapaz de entender o mundo em que vive; e só porque é maioria vamos entregar-lhes as rédeas da Cultura e da Civilização? Na-na-ni-na-não!”, dizem os Elitistas. “Quem manda aqui sou eu, que me preparei a vida inteira para isto, e não essa sub-raça.” Como negar que existe lógica por trás deste argumento?

Já a Esquerda pensa o contrário. “Massas animalizadas? Que papo é esse, cara-pálida? O que eu vejo são massas organizadas, conscientes, trabalhadoras. Entrem no lar humilde de um operário e vocês vão ver façanhas espantosas de honestidade e caráter. De previdência, prudência e realismo na administração de bens escassos. De planejamento a longo-prazo, de valorização de conquistas alcançadas como muito suor e muita persistência. Tudo bem, também existe um lumpen-proletariado sem a menor desqualificação: os mendigos, os marginais, os desajustados. O Povo, contudo, é outra conversa. O Povo conhece nosso país muito melhor do que os tecnocratas e os políticos que estão encastelados em suas torres-de-marfim. Qualquer dona-de-casa entende mais de economia do que o Ministro da Fazenda.” Soa familiar?

Os dois discursos nos soam familiares, porque, apesar de não terem a mínima relação com a realidade, são ouvidos o tempo inteiro. São mera retórica de editorial e de palanque. Não são um exame verdadeiro do que são as Elites e o Povo, e do que determina suas ações. “Elite” e “Povo” são noções abstratas que devem ser usadas com muita economia. Botar nelas uma inicial maiúscula e passar a usá-las como nome próprio, tratá-las como se fossem uma pessoa, é um perigo. Nenhum desses conceitos se refere a uma entidade única e de comportamento uniforme. Personalizá-los (“a Elite é egoísta...”, “o Povo é alienado...”) é cobrir com camadas de papo-furado uma imagem que já não é das mais fáceis de enxergar. É pouco científico. Toda vez que eu fizer isto, puxem-me as orelhas.

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