segunda-feira, 17 de março de 2008

0266) O visitante sem rosto (27.1.2004)




Há mais de meio século que todos os anos, na madrugada de 19 de janeiro, um vulto encapuçado entra no cemitério de Baltimore, no Estado de Maryland, e deposita três rosas e uma garrafa de conhaque francês sobre o túmulo de Edgar Allan Poe, homenageando o aniversário do poeta de “Annabel Lee”. Ninguém sabe quem é o visitante. As três rosas, ao que se supõe, são para o poeta, sua esposa Virginia Clemm e a mãe dela, Maria Clemm, que foi uma espécie de segunda mãe para Poe. O conhaque deve ser uma homenagem à, digamos, propensão etílica que ajudou a matá-lo aos 40 anos.

A visita noturna e o presente anônimo foram notados pela primeira vez em 1949, no primeiro centenário da morte de Poe. Desde então vem se repetindo pontualmente, todos os anos, e sempre da mesma forma. Admiradores de Poe costumam se reunir no cemitério, nessas madrugadas, para esperar a chegada do visitante misterioso, a colocação dos presentes, e a partida, sem uma palavra, sem outro gesto. Nunca é muita gente, porque Baltimore é uma das cidades mais frias dos EUA, e janeiro é inverno brabo. E rendo aqui minha homenagem ao povo americano, pois apesar da ditadura da TV naquele país ninguém nunca levou uma equipe para acender refletores, ligar câmeras e arrancar o pano do rosto do cara para perguntar: “E aí, como é essa emoção de todo ano vir trazer esse presente?...”

No dia em que eu tiver uma grana mais folgada eu vou pegar um avião para Baltimore em 18 de janeiro só para ver esse ritual. Acho fascinante, principalmente por cercar a figura de Poe, um dos sujeitos mais brilhantes e complicados que já encostaram uma caneta num papel. Mistério, silêncio noturno, fatalismo e recorrência– tudo isso tem a ver com a obra do poeta de “Ulalume” e de “O Corvo”.

Em 1993, o visitante deixou um bilhete lacônico: “A tocha será passada adiante”. A mensagem foi interpretada como um aviso de que o ritual passaria a ser praticado provavelmente por um filho do visitante original, o que foi confirmado por outra nota em 1998. Ao que parece, contudo – ah, as novas gerações! – o ritual está se desunerando. Em 2001, foi deixada junto com o presente uma nota em que o visitante afirmava estar torcendo pelos New York Giants, que iriam enfrentar os Ravens de Baltimore (assim batizados em homenagem ao poema de Poe) pelo SuperBowl, o campeonato de futebol americano. A mensagem, claro, deixou Baltimore revoltada, e os Ravens acabaram vencendo a partida. E dias atrás, foi deixada uma nota onde o visitante se manifesta, um pouco tardiamente, sobre os chega-pra-lá políticos da Guerra do Iraque. Diz o bilhete: “Na sagrada memória de Poe e no local de seu último repouso não há espaço para o conhaque francês. Com grande relutância, mas em respeito a uma tradição de família, o conhaque é trazido. A memória de Poe viverá para sempre.” Futebol, política... Não, amigos, o mundo não é mais o mesmo. E o corvo disse: “Nunca mais!”




2 comentários:

Maxwell F. Dantas disse...

Poe foi o escritor que me fez gostar de Literatura. A análise, o medo, a incerteza... Sendo, de início, repudiado, e hoje cultuado. A obra de Poe é máxima, e o corvo, mesmo entoando seu Nevermore, continua voando sobre nossas cabeças...

Paulo Rafael disse...

Que bacana esse ritual, apesar das novas gerações.