segunda-feira, 17 de março de 2008

0277) A arte de errar (8.2.2004)





(ilustração: Giorgio de Chirico)

Às vezes um trecho de canção se gruda no ouvido da gente, num “loop” que ninguém desliga. Quando é de uma dessas músicas pavorosas que tocam no rádio, aí é dose. Mas às vezes a memória nos traz um pequeno fragmento recuperado da adolescência. 

Eu ando lembrando aquele forró antigo (de quem, meu Deus? Elino Julião? Messias Holanda? Trio Nordestino?), que diz: “Ela tem cheiro de fulô da fuloresta... É uma festa o olhar dessa mulher.” (A canção é do mestre Abdias.)

É um desses casos em que se o cara obedecesse à gramática implodia o verso, não é mesmo? O aparente erro, a corrutela, a variante rústica, tudo isso exprime o sabor de uma palavra que brota espontaneamente num contexto estético onde mais do que a palavra pensada e certinha cabe a palavra dita do primeiro jeito que acode à mente.

O que é certo, o que é errado? Na língua não existem formas mais certas do que outras. Algumas formas de dizer são preferíveis por serem mais fiéis à origem etimológica, outras por serem mais maleáveis no contexto sintático, outras ainda por serem mais próximas às estruturas espontâneas da língua. 

Flor não é mais certo do que fulô, assim como vosmecê não é mais certo do que você: são, talvez, momentos diferentes de uma mesma palavra ao longo da História da Fala Brasileira. 

Cada palavra é na verdade um conjunto de variantes, que vão se superpondo umas às outras. Aceitamos a variante proposta por um grande autor; hesitamos quando ela é proposta por um indivíduo que provavelmente ignora a norma culta (é o caso das crianças e dos analfabetos), mesmo que vejamos nela um certo charme.

Que viva a lucidez poética; mas a poesia se alimenta, também, de palavras não-pensadas, frases intuitivas, improvisos sem propósito. 

O beatle Ringo Starr era especialista em frases que soavam (em inglês) meio desconjuntadas, meio faltando-alguma-coisa: por isso mesmo os outros as adoravam, e algumas acabaram virando títulos de canções (“A hard day´s night”, “Tomorrow never knows”). 

Alguns autores fizeram disto um recurso estético permanente, como é o caso de Guimarães Rosa, onde é difícil encontrar, principalmente em seus últimos livros, uma frase inteira onde não haja pelo menos uma distorção, uma palavra “mexida”, uma interferência no que seria o jeito certo de dizer.

“Já faz três noites que pro Norte relampeia”, cantava Gonzagão. Poderíamos tentar corrigir o erro aparente, dizendo: “Já faz três noites que o Norte relampagueia...” Valeria a pena? Duvido. 

Certas formas são mais espontâneas, e ai das concorrentes. Outras, pelo contrário, afirmam-se porque sua vontade de dizer algo é tão grande que rompe a casca da forma. Drummond começa seu poema humorístico “Ao Deus Kom Unik Assão” dizendo: “Eis-me prostrado a vossos peses, que sendo tantos todo plural é pouco.” 

Impossível não achar graça, impossível não ver no aparente erro a fagulha da criação verbal, que pede, para exprimir a primeira vez de uma idéia, a primeira vez de uma palavra.




Um comentário:

Rafael Senra disse...

Uma outra pérola legal do Ringo foi a que deu origem à canção "Eight Days a Week", quando ele disse que andava trabalhando oito dias na semana!