segunda-feira, 17 de março de 2008

0275) A prosa metrificada (6.2.2004)



(Francisco José Costa Dantas)

Em matéria de prosa que usa a métrica da poesia, Guimarães Rosa tem também o seu exemplo magnífico, a épica descrição da boiada nas páginas iniciais de “O burrinho pedrês” em Sagarana, o livro que lembrou a todo mundo que o sertão brasileiro fazia parte do planeta Terra e do Universo: “As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...”

Aqui já não temos o verso de 7 sílabas, mas uma sucessão de versos de 5 sílabas. Versos que, emendados, dão o verso de 11 sílabas conhecido no Nordeste como “galope beira-mar”, nome muito mais bonito do que o termo técnico correspondente “tetrâmetro anfibráquico”. (Para quem estranhar que 5+5 = 11, a sílaba extra é a sílaba átona no final do primeiro verso que, com a emenda, vai para o miolo do verso mais longo, e passa a ser contada.) As vírgulas demarcam o corte-de-linha, mas nem precisa, pois a simples leitura, principalmente em voz alta, depressa impõe o balanço ritmado das palavras indo e vindo.

Algumas tentativas mais ambiciosas foram feitas, como a de Nagib Jorge Neto em As 3 Princesas perderam o Encanto na Boca da Noite, narrativa toda em prosa redondilha. Neil de Castro, em As pelejas de Ojuara, volta e meia incide em diálogos cuja origem métrica não se esconde, como no encontro de Ojuara com o corcunda que serve de emissário da Mãe de Pantanha: “O meu nome é Horroroso Horrendo Silva da Mata. Sou que nem a cascavel, que quando não aleja, mata. Da onça tenho a maldade, a ruindade que arrasa, minha baba é peçonhenta e arde mais do que brasa”.

Francisco José Dantas, romancista sergipano que surgiu nos anos 90, é um dos remasterizadores do linguajar literário nordestino, e em seu romance Os desvalidos retoma essa figura de linguagem (vamos chamá-la assim), a prosa metrificada, como neste exemplo, pegado ao acaso entre dezenas: “...é um passarinho dançarino em torno do alazão, rodando o laço nos ares num gorjeio displicente; e mal argola o pescoço num aperto impressentido, já tem a ponta da corda passada pelo mourão!” Escrever prosa assim é mais difícil do que escrever verso, porque no verso qualquer artificialismo se desculpa pela obrigação métrica, mas a prosa metrificada deve ser muitíssimo mais fluente, o ritmo só se descobrindo a uma segunda leitura.

Arrisco a hipótese de que a prosa metrificada é mais antiga do que moderna, mais rural do que urbana, mais nordestina do que brasileira num sentido amplo. Escritores voltam-se para essa técnica quando querem evocar um Lugar ou um Tempo onde a cultura escrita ainda não se sobrepôs à cultura oral, uma cultura onde a palavra cantada ainda não se industrializou.

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