sexta-feira, 7 de março de 2008

0026) Os museus de Bagdá (22.4.2003)

O que mais me entristeceu nessa Guerra do Iraque foram os tabletes de barro com inscrições cuneiformes que os saqueadores destruíram ao fazer o seu “agarre o que puder” nos Museus de Bagdá. Muitas obras de arte caras podem ter sido roubadas; mas por saqueadores profissionais, e durante as próximas décadas começarão a voltar à tona. Os profissionais são até bem vindos, numa hora assim. Roubam para revender a colecionadores, e têm que proteger a relíquia. Uma estátua de bronze pesando centenas de quilos foi retirada do segundo andar de um dos museus; vê-se aí a ação de ladrões tecnológicos, motorizados, coisa de Primeiro Mundo. Mas muitas obras em ouro e pedras preciosas foram levadas por gente pobre e ignorante. Gente que sabe apenas que aquilo é ouro, pode ser derretido e vendido. Não fizemos assim com a Taça Jules Rimet?

Os tabletes de barro, então... esses não iam ter mesmo a menor chance. Se fossem roubados por uma raposa do mercado negro, talvez fossem arrematados por algum Bill Gates mais esclarecido, mas a verdade é que lidar com eles é mais complicado do que lidar com máscaras ou jóias. Um tablete de barro com 5 mil anos precisa de muitos cuidados para ser transportado; um colar de ouro até num cantil se esconde.

Já vi alguns desses tabletes em museus, e muitíssimas reproduções em fotos. São textos de antigas leis, de orações, de fórmulas mágicas; alguns são registros de transações comerciais, outros de acordos políticos. Quando foram feitos, a escrita era ainda uma novidade. Imagino que em alguma tarde de sol, na antiga Mesopotâmia, um garoto entrou na sala em que seu pai trabalhava no palácio, e o viu diante de uma placa de barro úmido, segurando uma pequena cunha, e traçando ali fileiras superpostas de sinais. Vendo os olhos arregalados do menino, o pai explicou: “É um software novo que inventaram. A cada palavra que a gente diz corresponde um grupo desses sinais aí. Se outra pessoa conhecer esses sinais, vai ser capaz de saber quais são as palavras.” O pirralho assombrou-se, e saiu correndo, gritando para os amigos: “Meu pai é o cara mais inteligente do muuundo!”

O tablete foi aprovado pelo rei, ficou exposto no palácio durante anos. Quando o palácio ardeu, ficou preservado num porão intacto. O império caiu, outros impérios vieram e passaram, Jesus Cristo nasceu e foi crucificado, veio a Idade Média, a Renascença, o imperialismo europeu saiu anexando os quintais abandonados do mundo. Cientistas um dia vieram e escavaram. Depois de muitos mil anos, o tablete emergiu à luz do sol. Colocaram-no num engradado de madeira e o transportaram de carruagem até uma cidade gigantesca que ainda não existia quando ele foi escrito. Talvez tenha viajado de navio, talvez tenha sido exposto em museus do mundo afora; mas retornou, estava vivo de novo no Museu de Bagdá, até que num dia de fumaça e pânico alguém arrebentou o vidro que o protegia, e o espatifou no piso, em pedacinhos, para sempre.

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