sexta-feira, 7 de março de 2008

0012) A lava da emulsão (5.4.2003)




A exposição “Walter Carvalho, Fotógrafo”, inaugurada em março no Instituto Moreira Salles (Rio), nos dá alguns vislumbres da obra de um lúcido fotógrafo brasileiro. Também é, como muitas exposições, uma experiência de metalinguagem. Tem coisa melhor do que ver uma obra e refletir no mesmo instante sobre as condições em que foi criada, sobre as regras que determinaram sua criação? Não tem.

Certas fotos valem pela cena que é mostrada. Valem pelo seu conteúdo narrativo, peka história que insinuam; ou seu conteúdo simbólico, a idéia que sugerem. Outras valem por terem sido clicadas no único segundo possível para que aquela foto acontecesse; aí a fotografia é uma arte do repente, do improviso em face do imprevisto. Outras, ainda, nos balançam por causa do ângulo que o fotógrafo descobriu, o único de onde alguns elementos ficam próximos, ou ganham uma relação recíproca. A foto que “só pode ser enxergada dali”.

O clique da máquina é uma espécie de lance de dados, de lance de moedas do I-Ching, de arremesso de búzios. É um instante único na linha do Tempo, e aquele clique, aquele lance, meio lince, meio às cegas, captura na câmara escura o Gênio, o espírito desse instante. Os primitivos estão certos quando se recusam a ser fotografados, por medo de que alguém lhes abduza a alma.

Muitas fotos desta exposição são fotografias de fotografias. Aqui um out-door, ali um poster. Janelas surgem iluminadas como fotogramas em celulóide. Uma foto no Maracanã mostra quatro grupos de pessoas sucessivamente menores (40 mil, 40, 4 e 1), sendo o quarto o próprio fotógrafo, em seu contracampo solitário. Acho que depois de um certo tempo torna-se quase automático para um fotógrafo que ele mesmo, continuando invisível, também apareça na foto.

Numa série de imagens de cinemas abandonados, Walter Carvalho mostra um drive-in cuja tela, desgastada pelo sol e pela chuva, parece um pergaminho medieval muitas vezes raspado, rasurado e reescrito, ou um quadro de Jackson Pollock construído aleatoriamente pela Natureza. A tela parece manchada pelos filmes, como se ela fosse de papel fotográfico, de película sensível, ou fosse algum tipo de daguerreótipo opaco. Já pensou isto... uma tela de cinema com memória, que lembrasse tudo que ali passou?

A emulsão espalhada sobre o filme fotográfico é como uma lava vulcânica imóvel, mas borbulhando líquida. No momento que a luz a toca, ela se congela, se petrifica, como a lava resfriada pelo mar. A imagem está gravada ali, e nela estão as coordenadas de Tempo e Espaço daquele momento único na história do Universo. A tela do drive-in de Cabo Frio parece ter guardado em sua superfície vislumbres de tudo quanto ali passou, assim como a lama pré-histórica guardou as pegadas dos dinossauros. É apenas um instante, mas o que estava ali pula para fora do Tempo, e se perpetua.

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