domingo, 24 de março de 2024

5045) A Seleção de Dorival (24.3.2024)

 


Ontem, a Seleção Brasileira, de saudosa memória, deu o ar de sua graça no Estádio de Wembley.
 
Ou melhor – na “arena” que os ingleses construíram no local onde existia antigamente o Estádio de Wembley, chamado pelos nossos altissonantes locutores “o templo do esporte bretão”. 
 
Foi o primeiro jogo sob o comando de Dorival Júnior, substituindo Fernando Diniz, que após bons resultados iniciais (abre o olho, Dorival) enfileirou uma série de derrotas. 



(Dorival Júnior)
 

Não vou analisar o estilo dos dois técnicos, simpatizo com ambos, acho que no futebol brasileiro de hoje em dia são dois talentos importantes, como mostram os títulos que ambos ganharam nos anos mais recentes, por diferentes clubes. 
 
O que eu quero falar é algo mais abstrato que não tem nada a ver propriamente com o dia de hoje, é algo do próprio ofício do futebol. Um clichê do ofício, que posso resumir na seguinte fórmula: 
 
1)      Técnico de clube é uma coisa, técnico de seleção é outra. 
2)      Existem duas possibilidades para um técnico: adaptar os jogadores a um esquema de jogo que ele já traz na cabeça, e adaptar o esquema de jogo aos jogadores de que dispõe. (São pontos extremos, claro – todo técnico mistura as duas coisas.) 
 
O item 1 quer dizer: 
 
O técnico de clube tem o ano inteiro para trabalhar com seu elenco, vários dias por semana. Conversa, treina, convive, explica no quadro-negro, comemora triunfos, choraminga derrotas, treina de novo, muda o time, experimenta, volta a treinar... Meses seguidos, com (basicamente) os mesmos jogadores. Que muitas vezes não foram escolhidos por ele – quando ele chega no clube, o elenco já existia. Aos poucos (quando pode) ele pede à diretoria: preciso de Fulano, de Sicrano... Quando pode. 
 
O técnico de Seleção senta com seus assessores e diz: Quero Fulano, Sicrano e Beltrano. É a famosa convocação. Ele convoca quem quer, e em 90% dos casos o jogador vem mesmo. (Os 10% ficam por contra de contusões, de sabotagem por parte do clube onde o cara joga, etc.) 
 
Ele pode chamar Os Melhores. Mas tem pouquíssimo tempo para treinar, a não ser quando é preparação para a Copa. Ele aposta na qualidade do elenco. São os melhores? Pode até ser que sim, mas muitas vezes jamais jogaram juntos, jamais conviveram, não se sabe “como vai ser a química”. São profissionais responsáveis? Claro. Mas são também celebridades, cada um deles vive cercado por uma entourage que buzina pressões no seu ouvido o tempo todo. Nunca se sabe como vão se comportar. 
 
Ou seja: o trabalho no clube é a longo prazo, rola muito aquela conversa de “a equipe está ganhando entrosamento, vai crescer ao longo da competição...”. O trabalho na Seleção é de curtíssimo prazo. É reunir o grupo na terça, pra ganhar o jogo no domingo, valendo 3 pontos. 



E quanto ao item 2:
 
Todo técnico tem suas idéias de como uma equipe deve jogar, em diferentes situações. Há técnicos mais defensivos, outros que gostam mais de atacar, existe a Igreja Posicional dos Quadrângulos Numéricos... Mas ao mesmo tempo o técnico olha em torno e tem que saber até que ponto o grupo é capaz de executar o que ele tem em mente. 
 
Alguém dirá: “Mas ele é o comandante do grupo, basta explicar e exigir obediência!” Isso pode funcionar em quartel, mas duvido que funcione muito no futebol, inclusive quando o técnico chega de automóvel para o treino e quatro ou cinco jogadores chegam de helicóptero. 
 
O técnico que tem um esquema na cabeça é um pouco como os diretores que têm o filme na cabeça, e exigem que todo mundo faça o filme que ele quer fazer. Diretores como Alfred Hitchcock ou Stanley Kubrick. 



(Alfred Hitchcock)
 

Um jornalista perguntou a Hitchcock: “É verdade que o senhor disse que atores de cinema são gado?...”  E Alfred respondeu: “Isto é uma calúnia. O que eu disse foi que eles devem ser tratados como gado.” 
 
Hitchcock era o homem do roteiro e do storyboard. Ele escrevia o filme inteiro junto com o roteirista, e depois desenhava o filme inteiro, plano por plano. Quando entrava no estúdio para o primeiro dia de filmagem, entrava bocejando, entediado, porque para ele o filme já estava pronto. E ai de quem discordasse de um ângulo de câmera, de uma frase do diálogo. 
 
Kubrick era mais aberto à improvisação, ao acaso – e por isso mesmo experimentava em excesso durante a filmagem, até de forma desumana, mandando um ator repetir a mesma fala ou a mesma ação 120 vezes. O filme não vinha já pronto em sua cabeça, mas ia se formando em sua cabeça; todo mundo trazia 200 opções e ele batia o martelo. Ele. 



(Stanley Kubrick) 
 

Diretores assim são como coreógrafos. Eles tem um “desenho”, um “esquema”, um diagrama abstrato do que deverá ser o filme, e exigem que a equipe execute isso. 
 
É mais ou menos a maneira de trabalhar, acredito eu, de técnicos como Pep Guardiola ou Fernando Diniz, dois workaholics com idéias muito claras sobre o que querem ver em campo, e capazes de dirigir seus jogadores como um coreógrafo dirige seus bailarinos. O bailarino é bom quando sabe cumprir o que foi desenhado no papel.



(Pep Guardiola)
 

O outro tipo de técnico é um cara que sem dúvida tem as suas coreografias preferidas, mas guarda isso no bolso e pensa em primeiro lugar no grupo que está recebendo quando chega no clube. Não adianta pensar num jogo de alta velocidade quando o elenco quase todo é idoso, ou pesadão, ou está fora de forma porque o trabalho físico no clube tem sido deficiente. 
 
Esse técnico tem que olhar o grupo, fazer os primeiros treinos, confirmar as impressões que já tinha (quando é um clube que ele conhece bem à distância), e começar a armar o melhor jogo possível com o material que ele tem em mãos. 
 
É como um arquiteto que pode ter na cabeça alguns projetos geniais e mirabolantes de residência, mas sempre vai ter que atender as necessidades do cliente, o gosto pessoal do cliente, as condições físicas do terreno do cliente, e assim por diante. Ou um arranjador musical que vai fazer os arranjos de um disco e lhe oferecem um quarteto de câmara, um DJ, oito percussionistas e duas guitarras: “O que tem é isso; te vira”. 



(Fernando Diniz) 
 

Um trabalho como o de Fernando Diniz tem mais condições de render num clube, como tem rendido bons resultados no Fluminense, basta ver os títulos recentes e inéditos que conquistou. É um trabalho de cima para baixo, que um elenco precisa de tempo para assimilar, “mecanizar”, tornar quase instintivo, com reações, respostas e opções-de-jogada decididas em frações de segundo. 
 
Bem mais difícil aplicá-lo numa seleção, onde o grupo se reúne por dez dias de tantos em tantos meses. 
 
Em casos assim, parece dar mais certo o jeito de Dorival Júnior, também um bom técnico, que me lembro de ter visto no melhor time do Santos nos últimos tempos (o de Neymar e Ganso), no Flamengo recente, e por último no São Paulo, ganhando também um título inédito. 



(Vicente Feola)
 

Dizem que Vicente Feola não interferia quase nada no que o time fazia. Já vi jornalista dizer (em momento de euforia): “Feola ganhou a Copa de 58 na hora da convocação”. Ou seja: era só distribuir o grupo em campo, e quando algo não ia bem o próprio grupo chegava para ele e dizia: “Tem que botar esses meninos que estão no banco, Garrincha e Pelé.” E ele botava. 
 
Dorival Júnior vai fazer uma boa sequência na Seleção? Tomara que sim. Não sou mais de torcer por Seleção, e até os meus times preferidos eu acompanho à distância, pelo rádio. Gosto do futebol bem jogado. Admiro “técnicos de esquema” como Guardiola e “técnicos de grupo” como Ancelotti, do Real Madrid. O jogo sendo bonito e eficaz, fico satisfeito. 
 
Porém, quando olho o trabalho de um técnico de futebol é como se estivesse olhando o trabalho de um diretor de cinema, de um maestro de orquestra sinfônica, de um diretor de teatro ou dança. Há um grupo de jovens talentosos, e a gente precisa saber que nenhum grupo é igual aos outros. Como trazer de casa a idéia de uma Obra, e conseguir juntar essa idéia à realidade desse Grupo, e conseguir produzir uma terceira coisa, que ainda não sabemos o que vai ser? 



(Fitzcarraldo, dirigido por Werner Herzog)







 
 
 





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