quinta-feira, 21 de março de 2024

5044) Ballard e o império do sol (21.3.2024)




Poucos escritores contemporâneos tiveram uma infância tão inusitada quanto a do inglês J. G. Ballard. Ele narrou a sua, em forma romanceada, no livro O Império do Sol, filmado depois por Steven Spielberg; o ator-menino Christian Bale fez o papel do escritor. 
 
Menos romanceada, mas igualmente lúcida e bem escrita é a autobiografia Milagres da Vida – De Shanghai a Shepperton (Companhia das Letras, trad. Isa Mara Lando), que ele escreveu quando já estava com o câncer de próstata que o levou em 2009. 
 
Ballard, nascido em 1930, foi menino riquinho em Shanghai, onde seu pai era alto executivo de uma indústria britânica. A família morava numa mansão, com dez criados chineses cuidando de tudo, sempre calados, de olhos baixos. O menino ia para a escola num carro com chofer, vigiado por uma babá russa, e vendo pelo vidro do carro a miséria e a violência de uma das maiores cidades do mundo, e que era, diz ele, “90% chinesa e 100% americanizada”. 



(J. G. Ballard) 
 
Os pais eram distantes, envolvidos com trabalho e recepções sociais. Quando chegou aos dez ou onze anos o garoto Jim montava na bicicleta e costurava Shanghai inteira em busca de pequenas aventuras. Essa folga acabou quando os japoneses atacaram a China e ocuparam a cidade. As famílias européias foram transferidas para o campo de prisioneiros de Lunghua, instalado num colégio abandonado no subúrbio. Os três anos seguintes ele transpôs para O Império do Sol, com algumas liberdades literárias – no romance, o garoto “Jim” não está com os pais, mas sozinho. 
 
Sentia-me mais à vontade lá do que no número 31 da avenida Amherst. A prisão, que tanto confina os adultos, oferece possibilidades ilimitadas à imaginação de um garoto adolescente. No momento em que punha os pés para fora da cama pela manhã, enquanto minha mãe dormia embaixo do mosquiteiro rasgado e meu pai tentava fazer um pouco de chá para ela, havia uma centena de possibilidades à minha espera. (p. 105-106) 



(O campo de prisioneiros de Lunghua) 


Pode parecer um paradoxo, mas a prisão nivelava pais e filhos, ao extrair dos pais a maioria dos seus poderes. 
 
Sua função de pais tinha se tornado passiva, em vez de ativa. Eles não possuíam mais os meios usuais de fazer as coisas acontecerem. (...) Nunca senti desprezo pelos pais dos bairros pobres, tão impotentes, incapazes de controlar os filhos. Lembro-me bem dos meus pais no campo, sem ter meios de alertar, repreender, elogiar ou prometer coisa alguma. (p. 80, 81) 
 
Com o fim da guerra, a família Ballard voltou para a Inglaterra e Jim teve um choque ao perceber como “seu país” era diferente da Shanghai heterogênea e vibrante onde ele cresceu. O país estava exaurido pela guerra, econômica e emocionalmente. Os avós, com quem ele foi morar, pareciam viver noutro planeta, um planeta taciturno, avaro, mesquinho. Ballard comenta que em seu livro semi-autobiográfico A Bondade das Mulheres (1991) registrou como “os ingleses falavam como se tivessem vencido a guerra, mas agiam como se a tivessem perdido”
 
As pessoas de classe média, no fim dos anos 1940 até os anos 1950, viam a classe trabalhadora quase como se fosse uma espécie humana diferente, e se protegiam e se isolavam por trás de um complexo sistema de códigos sociais. (...) Mostrar respeito pelos mais velhos, nunca ficar muito ansioso para fazer nada, aguentar as dificuldades sem reclamar, ter um comportamento decente para com os inferiores, submeter-se à tradição, ficar em pé ao ouvir o hino nacional, oferecer-se para liderar, ser modesto e assim por diante. (...) Tudo na classe média inglesa girava em torno de códigos de comportamento que inconscientemente cultivavam uma mentalidade de segunda classe e baixas expectativas (p. 115) 
 
Ballard entrou numa escola secundária (The Leys) situada em Cambridge, e registra a importância do cineclube local, onde ele via e revia a produção européia do pós-guerra: Jean Cocteau, Marcel Carné, Henri-Georges Clouzot, além de filmes policiais “noir’ norte-americanos. E conta como aos dezesseis anos descobriu Freud e os surrealistas, que na época, diz ele, eram ainda considerados como uma piada, nos meios acadêmicos e literários. 
 
Isto o levou a estudar medicina: “Eu tinha interesse pela medicina, que me parecia fazer fronteira com a psicologia das anormalidades e o surrealismo.”  Não é uma trajetória muito habitual na comunidade dos escritores de FC, que em geral têm um namoro adolescente com a astronomia, a astronáutica, as engenhocas eletrônicas em geral e as revistas de aventuras. 



Ele passou dois anos estudando anatomia, fisiologia e patologia; as descrições clínicas e impassíveis da violência corporal (como em Crash, 1973) guardam um pouco dessa capacidade de ver o corpo humano, vivo ou morto, como uma coisa. Era uma experiência, diz ele, diferente dos inúmeros cadáveres chineses e japoneses que vira durante a guerra, principalmente porque em 1949 a maioria dos corpos dissecados pelos estudantes era de médicos professores, que doavam o cadáver para o estudo da anatomia. 
 
Embora fossem identificados apenas por números, cada cadáver parecia ter uma personalidade distinta - a compleição física geral, os ossos do contorno do rosto aparecendo pela pele, reafirmando sua primazia, e mais as cicatrizes, as manchas, as anomalias estranhas, como um terceiro mamilo ou dedos extras nos pés; e ainda vestígios de operações, tatuagens, marcas inexplicáveis – toda a história de uma vida escrita na pele, principalmente nas mãos e no rosto. Dissecar o rosto, revelar as camadas de músculos e nervos que geravam as expressões e as emoções era uma maneira de penetrar na vida pessoal desses médicos mortos, e quase trazê-los de volta à vida. (p. 132) 
 
Ballard largou os estudos de medicina, trabalhou com publicidade em Londres, passou a frequentar galerias de arte onde reencontrou a pintura surrealista, e principalmente a obra de Francis Bacon, que ele considerava “o maior pintor do mundo no pós-guerra”. Depois, o seu fascínio pelos aviões o levou a se alistar na RAF Real Força Aérea), que o mandou para um período de treinamento no Canadá. E ali, no tédio entre os exercícios e a neve onipresente, ele descobriu pra valer a pulp fiction de ficção científica nas bancas, e começou a escrever seus próprios contos. 
 
A sua carreira de escritor deve muito a editores como, por exemplo, Edward J.  Carnell: 
 
Carnell me disse que a ficção científica precisava mudar para continuar na linha de frente do futuro. Ele me incentivou a não imitar os escritores americanos, e me concentrar naquilo que eu chamava de “espaço interior”, ou seja, histórias psicológicas, de um espírito próximo dos surrealistas. Tudo isso era anátema para os editores americanos, que continuavam a rejeitar minha ficção. (p. 164) 




(Michael Moorcock (de barba) com Ballard)

 
Ballard publicou numerosos contos na vanguardista New Worlds, editada por seu amigo Michael Moorcock, e sua obra em romance foi levada por outro amigo, Kingsley Amis, para a editora Jonathan Cape. Isto certamente o ajudou a se estabelecer profissionalmente, porque em 1964 sua esposa Mary morreu de uma pneumonia repentina, e Ballard, aos 36 anos, passou a cuidar sozinho dos três filhos pequenos. 
 
Já morando no subúrbio de Shepperton (onde fica o famoso estúdio cinematográfico) ele não casou de novo nem contratou babás, e se limitava a chamar alguma baby sitter quando precisava sair à noite. O garoto “Jim” que teve uma infância distanciada dos pais dedicou-se a dar aos filhos uma presença emocional e um tipo de liberdade que ele próprio desconhecera. 



(Ballard e seus filhos Fay, Bea e Jim) 
 

Acredito que o principal perigo que a morte da mãe apresenta é, na verdade, um pai ausente ou frio. Se o pai for amoroso e ficar próximo das crianças, elas vão crescer e florescer. (...) Como era difícil conseguir uma babá que ficasse durante todo o dia, nós fazíamos tudo juntos – as compras, as visitas aos amigos, os museus, os passeios, de férias, a lição de casa, a televisão. Em 1965 fomos até a Grécia, onde ficamos quase dois meses – umas férias maravilhosas, em que estávamos sempre juntos. (p. 181, 182)
 
Consegui manter uma produção constante de romances e contos, sobretudo porque passava a maior parte do tempo em casa. Um conto, ou um capítulo de um romance, era escrito no intervalo entre passar a ferro a gravata da escola, servir a salsicha com purê de batatas e assistir Blue Peter. (p. 201)
 
Ao contrário da maioria dos escritores de FC que convivem no habitat natural da espécie, Ballard se sentia mais à vontade conversando com pessoas como o artista plástico Richard Hamilton, o médico Martin Bax que publicava a revista de poesia Ambit, o cientista Christopher Evans, o escultor Eduardo Paolozzi. Um ambiente onde (ele registra) a ficção científica não era esnobada, pelo contrário: era considerada a melhor literatura imaginativa dessa época (anos 1960-70). 



 

A obra de Ballard é uma tentativa de cartografar o absurdo da sua civilização, dos mundos contraditórios e incompatíveis onde ele cresceu. O esforço para ter uma família unida e alegre corria em paralelo com uma obra brutal em que (diz ele) 
 
eu estava tentando construir uma lógica imaginativa que conferisse sentido à morte de Mary, e provasse que o assassinato do presidente Kennedy e as incontáveis mortes da Segunda Guerra Mundial valeram a pena, ou quem sabe até tivessem algum significado ainda não descoberto. (p. 185) 
 
Ballard ficou famoso, de início, com um conjunto de romances da década de 1960 que lhe deram a fama de “escritor apocalíptico”, descrevendo diversos tipos de Fim do Mundo: The Wind from Nowhere (1962), The Drowned World (1962), The Burning World (1964) e The Crystal World (1966). Eram uma ficção científica pouco convencional, mas ainda trabalhando com os clichês do gênero. 



A brutalidade urbana nunca foi tão bem fantasiada quanto na trilogia Crash (1973), Concrete Island (1974) e High Rise  (1975). É uma ficção científica sociológica e antropológica, extrapolando de forma propositalmente bizarra o desumanismo das grandes cidades e as neuroses que dão sentido à vida de seus habitantes. 
 
Numa entrevista concedida em 2006 a Toby Litt, o autor dizia: 
 
Eu acho que o fascismo precisa, sim, de um líder. Mas esse líder pode vir de uma maneira inesperada. No meu livro [Kingdom Come, 2006], eu sugiro que o nosso equivalente ao Führer vociferante é o apresentador de talk-shows da TV a cabo. O curioso nos Führer e nos messias é que eles sempre brotam dos lugares mais inesperados – do deserto, em geral. Mas é claro que os shoppings e os centros comerciais ingleses são um deserto, por qualquer critério que se aplique. (...) As pessoas estão à caça de sua verdadeira psicopatologia. Precisam da loucura como uma válvula de escape. Estão entediadas, querendo quebrar a mobília. Estão como uma tribo de chimpanzés que cansam de mascar gravetos e decidem ir à caça. Para isso, eles criam em si mesmo um estado de raiva furiosa, e depois saem para esquartejar os outros. 



 
("SF Symposium", Rio de Janeiro, 1969: da dir. para a esq., Ballard, Robert Sheckley, Philip Jose Farmer e amigos)


Milagres da Vida foi o último livro publicado em vida por Ballard, e consegue juntar numa só imagem o homem discreto, afetuoso, bem humorado, e o escritor distanciado, analítico, com uma “prosa de medicina legal” (como diz sua filha Fay Ballard), capaz de dissecar “o estranho, o bizarro e o inesperado” do mundo que superou o Surrealismo em termos de absurdo. 
 




(duplo auto-retrato de Ballard; Cambridge, 1950) 
 
 
 






2 comentários:

Marta Rezende disse...


Não sei se compreendi bem, mas me arrisco a dizer que seu texto discorre que J.G. Ballard adulto teve uma vida familiar e social bastante harmônica, enquanto o seu pensamento sondava a alma misteriosa do mundo inconsciente do seu acelerado processo de desertificação. E que na infância, já havia percebido o germe desse deserto espiritual nos seus pais.
Já tentei por duas vezes ler esse escritor, mas senti aflições terríveis e acabei desistindo logo nas primeiras páginas. Tenho dois livros dele guardados na estante que estão piscando para mim agora: Vermilion Sands e
The Crystal World.
Grata.

Braulio Tavares disse...

Sim, Marta, acho que ele era um cara muito angustiado com todos os horrores que presenciou, e com sua percepção do quanto essa nossa "civilização" é um conjunto de absurdos; mas encontrava nas amizades e na família uma razão para tocar o barco -- como todos fazemos, aliás. VERMILLION SANDS me parece um livro mais interessante -- são contos sobre essa localidade onde moram artistas, arquitetos, intelectuais, etc., envolvendo-se em eventos fantásticos ou com tecnologia futurista.