sexta-feira, 14 de agosto de 2015

3893) "Textos para nada" (15.8.2015)




Publicados em 1955, os Textes Pour Rien de Samuel Beckett foram escritos entre 1950 e 1952, e fazem parte de um período em que o irlandês estava se dedicando a afrouxar pacientemente todos os parafusos da prosa de ficção, para ver se ela se sustentava sem eles. Beckett é um autor versátil (romance, poesia, teatro, conto, ensaio, cinema) e onde meteu a mão pareceu resolvido a descobrir algum hipotético “grau zero da escritura”, um patamar mínimo de narração que não fosse a mentira convencionalmente construída em parceria por escritores e leitores ao longo de séculos.

A edição brasileira (Cosac Naify, 2015, tradução de Eloisa Araújo Ribeiro) traz 13 fragmentos sem título, escritos na primeira pessoa, numa espécie de monólogo interior muito diverso do praticado por James Joyce. O texto de Beckett cria uma dessas situações em que acompanhamos os pensamentos e as sensações de um narrador mas nunca sabemos quem é, o que faz, onde está, o que está acontecendo (se é o caso). Um fluxo de associações de idéias que de vez em quando é cortado pelo flash rapidíssimo de um dado concreto, como relâmpago na noite:

“..não posso pedir nada. Nada além da cabeça e das duas pernas, ou uma só, no meio, iria embora saltitando. Ou nada além da cabeça, bem redonda, bem lisa, sem precisão de acabamentos, rolaria, seguiria as ladeiras, quase um puro espírito, não, não daria certo, daqui tudo sobe, é preciso ter perna, ou o equivalente, alguns anéis talvez, contrácteis, com isso se vai longe. Partir da frente da Casa Duggan, numa manhã primaveril de chuva e sol, na incerteza de poder chegar até a noite, o que há de errado aí?”.

Há uma destruição da narrativa, mas a sintaxe fica intacta, embora a separação por vírgula signifique muitas vezes um recomeço do zero, uma volta ao ponto de partida (que ninguém lembra mais qual foi). O posfácio de Lívia Bueloni Gonçalves lembra a amizade entre Joyce e Beckett, mas afirma que “...enquanto Joyce ‘tendia para a onisciência e a onipotência enquanto artista’, ele lidava com a impotência e a ignorância.”  A cada livro publicado Beckett se afastava mais de Joyce, raspando toda sua exuberância barroca, tendendo a um vocabulário ascético e à narração de pequenos episódios absurdistas contados em tom trágico, como gifs animados repetindo-se perpetuamente. Sua prosa funde a comédia do cinema mudo e o pessimismo filosófico pós-guerra; foi a época em que ele começou a escrever em francês, porque usar uma língua estrangeira o obrigava a pensar muito cada palavrinha, cada frase, sem ceder à tentação da prosa fácil onde apenas regurgitamos o já lido e o já escutado.




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