Num futuro não muito remoto, o planeta mergulhou numa nova
Era Glacial, os oceanos estão congelados, os continentes cobertos de neve, e a
temperatura ao ar livre é mortal para uma pessoa desprotegida. Da humanidade,
sobrevive um número impreciso (mas enorme) de pessoas abrigadas no
Perfura-Neve, um longuíssimo trem eternamente em movimento, microcosmo do mundo
que deixou de existir.
O Perfura-Neve é mostrado ao leitor em sua insensata
extensão, em quadrinhos horizontais de margem a margem. Vagões dormitório,
vagões agrícolas, vagões de criação animal, vagões recreativos com bordéis para
os ricos – enquanto os passageiros dos últimos vagões, os “fundistas”, reproduzem
a vida dos moradores de cortiços. E o trem não para, produzindo mais energia do
que consome, mas vendo essa relação se estreitar a cada ano que passa. Em algum
momento, o trem não poderá mais avançar.
Le Transperceneige é uma “graphic novel”, e pode mesmo ser
chamado de novela gráfica. A história começou com o volume O Perfura-Neve
(1984), escrito por Jacques Lob (1932-1990) e desenhado por Jean-Marc Rochette.
Após a morte de Lob, Rochette fez reviver a série, com roteiros de Benjamin
Legrand: juntos os dois publicaram os capítulos finais, “O explorador” (1999) e
“A travessia” (2000). Os três episódios
saem juntos agora pela Editora Aleph (SP), com tradução de Daniel Lühmann. É um
álbum de 250+ páginas que faz jus ao desenho rico e movimentado de Rochette,
sendo notável a diferença entre seu traço do primeiro capítulo e o dos dois
últimos.
A idéia original de Lob, a do trem-que-não-para-nunca, tem
ilustres precedentes. Um deles, The Inverted World (1974) de Christopher
Priest, mostra um trem-universo num movimento relativístico incessante através
do espaçotempo. Esse livro, traduzido
na França em 1975, fez um enorme sucesso, mais do que a obra inteira de Priest
vendia na Inglaterra.
Mas o filme-de-trem é um gênero em si, é uma história que
não existiria sem o trem. Tanto pode acolher o mistério detetivesco do Assassinato no Expresso do Oriente quanto a porrada pura de O Imperador do
Norte, a guerra padrão de O Expresso de Von Ryane o mensagem natalina de O
Expresso Polar. Se já estou falando em cinema a propósito de um álbum de
quadrinhos é pela contiguidade que vejo entre os dois, e o fato de que o O
Perfura Neve foi filmado em 2013 por Joon-Ho Bong.
Um comentário:
Bela indicação de leitura, obrigado.
Mais um filme de trem ótimo: Expresso para o Inferno, que é, se não estou errado, de 1985, com roteiro de Akira Kurosawa.
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