sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

3742) Um problema de xadrez (20.2.2015)



(As brancas jogam, e dão mate em dois lances)

Quem não é aficionado de xadrez pensa que um problema de xadrez é a mesma coisa que uma partida de xadrez, mas não é.  Uma partida é um jogo entre adversários. Como em qualquer jogo, parte de uma situação inicial sempre a mesma, e vai refletindo a disputa de forças que passa a acontecer.  Um problema de xadrez é outra coisa.  É uma situação imaginária, proposta numa revista ou jornal. Envolve poucas peças, e o desafio: “As brancas dão xeque-mate em três lances”, ou “as pretas deixam o jogo empatado com dois lances”, coisas assim.

A graça do problema é você saber, pelo enunciado, que existe, sim, uma combinação de jogadas que conduz ao resultado anunciado.  Fogo é encontrar, porque às vezes é preciso um raciocínio meio não-convencional para achar a resposta.  No problema, aliás, isso é até mais fácil de acontecer, porque não houve toda uma partida cheia de peripécias e de intenções não-alcançadas, para chegar até ali.  Numa partida de verdade é mais fácil ficar preso à narrativa que aquele momento do jogo está propondo.  Num problema, não: chega-se emocionalmente zerado ao que na verdade é um desfecho.

Nos romances de Raymond Chandler, um dos hobbies do detetive Philip Marlowe é o xadrez, mas não me lembro de nenhuma história em que Marlowe dispute uma partida com quem quer que seja.  Ele volta para casa à noite (mora sozinho), toma banho, ouve música no rádio, prepara comida, come, depois pega o tabuleiro e arma um problema, ou reconstitui uma partida inteira entre dois mestres do passado, como um pianista que volta a tocar um Noturno para não se esquecer.

Um problema é uma pequena obra de ficção enxadrística.  Como no romance, imaginamos a existência de uma imensa teia de narrativas prévias, não-contadas, que desaguam naquele texto que começamos pelo “Capítulo 1”.  Um romance é uma história que vai acontecer, e um problema de xadrez é uma história de que não vimos o começo mas vamos ter que adivinhar seu possível fim.  Teoricamente seria possível prolongar indefinidamente aquela partida, mas a certeza da existência de uma solução radical, uma guilhotina instantânea, leva o jogador a não descansar enquanto não a encontra.

Jogar xadrez é um duelo intelectual, uma relação densa e aguerrida entre duas mentes.  Um problema de xadrez é o contrário disso: é um prazer solitário.  Uma minipartida abstrata entre o cara que publicou o problema no jornal, e o cara que vai tentar resolvê-lo.  Parece muito com a literatura, e parece mais ainda com a literatura policial.  É um detalhe sutil de Chandler, fazendo uma homenagem discreta aos grandes mestres do romance detetivesco.




4 comentários:

Fraga disse...

Embora o Millôr Fernandes achasse que "o xadrez desenvolve a capacidade de jogar xadrez", o jogo é sempre inspirador. Duas brilhantes provas são os seguintes livros policiais focados no xadrez: 1) O Quadro Flamenco, fascinante história detetivesca, duas tramas em uma. http://www.travessa.com.br/o-quadro-flamenco/artigo/46d1457d-7c88-4558-953a-8c3fee0e70ec
2) A Variante Lüneburg, história mix do jogo com perseguição nazi.
Ambos imperdíveis, Braulio. Abração!

Anônimo disse...


Raciocínio meio não-convencional tipo uma torre se entregar para um peão?

Jerry disse...

Mate em dois.
Não precisa dizer que as brancas jogam.
...
Os problemas de mate em dois me reportam a discussão entre suspense e susto.
O mate em dois é o suspense do xadrez, você sabe que está lá, mas como encontrá-lo?
Vocês escolheu um belo problema.
A trama vai se desenrolando enquanto você estuda os movimentos e contra-movimentos.
Spoiler a seguir:
A história desse problema, onde o sacrifício de uma peça nobre permite ao plebeu peão ganhar a partida é elegante.
Mesmo que o sacrifício não seja completo, pois para o adversário uma jogada que despreza o sacrifício mas ainda perde a partida é possível, ele sempre existe como solução ideal.
Mate em dois são como contos, que tem pouco tempo para contar a história.

Anônimo disse...

Qual será a necessidade da presença do bispo no problema?